Henri Lefebvre: o espaco, a cidade e o "direto a cidade"/Henri Lefebvre: the "direct to the city" as a utopian horizon.

AutorCarlos, Ana Fani Alessandri

Em seu livro A sociabilidade do homem simples (1), Martins escreve que um novo problema nao sai do bolso do colete do pesquisador, mas surge a investigacao porque antes se torna um tema para a consciencia social.

Vida privada, vida cotidiana, como objetos de conhecimento cientifico, sao temas da atualidade, sao temas da consciencia social contemporanea e o sao porque, de algum modo, sao problemas para a sociedade Em relacao a sociedade nao ha como nao tomar consciencia de (novos) problemas e, em consequencia, propor socialmente um novo delineamento do que pode vir a ser objeto de conhecimento sem que eles se proponham tambem, de certo modo, a consciencia do homem comum. O debate sobre o "direto a cidade" se coloca nesta perspectiva: ele aparece como horizonte de luta no seio dos movimentos sociais a partir do questionamento sobre o modo como se realiza a vida urbana.

A sociedade constroi um mundo objetivo. Na pratica socioespacial, esse mundo se revela em suas contradicoes, num movimento que aponta um processo em curso subsumido a reproducao das relacoes sociais no atual estagio do capitalismo (enquanto relacao espaco-temporal. Isto e a praxis tem por conteudo um espaco e um tempo realizando como socio-espaco-temporal). O ponto de partida de nossa analise se baseia no fato de que e no espaco que se pode ler a realidade e as possibilidades concretas de realizacao da sociedade. Esse e tambem o plano da vida cotidiana e do lugar. Aqui explodem os conflitos que sinalizam as contradicoes vividas. Esses conflitos ganham visibilidade nos espacos publicos, hoje, lugar de manifestacoes dos movimentos sociais como consciencia reveladora do processo de alienacao atual. Podemos afirmar que a reproducao da cidade hoje sob um novo momento da acumulacao - financeira- atualiza a alienacao do mundo atraves do afastamento do sujeito produtor de sua obra - a cidade - vivida como estranhamento.

A hipotese, aqui desenvolvida e que o debate sobre o "direto a cidade" e um momento necessario de explicitacao desse processo. Portanto o que esta em questao aqui e: qual e a realidade que coloca para todos - movimentos sociais e investigadores - o tema do "direto a cidade" e mais, como entender a contribuicao de Henri Lefebvre para este debate?

O urbano, o cotidiano e o espaco (como terceiro termo da triade) aparecem no movimento do pensamento de Lefebvre, como conteudo da problematica urbana na qual se debruca para pensar a realidade (da segunda metade do seculo XX) em sua tendencia inexoravel ao mundial num mundo tornado urbano construido como o negativo daquele dominado pela logica da acumulacao orientada pela hegemonia do industrial.

A compreensao desta realidade se realiza nas obras do autor, pela critica que se efetiva por meio de atos teoricos, alguns dos quais pretendemos explicar neste artigo. Em primeiro lugar se trata de uma critica do existente. Em segundo lugar, o processo do pensamento critico indica o caminho /necessidade de passagem da fenomenologia a analise; da logica a dialetica iluminado as contradicoes capazes de orientar o mundo em outra direcao - isto e, a critica consiste na possibilidade de transformacao do existente movendo-se em direcao ao futuro.

Aqui a dialetica da teoria e pratica permite pensar no movimento e no momento da acao que transforma a realidade nos coloca diante do novo (a constituicao da sociedade urbana como realidade/virtualidade (LEFEBVRE,1970) e da necessidade de sua compreensao. O ponto de partida e a pratica urbana e o caminho e a superacao dos conceitos parciais objetivando a construcao de uma problematica reveladora do mundo moderno. Para Lefebvre a problematica do mundo moderno e urbana revelando uma determinacao espacial. Para o filosofo vivemos um momento do processo civilizatorio aonde se assiste a passagem da historicidade a espacialidade inaugurando o que chama de um periodo trans-historico, aonde o espaco ganha centralidade sobre o tempo (LEFEBVRE, 2001).

Esse raciocinio tem como fundamento a explosao dos referenciais vindos da historico anunciando a modernidade momento no qual as relacoes capitalistas passam a se determinadas pelo processo de producao do espaco. Neste momento desloca-se o foco central do processo de acumulacao capitalista: da producao de mercadorias classicas para a producao do espaco.

Essa proposta do autor ganha atualidade explicativa no seculo XXI aonde a cidade se transforma em mercadoria escancarando o processo contraditorio da producao do espaco tornado valor de troca como momento importante do processo de valorizacao do capital. E aqui que o espaco aparece como segundo setor da economia.

O imobiliario, como se diz desempenha o papel de segundo setor, de um circuito paralelo ao da producao industrial voltada para o mercado de bens nao duraveis ou menos duraveis que os imoveis. Esse segundo setor absorve os choques. Em caso de depressao para ele afluem os capitais (...). Enquanto uma parte da mais valia global formada e realizada na industria decresce, aumenta a parte de mais valia formada e realizada na especulacao e pela construcao imobiliaria. O segundo setor suplanta o principal. (LEFEBVRE:1970,211/212) Significa dizer que as crises de acumulacao do capital se resolvem atraves da reproducao o espaco.

Essa ideia vem de encontro ao debate geografico sobre a producao do espaco - refiro-me aqui a sua vertente critica- segundo o qual a cidade hoje se transforma em mercadoria como desdobramento do processo de producao do espaco tornado mercadoria no seio do processo da producao capitalista. Neste movimento o valor de troca suplanta o valor de uso estrangulando-o, trazendo como consequencia a degradacao das relacoes sociais na cidade atraves do aprofundamento da segregacao espacial. Este movimento da historia fundamenta e justifica as lutas pelo espaco. E aqui que se localiza e ganha atualidade o debate sobre o "direto a cidade" como aposta e mediacao entre realidade presente e o futuro da sociedade.

O caminho da critica aparece como momento indispensavel da compreensao da realidade bem como da possibilidade de sua propria transformacao, uma vez que o ato de conhecer traz em si a utopia. O materialismo aponta a necessidade portanto, da juncao de dois principios opostos : nao existe pensamento sem utopia (sem exploracao do possivel) e nao existe pensamento sem referencia a uma pratica que, do ponto de vista do debate urbano se associaria a producao do habitar e do uso dando sentido a apropriacao como ato essencialmente humano (criativo).

  1. A geografia critica e a analise espacial

    A hipotese, aqui formulada, e que o debate sobre o "direto a cidade" desenvolvido por Lefebvre ilumina a importancia do espaco na compreensao do mundo moderno como movimento constitutivo da pratica (e, portanto, da elaboracao do projeto utopico).

    Se parece nao haver duvidas de que entramos num periodo urbano sua compreensao todavia, tem criado o que Lefebvre chama de um "campo cego" promovido pela extrema especializacao das disciplinas trazendo como consequencia a ignorancia e a degeneracao da utopia limitada pela analise presa ao presente, a ideia de espaco como quadro fisico, ao mesmo tempo que encobre "o urbanismo como estrategia de classe". (LEFEBVRE, 1970:208).

    Faz parte do campo cego a vulgarizacao da obra de Lefebvre e ideologizacao do debate sobre o direto a cidade por ele apresentado em 1968, derivado em politica publica.

    A chamada geografia urbana critica tem colocado em xeque a compreensao da cidade enquanto quadro fisico, ambiente construido, bem como sua interpretacao enquanto sujeito de acao que domina a investigacao urbana. Iluminar este "campo cego" tem como primeira condicao uma inversao teorica: a cidade nao e o sujeito que define a acao urbana, ao contrario, a cidade e uma obra civilizatorio, produto social e humano. Esta inversao ganha importancia impar ao permitir iluminar os sujeitos produtores da cidade segregada numa sociedade de classes.

    Nessa perspectiva critica, a analise geografica do mundo e aquela que caminha no desvendamento dos processos constitutivos do espaco enquanto producao social e historica. A questao espacial (2) se elabora no plano da construcao do humano na medida em que o ato/atividade de produzir espaco e em si um ato e atividade de producao da vida. Isto e, a sociedade se constitui como realidade pratica atraves de um conjunto de producoes: uma delas e o espaco.

    Nesta condicao o espaco e produto, condicao e obra da realizacao da vida humana (CARLOS,1994). Nesse contexto a cidade aparece como trabalho materializado ao longo de todo o processo historico - objetivacao do sujeito. E processo de producao continuada revelando o conteudo da vida. Deste modo, sua producao enquanto movimento e (momento) revela a pratica espacial. A natureza da cidade e, portanto, social. Nesse pressuposto as determinacoes do espaco - sua lei geral - liga-se, submete-se e explica-se como aquelas da sociedade. Assim a producao do espaco se articula a reproducao das relacoes socias de producao. A existencia das coisas nao existe fora da pratica e a consciencia e um produto social. A criacao do homem por ele mesmo em condicoes praticas ilumina o cotidiano enquanto a producao do espaco e a objetivacao de um processo historico em um mundo de coisas ao mesmo tempo em que a tomada de consciencia da alienacao que sustenta o processo (alem de ser seu produto).

    Ao longo do processo historico, a reproducao produz o espaco enquanto mercadoria e nesta interpretacao, a Geografia (critica) permite deslocar o enfoque do espaco enquanto localizacao e palco da atividade dos grupos humanos para compreendelo enquanto producao do trabalho social iluminado uma sociedade de classes como sujeito deste processo de producao. Todavia, no capitalismo a cidade como seu produto torna-se mercadoria e o espaco se usa e vive em fragmentos. O espaco-mercadoria como desdobramento necessario da producao, sob a egide do capitalismo, aponta a fragmentacao do espaco pelo mercado imobiliario...

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