Hermenêutica histórica do seguro contra acidentes do trabalho

AutorAntonio Bazilio Floriani Neto
Ocupação do AutorPós-graduado em Direito Previdenciário e Processual Previdenciário pela PUCPR. Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUCPR. Professor de pós-graduação lato sensu. Advogado
Páginas21-46

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2. 1 A interdisciplinaridade atinente à questão

A produção científica deve ter uma intenção e uma finalidade. Quanto ao primeiro propósito, seu escopo é fornecer "clareza conceitual e coerência lógi-co-semântica"1. Já sob a perspectiva finalística, a busca deve ser a solução de problemas, seja em maior escala, como, por exemplo, aqueles que colocam a sobrevivência do homem em xeque, seja em menor escala, caso de questões meramente especulativas2.

A fim de responder as hipóteses lançadas, faz-se uso do conhecimento, o qual "tende a se padronizar, uniformizar, como qualquer produto cultural, seja ideia, obra, comportamento ou costume"3. E para obter melhores resultados, surge a necessidade de sistematizá-lo, organizá-lo e setorizá-lo4.

Não por acaso, portanto, a formação profissional decorre do agrupamento de disciplinas básicas: o dentista concentra as atenções de seus estudos na biologia e na química; o engenheiro, na matemática e na física; e o advogado,

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nos conhecimentos filosóficos, legais, históricos e sociológicos. Em outros termos, "para conhecer, o homem recorta parcelas da realidade a fim de melhor estudá-las"5.

Importante assentar que tais parcelas não devem ser analisadas sob o prisma do imperativo reducionista6, haja vista estarem intrinsecamente relacionadas. Diz-se isso pois as disciplinas anteriormente citadas nada mais são do que aplicações de conhecimentos matemáticos, filosóficos, físicos, químicos, biológicos, geográficos, históricos e econômicos, dentre outros. E mais, a matemática engloba ensinamentos de geometria, álgebra e assim sucessivamente7.

De outro giro, a complexidade de um sistema, de um conhecimento ou de uma ciência leva muitas vezes a um pensamento redutor. No caso do direito, há casos de textos doutrinários que recomendam o seu isolamento, mediante o estudo exclusivo das normas jurídicas. Trata-se do imperativo reducionista, o qual propaga homogeneidade sintática, idêntica em qualquer espaço ou tempo. Esta forma de proceder"[...] seria a condição necessária para compreender um sistema complexo como o jurídico. Note-se: reduzir seria condição de sua compreensão e, portanto, condição de possibilidade da Ciência do Direito"8.

No entanto, com o desenvolvimento ocorrido nas últimas décadas do estudo de sistemas complexos9, o pensamento reducionista revelou-se inadequado, haja vista a inaptidão em observar as particularidades que são visualizadas somente quando o todo é considerado10.

Mas o que seriam os sistemas complexos? J. B. Ruhl ensina que são teorias cujo escopo é o estudo de como agentes interagem e constroem o produto de suas

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interações11. Um exemplo é a teoria dos jogos12, estudada na Análise Econômica do Direito, segundo a qual agentes devem atuar com base na análise da estratégia bilateral a fim de conseguir uma ação ótima. Trata-se de um caso em que o pensamento redutor não seria hábil a explicar, tampouco compreender, a relação.

Em suma, as teorias dos sistemas complexos voltam suas atenções à construção de modelos para um razoável número de contextos em que cada agente age de forma heterogênea e influencia nos resultados e, como tal, vale a pena explorar como ele pode informar a nossa compreensão do sistema legal13.

Logo, para compreender o direito tributário, previdenciário ou empresarial, não basta conhecer a "unidade mínima e irredutível, de estrutura idêntica e eterna, e dali seguir no conhecimento de cada uma dessas unidades formadoras do sistema [...]"14.E mais, há questões, como aquela atinente à consagração da saúde e da segurança do trabalhador, que envolvem não só diferentes disciplinas do saber jurídico, como, por exemplo, a trabalhista, civil, previdenciária, tributária, penal, mas também outras ciências, como a engenharia de segurança do trabalho e a medicina do trabalho15.

Assim sendo, para compreender este assunto, é preciso se desvencilhar do pensamento cartesiano e ir ao fundo das particularidades. Não se trata, contudo, de misturar saberes e formar um "coquetel de ciências"16 ou de

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conhecimento, mas sim de compreender "o que há nas fronteiras entre as disciplinas científicas, suas inter-relações e suas trocas retroativas"17.

Para tanto, necessário tecer algumas considerações sobre direito e sistema jurídico.

2.1. 1 Sistema jurídico: mobilidade e dificuldade de operação

Folloni destaca que o "direito é muito mais que linguagem, mas é fundamentalmente linguagem. Enquanto tal, merece atenção integrada a seus planos sintático, semântico e pragmático"18.

O primeiro plano seria o responsável por examinar "os inter-relacionamen-tos que as normas mantêm umas com as outras"19; já no plano pragmático, as atenções são voltadas para os efeitos das normas, ou seja, as consequências destas na vida das pessoas20.

No plano semântico, inerente ao significado das palavras, tem-se que o próprio vocábulo direito não é uníssono: pode refletir a ideia de lei, algo positivado, estabelecido ou, em outros termos, direito seria a lei posta pelo Estado. Como consequência, tem-se que somente a lei teria o condão de obrigar o cidadão, sendo o direito um produto do Estado21.

Outro sentido à palavra é oriundo de um exercício cognitivo mais amplo, refletindo a ideia de um "[...] sistema de princípios (normas) coercitivamente impostos a determinado grupo social por qualquer organização, social, dotada de poder para tanto"22. Nesta linha de raciocínio, o direito é o modo de produção social, eis que atua como elemento de mudança da sociedade, interagindo com a estrutura social global23. Trata-se de um produto cultural, de sorte que varia de região para região, de tempos em tempos. Para o presente estudo, nos interessa esta última concepção, a qual, cumpre destacar, encontra sintonia com o enfrentamento das complexidades.

Pois bem. De acordo com a concepção mais abrangente de direito, este representa um sistema e, para agir como tal, fala-se em ordenação e unidade24.

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O conceito de ordenação estaria intrinsecamente ligado à adequação axiológi-ca, valorativa. Já unidade corresponde à ordem teleológica, ao fato de que as normas fazem parte de um todo, relacionam-se entre si.

Nesse sentido, Norberto Bobbio destaca que as normas jurídicas não existem isoladamente, formando a noção de ordenamento25. E mais, o autor afirma que "[...] uma definição satisfatória do Direito só é possível se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamento jurídico"26. Trata-se não de analisar o direito em si, aqui entendido como sistema, mas como este se relaciona com a sociedade no qual está inserido. Tercio Sampaio explica: "o contexto, como um todo, tem que ser reconhecido como uma relação ou conjunto de relações globais de autoridade. Tecnicamente diríamos, então, que a validade de uma norma depende do ordenamento no qual está inserida"27.

Fosse o sistema jurídico fechado e estático, pouco iria se aperfeiçoar e dificilmente conseguiria retratar (ou regulamentar) a realidade por muito tempo. No entanto, por ser aberto, incompleto, está em constante transformação e justamente por conta disso fala-se que o direito é dinâmico e pode ser aperfeiçoado. Tercio Sampaio atribui essa dinâmica ao fenômeno da positivação, responsável por causar uma reestruturação do direito: pois sua congruência interna deixa de assentar-se sobre a natureza, o costume, a razão, e passa, reconhecidamente, a basear-se na própria vida social moderna, com sua imensa capacidade para a indiferença: indiferença quanto ao que valia e passa a valer (aceita-se tranquilamente a mudança), quanto à incompatibilidade de conteúdos (aceita-se a inconsistências e convive-se com ela), quanto às divergências de opinião (aceita-se a tolerância como uma virtude-chave)28.

A alta mobilidade de um sistema jurídico, ocasionada por sua dinamicida-de, de outro giro, resulta na dificuldade de operá-lo29. Para melhor entender esta assertiva, Ferraz Junior trabalha com o conceito de dinamicidade e Folloni com o de dificuldade de operação.

Ao comentar a dinamicidade, Tercio Sampaio Ferraz Junior faz analogia com um jogo de futebol em que jogadores, juízes, bola e até mesmo as linhas

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do campo e as traves mudam de posição, restando ao jurista "com base na ciência dogmática, operar a possibilidade do jogo. Para isso, necessita de conceitos operacionais dinâmicos, sem os quais os conflitos sociais seriam indeci-díveis. Embora dinâmicos, esses conceitos têm de possibilitar alguma forma de estabilidade"30.

Já quanto à dificuldade de operação, Folloni menciona a existência dos acasos e indeterminações. Tais fatores não são previstos em uma concepção hierárquica e organizada de sistema jurídico, pautada pelos princípios de ordem, de separação, de redução e de validade da lógica dedutivo-indutivo-iden-titária31, os quais são assim definidos:

[...] o primeiro deles, princípio de ordem, vê o universo como um todo ordenado, determinado. Sofre a oposição do modelo ordem-desordem--organização: o universo é uma ordem no interior da qual há intensa desordem; até por isso, essa ordem é instável e pode ser desorganizada por um acontecimento ou por uma emergência, o que trará uma reorganização, gerando uma nova ordem, por sua vez também instaurável. O segundo princípio prega a separação da realidade em partes para fins de estudo, e a disjunção entre o sujeito conhecedor e o objeto a ser...

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