A guerra justa em Helênia & Devília

AutorLuiz Fernando Coelho
CargoDoutor em ciências humanas e livre docente em filosofia do direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Professor aposentado da UFPR Membro da Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social e da Academia Paranaense de Letras Jurídicas
Páginas17-21

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Numa definição abrangente, pode-se definir a guerra justa como a interferência nos assuntos de um Estado por parte de outro, mediante ameaça ou concretização do uso da força. Admite-se ainda a justificativa da guerra para coibir delitos contra os direitos humanos. Entretanto, existe uma limitação, que é o reconhecimento pelo direito internacional das razões que a provocaram, bem como a exigência de autorização de órgãos internacionais para tanto legitimados.

O direito humanitário tem distinguido duas formas de violação dos direitos humanos: acidentais e sistemáticas.

Violações acidentais podem ocorrer em países onde a norma-lidade da vida jurídica dos cidadãos atesta a legitimidade de suas leis e de seu governo, os quais, não obstante, não conseguem afastar totalmente a possibilidade de violação dos direitos humanos de alguém. Neste caso, os desvios de conduta das autoridades responsáveis ocorrem ao arrepio da lei e de forma dissimulada, para escondê-las da opinião pública. E estão ao alcance das medidas administrativas e judiciais cabíveis.

Existem, todavia, situações em que as transgressões ocorrem de maneira sistemática, com a conivência das autoridades e possivelmente com amparo na legislação do país.

Se as violações acidentais são observadas em regimes democráticos, nos quais a possibilidade de controle por parte do povo e dos meios de comunicação funciona como inibidora, as sistemáticas são apanágio de regimes autoritários, as mais das vezes opressores. A diferença entre essas duas formas está, portanto, na dependência da legitimidade dos governos, pois as violações sistemáticas são praticadas contra o próprio povo1.

Os abusos constantes engen-dram um dos problemas cruciais a respeito da efetividade dos direitos humanos: a possibilidade de intervenção estrangeira para proteção de populações espezinhadas em seus direitos humanos. Também envolvem a antinomia entre o princípio da autodeterminação dos povos e o direito de intervenção para fazer cessar tais delitos.

Um dos postulados basilares do direito internacional é a soberania, que implica o dever de não intervenção nos assuntos externos e internos de outro Estado. Paradoxalmente, o mesmo princípio subsidia a doutrina da guerra justa, o direito de intervenção para fazer cessar uma violação do direito internacional.

A soberania não admite limitações, e a proibição jurídica da guerra é uma limitação quando proveniente de entidades extraestatais. Mas o constitucionalismo atual supera esse argumento, já que o próprio Estado pode estabelecer uma autolimitação, que consiste na proibição constitucional do recurso à guerra.

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A constituição brasileira acolhe o princípio da autodeterminação dos povos e o da não inter-venção, atribuindo ao Congresso Nacional a competência exclusiva para autorizar o presidente da República a declarar a guerra e celebrar a paz. Note-se que entre os princípios que regem as relações internacionais consta também o da prevalência dos direitos humanos, o que poderia fundamentar eventual intervenção. É o que tem ocorrido no Haiti, na Líbia e no Afeganistão, só que por determinação das Nações Unidas.

A doutrina da guerra justa tem estado presente no pensamento político desde a antiguidade e foi desenvolvida por Agostinho, Tomás de Aquino e Francisco de Vitória. Também trataram do tema os clássicos tidos por fundadores do direito internacional, como Francisco Suarez e Hugo Grócio2. Na visão desses mestres, considera-se justa a guerra quando a defesa dos direitos e liberdades em jogo compense os sofrimentos que provoca.

Muitas invasões de territórios estrangeiros tiveram o respaldo da religião, que tornava justa a guerra para conquistar novos seguidores entre os povos invadidos. A colonização da América, que teve como trágica consequência a dizimação de populações indígenas e a destruição de suas culturas, foi considerada legítima pelo propósito da conquista de almas para Cristo. Outro exemplo significativo foi o das cruzadas, que levaram as monarquias europeias às aventuras da guerra para libertação dos territórios sagrados ocupados pelos muçulmanos. Quanto a estes, tiveram também sua quota histórica indigna quando procuraram expandir sua crença religiosa além das fronteiras do Islão.

A elocução guerra justa é um eufemismo. Nenhuma guerra é justa. Por mais que se encontrem alegações em favor desta tese, fica sempre a convicção de que a guerra é moralmente proibida. Nada há que a justifique ou legitime, e os exemplos históricos revelam que as justificativas propostas sempre dissimularam os verdadeiros desígnios das invasões armadas, como o colonialismo econômico, anseios expansionistas, megalomania política e ignorância de políticos gananciosos.

Nos dias atuais, há um argumento poderoso e definitivo para sepultar de vez a tese da...

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