Hermenêutica descolonial: descortinando o esgotamento do discurso jurídico-político liberal

AutorDaniel Diniz Gonçalves e Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega Correio
Páginas46-66
Direito, Estado e Sociedade n.52 p. 46 a 66 jan/jun 2018
Hermenêutica descolonial: descortinando
o esgotamento do discurso
jurídico-político liberal
Decolonial hermeneutics: revealing the exhaustion of the
legal and political speech of liberalism
Daniel Diniz Gonçalves*
Universidade de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto/SP, Brasi.
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega Correio**
Universidade de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto/SP, Brasil
1. Introdução
O presente estudo busca empreender uma análise hermenêutica crítica do
modelo de constitucionalismo da modernidade liberal, ou seja, dos proje-
tos de Estado, de Política e de direito que o mesmo enseja, e dos processos
ideológicos e políticos de sua hegemonização no imaginário dos povos, com
um recorte específ‌ico centrado na linguagem e na análise de alguns concei-
tos que densif‌icam, incorporam e traduzem, em última instância, todo um
arcabouço jurídico e político a que chamamos “Modernidade Liberal”.
Parte-se do pressuposto de que a linguagem, entidade fenomênica so-
ciocultural, envolve a conglobação indissociável do observador (intérpre-
te) e da realidade observada (contexto), de maneira que as peculiaridades e
limitações do observador alterarão sua percepção de mundo, pois as coisas
não são o que são (essência), mas sim o que se fala delas (signif‌icação).
* Mestre em Direitos coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto. Graduado pela faculdade
de Direito da UFMG. Especialista em Constitucional e Previdenciário pela UNIDERP. Procurador Federal.
E-mail: daniel.dinizgoncalves@gmail.com
** Mestre e Doutora pela PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da UFG
– Universidade Federal de Goiás e da UNAERP – Universidade de Ribeirão Preto. Advogada. E-mail:
mcvidotte@uol.com.br
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Direito, Estado e Sociedade n. 52 jan/jun 2018
Hermenêutica descolonial: descortinando
o esgotamento do discurso jurídico-político liberal
A linguagem, e a série de conceitos que ela traduz, é a medida de nossa
percepção do mundo. Assim considerado, se a essência cede espaço à sig-
nif‌icação, e a signif‌icação constrói-se com o uso da linguagem, de maneira
que intérprete e contexto da realidade quedam inseparáveis, torna-se ilegí-
timo, senão desleal, laborar-se com conceitos universais, imutáveis e uni-
formes: a imposição de tais conceitos, ante à impossibilidade de percepção
única do real, é a conduta imperialista e dominadora da modernidade.
O Estado Nacional, orientado pelo discurso da modernidade, cons-
truiu todo um aparato institucional (escola, mídia, exército e polícia) para
se certif‌icar da uniformização das compreensões de mundo (instrumentos
de hegemonização), que, por sua vez, irão criar um imaginário coletivo,
um senso comum, através do qual as pessoas irão interpretar o mundo.
A modernidade confecciona e reproduz, em sua indústria institucio-
nal, um discurso simbólico e linguístico com um limitado cardápio de
pré-compreensões de mundo, impondo-o à coletividade. Assim, as pré-
-compreensões liberais do real, sobretudo no contexto político-jurídico,
atinente às categorias e noções de democracia, constituição e povo, serão
apresentadas como verdades científ‌icas e universais, mutilando, silencian-
do e excluindo todos os contextos que não são capazes de explicar.
É desse processo linguístico de hegemonização no contexto político-
jurídico de que se ocupará o trabalho vestibular.
O referencial teórico deste trabalho é a obra de Ricardo Sanín Restre-
po, a “Teoria Crítica Constitucional”, que oferta importantes achegas para
desvelar as inconsistências lógicas e hermenêuticas dos conceitos univer-
sais – certos conceitos sequer existiriam na linguagem.
O desenvolvimento do trabalho será apresentado em 3 (três) partes,
com objetivo de se ter uma cadência lógica de exposição do tema, permi-
tindo uma ampliação das possibilidades de compreensão do tema.
Primeiramente, cuidar-se-á de apresentar e analisar os conceitos “uni-
versais” que compõem o discurso político e jurídico da modernidade li-
beral e como os mesmos se prestam a assegurar a hegemonização de tal
discurso. “Universais”, como se verá adiante, são categorias linguísticas
com pretensões de serem atemporais, a-históricas e uniformes, enf‌im, de
serem, como já o evidencia o nome, universais. O tópico exporá os concei-
tos, as noções e as categorias linguísticas que se pretendem unívocos, ge-
rais e invariáveis que, independentemente dos contextos de compreensão,
provocam exclusão e dominação.

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