Helênia e Devília (II)

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas383-401

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46. Repensando o egologismo

A teoria do direito natural existencial, bem como seu corolário, a noção de direitos humanos ao mesmo tempo apriorísticos e históricos, não se esgota nos conteúdos jurídicos e políticos das regras que os definem, mas se articulam com outra poderosa corrente do pensamento jusfilosófico, o culturalismo fenomenológico. Em especial, a compreensão dialética do objeto das ciências sociais e dos saberes jurídico e político, metodologia que subsidia as concepções tridimensionalistas e dialéticas do direito e do Estado.353 A axiologia desenvolvida com suporte nessas convicções veio a constituir o núcleo do direito natural existencial.

Embora todos os tridimensionalismos jurídicos tenham elaborado teses que convergiram para sistemas de valores, é em Carlos Cossio que se encontra a mais vigorosa afirmação de valores fundamentais que, tendo em vista a efetivação dos direitos humanos, são dignos de apriorização.

Com efeito, para responder à questão sobre quais direitos foram, estão sendo e serão elaborados através da história como conteúdo do direito natural existencial, recorre-se à teoria egológica do direito, de Cossio, terceira vertente para a indicação dos caminhos para a fundamentação metaética dos direitos humanos. Em particular, a visão da liberdade metafísica como pressuposto ontológico dos valores e direitos deles derivados, bem como a forma como são explanados.

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A partir da análise fenomenológica da realidade subjacente ao que a dogmática jurídica tradicional propõe como constituindo o direito, considera Cossio que a essência ontológica da norma jurídica é de natureza ideal e que a do direito, enquanto forma de experiência social concreta, radica na intersubjetividade das condutas. A norma jurídica é então o conceito que sintetiza a união entre sujeito e objeto do conhecimento jurídico, sendo este objeto, no que releva à sua materialidade, a interferência intersubjetiva das condutas no meio social. Mas ambos se fundem nas valorações canalizadas pela norma, o que a ciência egológica tem em comum com os tridimensionalismos de Reale, Goldschmidt e Recaséns.

Para Reale, o significante básico para a definição dos direitos fundamentais é a pessoa humana. Essa visão traz implícita a ideia da liberdade, apresentada pela teoria egológica como entidade metafísica que se fenomeniza. Ela é indissociável da pessoa e, portanto, condição unitária de todos os valores e direitos neles calculados e também condição do próprio direito como disciplina da conduta.

A liberdade é, assim, definida por Cossio como axioma ontológico fundamental do direito, expresso no brocardo “tudo o que não está juridicamente proibido está juridicamente permitido”. Nas palavras de Cossio, “el dato ontológico de que lo primero y originario del Derecho, como contenido, es la libertad jurídica”. Mais adiante: “La única libertad verdadera, es decir la única libertad que sea libertad, es la libertad metafísica.354Esclareça-se que liberdade metafísica é a originária, ínsita na vontade do sujeito, em virtude da qual ele pode optar entre todas as possibilidades decorrentes da interferência intersubjetiva de condutas, inclusive a prática de atos definidos como delitos. Não se trata do livre-arbítrio característico da natureza racional do homem, mas de apanágio inerente à conduta no direito: liberdade jurídica.

Compreendida como arcabouço dos valores e, via de consequência, de todos os direitos subjetivos, essa noção de liberdade metafísica que se identifica com a liberdade no direito não é somente característica do culturalismo, pois é também ponto de encontro entre Cossio e Rawls, uma vez que ambos a apresentam como autonomia e ontologicamente vinculada aos valores alcançáveis por meio da razão e da voluntariedade.

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Na concepção egológica, a liberdade metafísica se fenomeniza de modos diferentes, e essas diferenças refletem os valores básicos,355 o que leva a ter por fundamentais os direitos a eles ligados. São especificações dogmáticas, visto que o sentido jurídico das condutas sobre as quais incidem baseia-se na lei.

A análise fenomenológica da norma jurídica como objeto ideal leva às formas jurídicas subsumidas na estrutura lógica da regra de direito, que compreende os quatro elementos básicos da interferência intersubjetiva de condutas: o fato antecedente definido como jurídico, envolvendo os fatos naturais e os atos racionais, do qual deriva imputativamente a prestação, e o ato constituinte do inadimplemento do dever de prestar, ou deveres correspondentes, caracterizando-se o ato ilícito, relacionado diretamente ao dever de aplicar a sanção jurídica.

A imputação levada a efeito significa que o enlace entre fato/ato e prestação, e entre ilicitude e sanção, é de caráter lógico, mas não alético, a lógica do ser, e sim apofântico, a lógica do dever-ser.

Essas quatro determinações normativas são manifestações da liber-dade jurídica, sendo que as modalidades resultam dos dois modos pelos quais a norma se refere à conduta e que traduzem as duas categorias lógicas pelas quais o fenômeno jurídico é cientificamente pensado: licitude e ilicitude.

Em sua conotação lícita, a interferência intersubjetiva possibilita uma escolha livre, sem consequências punitivas, é o fazer ou não fazer, em função do axioma ontológico fundamental que estabelece a identidade entre conduta e liberdade. Tanto faz realizar o ato quanto omiti-lo, pois em ambos os casos o agente estará dentro da licitude.

Já na conotação ilícita, o agente está submetido a um dever cujo incumprimento acarreta outro dever, o de o Estado – se considerado como forma atual de organização social – aplicar a sanção normativamente pre-vista. A liberdade implica a possibilidade de adimplir a obrigação ou de praticar o ato ilícito.

As formas jurídicas da liberdade reduzem-se, portanto, a quatro modos de exercício da conduta: ação, omissão, dever e delito. As três primeiras ocorrem no campo da licitude, e somente uma das formas de atua-

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ção caracteriza a ilicitude. Neste caso, optar pelo ilícito é também manifestação de liberdade, sabedor o agente de que sua escolha o leva à prática de atos contrários ou pelo menos não condizentes com o modelo preconizado pela regra jurídica. Já a implicação da ilicitude é sujeitar o agente do ato ilícito à sanção jurídica. E a liberdade, mais do que um direito subjetivo, é a condição necessária de todos os direitos.

Os atos de fazer, omitir, dever e delito confrontam-se na conduta em função dos dois aspectos da existência humana ressaltados no início, a individualidade e a socialidade. A primeira se manifesta como autonomia, a segunda, como heteronomia.

A autonomia importa o autodomínio da consciência individual, que determina o comportamento, ainda que influenciado pelas circunstâncias exteriores a ela, de que a natureza é a primeira. A determinação inicial da natureza é a própria sobrevivência, como singularidade e como espécie, e o valor proveniente dessa exigência é a segurança. O ser humano, como parte da natureza, almeja segurança para sobreviver, reproduzir-se e realizar-se em seu próprio ser até a transcendência.

A jornada do homem através da circunstância cósmica, bem como a ciência dessa jornada a partir da racionalidade, está envolta pelas condições subjetivas e intersubjetivas da segurança. É um valor que se manifesta no indivíduo como sentimento de segurança, que se amalgama com as condições sociais que possibilitam seu exercício pelo indivíduo, a paz e a solidariedade. Esta é o laço espiritual que une os transeuntes do espaço social, mas os três valores se encontram na interferência intersubjetiva das condutas na sociedade.

A heteronomia implica a imposição de determinações vindas do exterior da consciência. Elas se articulam com o forum internum da pessoa para assegurar a eficácia das determinações da autonomia, que impõem as garantias da heteronomia. Para que haja segurança é necessário haver ordem, e para haver paz impõe-se a garantia do poder, que se confunde com a própria forma de organização da sociedade. Poder não é a existência de uma autoridade suprema, mas a coordenação das miríades de centros de influência existentes nos diferentes e variados aglomerados sociais. Saliente-se que tal noção do poder disseminado, mas coordenado

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na organização social, antecede a tese foucaultiana da microfísica do poder. A organização do poder é a garantia da paz e da solidariedade.

Em suma, os valores da autonomia são a segurança, a paz e a solidariedade, que se encaixam respectivamente com os valores da heteronomia, a ordem, o poder e a cooperação.

Os valores se caracterizam por sua polaridade, e assim a todo valor positivo corresponde um negativo, ou desvalor. Seguindo a ordem acima, os desvalores da autonomia são a insegurança, a discórdia e a exclusão. Quanto aos da heteronomia, o desvalor do poder é a opressão, o da cooperação é a massificação. Esta consiste num modo de coexistir pelo qual se anula a personalidade dos indivíduos, que participam das tarefas sociais mecanicamente, como abelhas e formigas, tendo sua conduta moldada desde o exterior, sem a adesão da consciência.

Tal processo de massificação equivale ao que Marx, referindo-se ao trabalhador, definira como alienação, a inconsciência do real alcance do trabalho por ele realizado. Esse conceito, uma das categorias do pensamento crítico,356 abrange todo tipo de alienação, inclusive a artística e intelectual, bem como as formas mais refinadas produzidas pela manipulação ideológica. Entre estas, a manutenção da sociedade num estado de ignorância que impede seus integrantes de perceber o que realmente acontece na história.

Já a ordem apresenta dois desvalores, um intrínseco, que a nega axiologicamente, e outro extrínseco, que a nega faticamente. O desvalor intrínseco da ordem vem por sua hipertrofia: é a ordem...

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