Hermenêutica Jurídica de Carlos Maximiliano X Hermenêutica de Paul Ricoeur

AutorWagner Gundim
CargoMestrando em Direito Político e Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Membro efetivo das Comissões de Direito Constitucional e Ensino e Pesquisa em pósgraduação da OAB/SP
Páginas21-30

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Excertos

"O livro Hermenêutica e aplicação do direito representa um marco inconcusso no âmbito do direito pátrio"

"Para Maximiliano, tudo é passível de interpretação, desde a busca pela significação de conceitos e intenções, fatos e indícios, até mesmo o silêncio"

"Ricoeur esclarece que a fenomenologia, e sobretudo a hermenêutica, representam, simultaneamente, uma realização e uma transformação radicalizada da filosofia refiexiva"

"Diante da contraposição das ideias defendidas por Maximiliano e Paul Ricoeur, questiona-se: A subjetividade/coeficiente pessoal do intérprete deve ser considerado como elemento essencial para aplicação do direito?"

Introdução

Carlos Maximiliano, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, foi uma das figuras mais eloquen-tes da cultura jurídica brasileira, cuja projeção intelectual, como doutrinador e jurista, trouxe relevantes contribuições no campo do direito pátrio, notadamente no que tange ao estudo da hermenêu-tica clássica.

O resultado do seu incansável estudo e dedicação à ciência da interpretação redundou na publicação o livro Hermenêutica e aplicação do direito, razão pela qual é referido frequentemente como o príncipe dos hermeneutas pátrios. Ocorre que, a despeito da notável contribuição da obra referenciada ao panorama interpretativo do direito em terrae brasilis, tem-se a impressão de que o ato de aplicação do direito para Maximiliano tem por fundamento primordial o aspecto subjetivismo/coeficiente pessoal do intérprete, o que poderia levar a aporias relacionadas à defesa do ativismo judicial.

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Desta forma, de modo a contrastar a aparente necessidade de subjetividade do intérprete defendida por Maximiliano, o artigo colocará em exame a visão da hermenêutica trabalhada e defendida por Paul Ricoeur, a qual, além de se libertar do primado da subjetividade do intérprete, destaca que o papel da hermenêutica é duplo: (i) reconstruir a dinâmica interna do texto; e (ii) restituir a capacidade de a obra se projetar para fora de si mesma, possibilitando um mundo que seria "a coisa do texto".

Na sequência, serão feitas breves considerações e apontamentos no intuito de destacar as contrapo-sições existentes entre a herme-nêutica jurídica de Carlos Maxi-miliano e a hermenêutica de Paul Ricoeur.

Por fim, será possível concluir que, no plano da práxis, se as lições defendidas por Carlos Maximiliano forem usadas apenas para sacar frases de efeito, esparsas em sua doutrina, facilmente se poderá conduzir à possibilidade de subjetivismo do intérprete na aplicação do direito, e, consequentemente, incorrer em práticas ativistas.

1. A visão da hermenêutica trabalhada por Carlos Maximiliano ? Hermenêutica e aplicação do direito

Ab initio, deve-se registrar que as considerações levadas a cabo por meio do presente artigo não têm por desiderato a elaboração de uma crítica às ideias defendidas por Carlos Maximiliano, tampouco desconstruir, por meio de pequenas considerações, o traba-lho que foi realizado pelo jurista ao longo de vários anos de atuação e estudo. Ao contrário, a pretensão é de evitar que, no intuito de defender práticas ativistas e subjetivistas, sejam sacadas frases de efeito da obra referenciada para o fim de defender a subjetividade do intérprete no momento da inter-pretação e aplicação do direito em terrae brasilis.

O livro Hermenêutica e aplicação do direito representa um marco inconcusso no âmbito do direito pátrio, uma vez, que até então, os estudos acerca da hermenêutica jurídica e da própria aplicação/interpretação do direito não haviam atingido o patamar conceitual e histórico de investigação da matéria. Em síntese, a fonte de suas ideias advieram dos pensadores do liberalismo jurídico continental, e, em parte menos significativa, da sociologia jurídica norte-americana, tendo como plano de fundo as fundamentações e ideais defendidas por Montesquieu, François Geny, Rudolf Stammler, Edmund Picard, Marcel Planiol, Rudolf von Iehring, Roscoe Pound, entre outros1.

Nas linhas introdutórias de sua obra, Maximiliano indica que a tarefa de estudo em que a herme-nêutica se debruça é a de "deter-minar o sentido e o alcance das expressões do Direito"2.

Para chegar-se à tarefa da hermenêutica indigitada, o autor aponta para a necessidade de que o intérprete, ou em seus dizeres, o executor da norma, proceda a uma pesquisa da relação existente entre o texto abstrato das leis positivas - já que apesar de estabelecerem normas em linguagem clara e precisa, estas são elaboradas de forma ampla e geral -, e o caso concreto, para então aplicar o direito3.

Já a interpretação, segundo Maximiliano, seria a arte técnica dotada dos meios necessários para se chegar aos fins colimados pela norma4.

Na sequência da apresentação de seus argumentos, o autor faz o alerta de que não basta que o intérprete tenha o conhecimento acerca das regras aplicáveis para determinação do sentido e do alcance dos textos para a concretização do processo interpretativo, sendo extremamente necessário que os métodos de interpretação sejam inseridos em um todo lógico, em um complexo harmônico. É aí que a hermenêutica desempenharia o seu papel para o fim de "proceder à sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito"5.

No capítulo I, intitulado Aplicação do Direito, Carlos Maximiliano apresenta os conceitos de aplicação e de interpretação do direito, definindo que o primeiro consiste, basicamente, no enquadramento do caso concreto e uma norma jurídica adequada, i. e., o processo de aplicação objetiva investigar "o modo e os meios de amparar juridicamente um inte-resse humano"6.

No que tange à interpretação, o autor7 afirma que:

Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém.

Para Maximiliano, tudo é passível de interpretação, desde a busca pela significação de concei-tos e intenções, fatos e indícios, até mesmo o silêncio8. Deveras, ao intérprete cabe a difícil tarefa de reconstrução ou síntese do texto e identificar o sentido e o alcance de suas prescrições, uma vez que, segundo o autor9: "Inter-pretar uma expressão de direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente fa-lando; é, sobretudo, revelar o sen-tido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta."

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O processo interpretativo, alerta Carlos Maximiliano10, não é uma arte para simples deleite intelectual, tampouco para simples comparação e explicação dos textos, mas em verdade, trata-se de uma disciplina eminentemente prática e útil na atividade diária do intérprete do direito, como orientadora daqueles que se preocupam em promover o progresso dentro da ordem.

Até aqui, com a exceção de pequenas objeções de cunho que poderiam ser objeto de outro estudo, como, a guisa de exemplo, a ausência de enfrentamento pelo autor com relação à ideia da "compreensão", como antecedente à própria ideia de interpretação11,

não se vislumbra nas ideias defendidas pelo professor Maximiliano qualquer possibilidade de práticas subjetivistas/ativistas por parte do intérprete.

No entanto, consoante se demonstrará a seguir, na sequência dos argumentos de Maximiliano, notadamente no que tange à descrição da atividade exercida pelo exegeta no processo de interpretação da norma, tem-se a impressão de que o ato de aplicação do direito é dependente do aspecto subjetivo/ coeficiente pessoal do intérprete, o que, se confirmado, poderá permi-tir, na práxis jurídica, a defesa de posturas ativistas.

Ao discorrer sobre a atividade do intérprete/exegeta, Carlos Maximiliano12 afirma que:

A atividade do exegeta é uma só, na essência, embora desdobrada em uma infinidade de formas diferentes. Entretanto, não prevalece quanto a ela nenhum preceito absoluto: pratica o hermeneuta uma verdadeira arte, guiada cientificamente, porém jamais substitu-ída pela própria ciência. Esta elabora as regras, traça as diretrizes, condiciona o esforço, metodiza as lucubrações; po-rém, não dispensa o coeficiente pesso-al, o valor subjetivo; não reduz a um autômato o investigador esclarecido.

(grifos não originais).

Por simples ilação do trecho in-digitado, é possível concluir que, para o autor, a subjetividade do intérprete não pode ser dispensada/ dissociada da atividade de inter-pretação, de modo que, nos seus próprios dizeres, cabe ao exegeta recompor o conjunto orgânico, do qual a lei oferece apenas uma das faces.

Para Maximiliano, embora a lingua-gem seja dotada de clareza, é imperioso atentar-se para a face oculta da lei - até mesmo porque, diferente dos preceitos matemáticos, não é possível definir com exatidão o alcance de um texto -, e encará-la como resultado de uma obra humana, portanto, imperfeita, com todas as suas possíveis deficiências e fra-quezas. Segundo as lições defendidas, caberia ao intérprete descobrir a face oculta da lei, determinando--lhe o sentido e alcance.

Mas não é só. O autor13 também atribui ao intérprete a função complementar e integrativa da própria lei escrita, uma vez que, como a letra da lei é estática, e como tal a letra permanece, a função inter-pretativa dinamizaria o direito, permitindo que o intérprete altere o sentido do texto, adaptando-se às mudanças que a evolução opera na vida social.

Em outra passagem da obra, ao tratar sobre a escola da livre-indagação criada por François Geny, Maximiliano chega a afir-mar que a justiça das...

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