Helênia e Devília (I)

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas351-380

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43. Repensando as utopias

Na política de efetivação dos direitos humanos, é possível situar as diversas tentativas doutrinárias de solução dos problemas irrompidos entre dois extremos em oposição: a opção por um modelo de sociedade ética, essencialmente boa, onde prevalecem os valores positivos decorrentes dos fundamentos metaéticos propostos pelas mesmas doutrinas, e a opção por um paradigma de sociedade aética, fundamentalmente corrupta, na qual a escolha de seus habitantes é pelos valores negativos, também engendrados pelas doutrinas metaéticas. São arquétipos extremos, que acabam por catalisar o dilema de seus cidadãos. Diz-se opção porque o pressuposto de ambas é a liberdade.

Proponho atribuir à sociedade ética o nome Helênia, e à comunidade aética, Devília.332 Ambos os tipos refletem-se nas utopias do presente, cujo repensar é então o caminho para uma visão crítica das teses metaéticas, com particular ênfase à questão dos direitos humanos, o que poderá indicar os meios para a superação da realidade indesejável subjacente às estruturas ideais tomadas por paradigma.

Helênia e Devília correspondem a dois protótipos de organização social, opostos em função dos valores nos quais se apoiam. Tais modelos, embora concebidos como amostra ideal de sociedades históricas, encontram seu suporte vital na própria ontologia do ser humano e social, cujas

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expressões foram analisadas quando se discorreu sobre as dimensões do humano.

Nestes capítulos finais, aponto a convergência de todos os enfoques para uma compreensão racionalmente concatenada dos direitos humanos.

No estudo sobre as doutrinas apriorista e aposteriorista, foram apresentadas as características marcantes de cada uma delas, sem maior preocupação crítica. Neste tópico, trata-se de considerá-las em conjunto, numa intertextualidade que conduz à fundamentação dialética dos direitos humanos.

A oposição entre Helênia e Devília manifesta-se em concepções bastante expressivas que revivem as utopias para, nos respectivos mode-los, haurir princípios que possam ou devam coadjuvar a organização política, com vistas à realização possível dos valores que sua ideologia subjacente sugere. São referenciais tomados como hipótese para a elaboração de teorias sobre a ordem social, as instituições jurídico-políticas e a efetivação da justiça.

As utopias do passado construíram cidades imaginárias que, na opinião de seus criadores e tendo em vista seus contextos ideológicos, conscientes ou não, corresponderiam ao máximo de perfeição política. A Cidade do Sol de Campanella, a Nova Atlântida de Francis Bacon e a Utopia de Tomás Morus constituem a tríade das grandes aspirações visionárias da Renascença, sendo que a obra de Morus assinala a origem do significado comum da palavra utopia. Mas o histórico das utopias não pode olvidar a República de Platão, nem a Cidade de Deus de Agostinho de Hipona.333

Esta, particularmente, composta entre 411 e 427 da era cristã, dez séculos antes do Renascimento, é o primeiro ensaio de compreensão da historici-dade dos acontecimentos em função de um objetivo escatológico, meta--histórico, que neste notável pensador medieval é a constituição de uma cidade santa, em função da qual Deus teria criado todas as coisas.

A Civitas Dei é precursora da utopia egológica, elaborada por Carlos Cossio, na qual se descreve a contradição entre uma comunidade de santos e outra em que se vivencia a guerra de todos contra todos. Agostinho nos apresenta o mundo como o lugar de combate entre a Cidade de Deus e a Cidade do Demônio. A primeira representa a solidariedade no bem; a segunda, a solidariedade no mal.

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Essas fantasias, ainda que calcadas numa visão realista do meio sócio-político em que foram produzidas, não passam de entidades místicas, que mais projetam as concepções éticas, filosóficas e religiosas de seus autores para a realização eudemonística do homem do que projetos políticos consistentes de transformação social.

As utopias do presente foram desenvolvidas após a Revolução Industrial inglesa e levaram em conta a problemática do enfrentamento entre a classe operária emergente e a nova burguesia, enriquecida à custa da exploração desenfreada do trabalho humano. Tendo em conta que o progresso industrial e científico deve conectar-se com a ascensão da sociedade, tornou-se necessário elaborar programas de reorganização social, subsidiados pela causa socialista, surgindo um conjunto de trabalhos teóricos configurativos de um socialismo utópico. Entre eles, Charles Fourier, em 1829, com seu projeto de harmonia social e política mediante a reorganização da sociedade em pequenas unidades autônomas; Robert Owen, criador do cooperativismo e inspirador do movimento cartista de emancipação obreira na Inglaterra, entre 1837 e 1848; e Claude Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, na França, por volta de 1828 a 1830. Quanto a este, sua compreensão da história assinala a distinção entre as épocas críticas e as orgânicas, admitindo que as estruturas sociais se transformam ao sabor da crise e da reorganização, o que repercute nas ideias e na moral. O conceito marxiano de ideologia encontra um precedente em Saint--Simon, que, ademais, influenciou uma plêiade de intelectuais, entre os quais Augusto Comte.

O socialismo utópico preludia a credulidade marxiana da coletivi-dade comunista fundada na abolição da propriedade privada dos meios de produção e constituída por cidadãos livres, porque liberados da alienação produzida pela exploração do trabalho humano. A preocupação central destas utopias é de natureza social, tendo o cuidado de alcançar certa isonomia econômica no seio da comunidade.

De caráter igualmente social é a quimera neoliberal, a do Estado mínimo, que paradoxalmente coincide com a ilusão socialista. Em ambas se preconiza a evolução da sociedade até um momento culminante de desvanecimento das instituições jurídico-políticas, por se tornarem su-

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pérfluas em virtude da plena realização de seus membros. O que as diferencia não é o ideal político, mas o método para alcançá-lo.334As idealizações que ora tomo por referencial são de outro tipo, de caráter mais jurídico e político do que propriamente social, e podem ser designadas como utopias estruturalistas.

Elaboradas a partir da segunda guerra mundial, ostentam uma característica diferenciada: não projetam o sonho da cidade perfeita, mas adotam modelos estruturais calcados no que entendem como ideal racional a atingir. Tal atitude lhes possibilita elaborar uma estrutura hipotética mínima de organização política, com abstração das circunstâncias que soeriam macular essa pureza estrutural. Com isso, estaria entreaberto o caminho para a ação tendente a evitar erros históricos, os percalços que o desenvolvimento racional do mundo teve que enfrentar e superar, impedindo o retrocesso para a barbárie.

Nesse sentido, merecem a denominação de utopias as estruturas normativas ideais elaboradas por Hart, Habermas, Dworkin, Rawls e Wittgenstein. Elas sonham com a sociedade autoinstituída, com indivíduos plenamente conscientes de seus deveres para com o todo, e também de seus direitos como membro de uma coletividade que o transcende e, sobretudo, como cidadão de um país ou da agremiação mundial. Tais direitos devem ser respeitados por todos. E quando houver a plena realização da sociedade como instituição que se mantém por suas forças intrínsecas, por sua autopoiese,335 o Estado e o direito tornar-se-iam supérfluos. Vislumbram assim um ideal metaético, cuja concretização leva a sociedade a se autoinstituir na plenitude da autorrealização dos indivíduos que a compõem.

Esse desiderato da perfeição comunitária está implícito no evolucionismo transcendental de Hegel e conduziu à tese do fim da história, em Kojève e Fukuyama.336As utopias estruturalistas, analogamente à idealização axiológica de utopia, internalizam a ideia de liberdade não propriamente como direito subjetivo, embora a apregoem como o mais importante dos direitos fundamentais, mas como pressuposto lógico e ontológico de todos os direitos. É condição sine qua non de todo princípio ético, uma concepção me-

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tafísica que a entende como originariamente ínsita na vontade do sujeito, em virtude da qual ele pode optar entre todas as possibilidades provenientes das interferências subjetivas e intersubjetivas das condutas, inclusive a prática de atos definidos como delitos. Não se trata do livre-arbítrio característico da natureza racional, mas da liberdade de conduta no seio de uma comunidade, uma liberdade de natureza político-jurídica.

Eis aí a questão crucial: como torná-la concreta, o que exige certa evolução na trilha de uma racionalidade articulada com o aperfeiçoamento ético do ser humano, em função de sua voluntariedade dirigida a esse objetivo. Este é o ideal a atingir pelo direito: muito mais do que manter a ordem social, harmonizando as interferências das ações individuais, é ordenar os caminhos para esse aperfeiçoamento.

Pode-se iniciar a análise das utopias estruturalistas com a tese de Hart, que apresenta um estruturalismo idealista e abstrato a partir de uma classificação das normas jurídicas em primárias de obrigação e secundárias de reconhecimento, câmbio e adjudicação.

Analogamente à tese de Hart, mas em sentido mais realista, procura Dworkin discernir a estrutura das sociedades presentes a partir da observação empírica. É o plano ideal confrontado com o real, analogamente à comparação procedida por Apel entre o consenso discursivo prévio, contrafático, e os consensos da vida real, precários e provisórios.

Em Hart, a estrutura básica da sociedade se funda na normatividade jurídica, conjunto de normas primárias e secundárias calcadas na existência de uma regra geral de reconhecimento. Dworkin recolhe a tese de Hart e propõe que as regras primárias de tal sociedade seriam as...

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