Habilitacao economica, genero e mudanca juridica/Economic empowerment, gender and legal change.

AutorPaniago, Marcela Sousa

Introducao

O presente estudo sugere correlacoes entre o reconhecimento de direitos ligados a genero e a habilitacao economica de individuos e grupos. Referidas correlacoes parecem expressivas quando a habilitacao economica da mulher, a partir do contexto de massificacao de sua inclusao no mercado de trabalho, e levada em conta para refletir sobre as transformacoes juridicas orientadas para o reconhecimento de direitos como sufragio, capacidade civil, direitos ligados ao trabalho e o divorcio. A correlacao tambem parece fazer sentido, ao menos em parte, para o fenomeno mais recente do reconhecimento de direitos LGBT como unioes, casamentos e adocoes por casais do mesmo sexo, que o estudo conecta a ascensao do "pink money" na porcao final do seculo XX. Nos dois casos, a habilitacao economica parece ter sido fator contextual relevante para conquistas juridicas ligadas a genero.

A analise da correlacao entre genero, habilitacao economica e reconhecimento de direitos e criticamente pautada no papel da afirmacao da igualdade pelo liberalismo classico. A afirmacao da igualdade formal, na passagem das sociedades de tipo tradicional para sociedades modernas ou de mercado, permitiu legitimar a rejeicao das hierarquias politicas herdadas da tradicao. Porem, ao mesmo tempo, embalou nova hierarquizacao, dessa vez dinamica, a ser dada pela habilitacao economica. Nesse sentido, a declaracao de igualdade formal de direitos coexiste com a desigualdade material na possibilidade de acesso a referidos direitos. E nada impede que a declaracao generica de igualdade formal coexista com desigualdades tambem formais especificas.

Esse foi o caso das previsoes legais do direito civil brasileiro, que por muito tempo estabeleceram a incapacidade civil das mulheres casadas, as quais precisavam de autorizacao marital para praticar certos atos da vida civil, como o exercicio de uma profissao. Durante o seculo XX, mulheres conseguiram o reconhecimento de direitos como o sufragio, direitos especificos na relacao de trabalho, tais como a protecao a maternidade, o fim da incapacidade civil relativa da mulher casada e o direito ao divorcio. Muito embora o reconhecimento desses direitos possa ser associado a massificacao do emprego de mulheres como forca de trabalho, especial atencao precisa ser conferida ao aspecto de que a mulher negra, no Brasil, sempre teve sua forca de trabalho explorada, sem que isso importasse o reconhecimento de direitos.

De modo semelhante, e possivel correlacionar conquistas de direitos LGBT em anos mais recentes, como unioes, casamentos e adocoes por casais do mesmo sexo, a percepcao, por setores empresariais nos mercados, da diferenciacao de seu poder de consumo - aspecto que a expressao "pink money", desde o setor de publicidade e propaganda, captura. No entanto, assim como e necessario realizar um recorte entre a trajetoria das mulheres em geral e das mulheres negras em particular, tambem e necessario diferenciar as pautas, conquistas e habilitacao economica de pessoas representadas pelas siglas LGB (lesbicas, gays e bissexuais) - esses sim comumente associados ao "pink money" - e a populacao T (transexuais, transgeneros e travestis), em geral empobrecida e marginalizada (1). Muito embora conquistas recentes da populacao T estejam em curso no Brasil, como o direito ao nome social e a mudanca do nome civil diretamente em cartorios, a temporalidade dessas conquistas e comparativamente posterior.

Em comum, tanto a trajetoria dos direitos ligados a mulher quanto dos direitos LGBT leva a inquietacoes no seguinte eixo: a habilitacao economica, e em especial, a habilitacao para o consumo social e economicamente relevante ou expressivo, parece estar ligada a ocorrencia de pontos de virada no reconhecimento de direitos de genero. Esta chave de compreensao permite distinguir as temporalidades de reconhecimento de direitos no interior de um extrato social aparentemente compartilhado, mas que em realidade tem diferenciais expressivos. Assim, nao foi a exploracao massificada do trabalho da mulher negra - historicamente precarizado e ligado a padroes de subconsumo - que se correlacionaram ao reconhecimento formal de direitos das mulheres, mas a massificacao do trabalho que alcancou a mulher de classe media, inicialmente nas economias capitalistas avancadas e, posteriormente, no Brasil. De modo semelhante, a populacao referida pela sigla LGB esta associada a padroes de habilitacao para o consumo relevante, em contraste com a populacao T, associada ao subconsumo. E, novamente, as pautas LGB (ligadas a sexualidade) tiveram temporalidade de reconhecimento acelerado em relacao as pautas da populacao T (ligadas a identidade de genero).

Referida inquietacao, com sua enfase nas relacoes entre habilitacao economica, genero e reconhecimento de direitos, nao busca invisibilizar a importancia da luta politica e dos movimentos sociais para a conquista de titularidades juridicas e a reversao de opressoes. Nao se trata, tampouco, de sugerir relacoes de causalidade. Mas de apontar a relevancia de um fator que, ao que os elementos levantados nesse estudo sugerem, parece estar imbricado no reconhecimento de novas formas juridicas ligadas a questao de genero, ou seja, ao poder pratico de reversao de hierarquias arbitrarias herdadas do passado.

Para tanto, a secao 1, a seguir, explora categorias envolvidas na transicao das sociedades tradicionais e do modelo de hierarquias rigidas, e imobilidade social, para as sociedades modernas ou de mercado, conectando essa transicao a emergencia da perspectiva economica e a afirmacao - meramente formal - da igualdade como principio juridico. Em seguida, a secao 2 correlaciona a habilitacao economica das mulheres mediante insercao massificada como forca de trabalho assalariada a temporalidade das mudancas mais significativas nos direitos das mulheres no Brasil. De forma analoga, a secao 3 focaliza a tematica do "pink money", e seu sentido de habilitacao economica para o consumo relevante, de modo associado a temporalidade do reconhecimento de direitos LGBT no Brasil. Referida secao e seguida das consideracoes finais.

1 Moeda, habilitacao economica e subversao de hierarquias sociais herdadas

No capitulo 3 do livro I do Capital, intitulado "O dinheiro ou a circulacao de mercadorias", Karl Marx retoma um ponto feito em Grundrisse: como a sociedade antiga denunciou o dinheiro como elemento de discordia (MARX, 2011, p. 166), ao passo que a sociedade moderna "sauda no Graal de ouro a encarnacao resplandecente de seu principio vital mais proprio." (MARX, 2017, p. 206) A ideia de que na sociedade moderna o "proprio dinheiro e a comunidade, e nao pode tolerar nenhuma outra superior a ele" (MARX, 2011, p. 166), enseja a nocao de que a posse do dinheiro vem a ser a base para o poder social, para o poder de classe.

Como no dinheiro esta apagada toda diferenca qualitativa entre mercadorias, tambem ele, por sua vez, apaga, como leveller radical, todas as diferencas. Mas o dinheiro e, ele proprio, uma mercadoria, uma coisa externa, que pode se tornar a propriedade privada de qualquer um. Assim, a potencia social torna-se potencia privada da pessoa privada. (MARX, 2017, p. 205-6) A compreensao desse aspecto ligado ao lugar do dinheiro nas sociedades modernas para Marx parece derivar ao menos de outras duas consideracoes fundamentais.

A primeira delas e o destaque do carater eminentemente social da mercadoria. Logo no capitulo 1 do Capital, Marx destaca o carater fetichista da mercadoria, pelo qual "as relacoes entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinacoes sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relacao social entre os produtos do trabalho." (MARX, 2017, p. 147) Em outros termos, a mercadoria consubstancia relacoes que no fundo sao entre pessoas e pessoas. Mais do que isso:

O carater misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu proprio trabalho como caracteres objetivos dos proprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que sao naturais a essas coisas e, por isso, reflete tambem a relacao social dos produtores com o trabalho total como uma relacao social entre os objetos, existente a margem dos produtores. E por meio desse quiproquo que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensiveis-suprassensiveis ou sociais. (MARX, 2017, p. 147) A segunda consideracao fundamental, complementar a primeira, e que o dinheiro tambem e uma mercadoria. Portanto, tambem ele - e de modo exponenciado - opera o fetiche de obscurecer como se fossem de coisas relacoes que primordialmente sao sociais:

e justamente essa forma acabada - a forma-dinheiro - do mundo das mercadorias que vela materialmente [sachlich], em vez de revelar, o carater social dos trabalhos privados e, com isso, as relacoes sociais entre os trabalhadores privados. (MARX, 2017, p. 150) O carater fetichista da mercadoria e especialmente do dinheiro reflete aquilo que, desde a antropologia, Louis Dumont apontou como traco distintivo da "ideologia moderna (2) e do lugar que nela ocupa o pensamento economico":

nas sociedades tradicionais, as relacoes entre os homens sao mais importantes, mais altamente valorizadas, do que as relacoes entre os homens e as coisas. Esta prioridade e invertida no tipo moderno de sociedade onde as relacoes entre os homens sao, ao contrario, subordinadas as relacoes entre os homens e as coisas. (DUMONT, 2000, p. 16) Referida inversao de prioridade seria apenas um dos tracos distintivos das sociedades modernas em relacao as sociedades tradicionais. Um outro aspecto se refere a que, nas sociedades tradicionais, ha predominio da concepcao holista, em que as necessidades de cada um sao "ignoradas ou subordinadas" a consideracoes relativas ao todo social, ao passo em que as sociedades modernas sao caracterizadas pelo primado da concepcao individualista que, "ao contrario, ignora ou subordina as necessidades da...

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