A política e a sociedade do pós-guerra fria sob a ótica da modernização reflexiva e da crítica pós-colonial

AutorHenrique Abel
CargoMestrando em Direito Público pela Unisinos/RS
Páginas121-136

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Introdução

Logo após a queda do Muro de Berlim em 1989 e da extinção da União Soviética em 1991, a aurora do mundo unipolar capitaneado pelos Estados Unidos da América levou alguns a pensarem que estávamos testemunhando o fim das ideologias, o fim das contradições e, mais radicalmente, o fim da própria história.

Aparentemente, estava cumprida a famosa profecia de Ronald Reagan de que "a liberdade e a democracia jogarão o marxismo-leninismo na lata de lixo da história" (embora seja altamente questioná-

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vel, para dizer o mínimo, crer que questões político-sociais tenham sido mais decisivas para a queda do socialismo real soviético do que as contradições econômicas do regime).

Talvez nenhuma obra tenha simbolizado tão bem essa "euforia de fim de festa" da época quanto o livro O Fim da História e o Último Homem, de Francis Fukuyama, lançado em 1992. O próprio autor resume, melhor do que ninguém, a ideia medular daquele trabalho:

Este livro tem como origem distante o artigo intitulado 'O Fim da História?' que escrevi para a revista The National Interest, no verão de 1989. Nesse artigo eu argumentava que, nos últimos anos, surgiu no mundo um notável consentimento sobre a legitimidade da democracia liberal como sistema de governo, à medida que ela conquistava ideologias rivais como a monarquia hereditária, o fascismo e, mais recentemente, o comunismo. Entretanto, mais do que isso, eu afirmava que a democracia liberal pode constituir o 'ponto final da evolução ideológica da humanidade' e 'a forma final de governo humano', e como tal, constitui o 'fim da história'. (...) Embora este livro seja informado pelos fatos mundiais recentes, seu tema retorna a uma questão muito antiga: será que no fim do século XX faz sentido falarmos novamente de uma história coerente e direcional da humanidade que, finalmente, conduzirá a maior parte dessa humanidade à democracia liberal? Minha resposta é sim, por duas razões distintas. Uma está ligada à economia, e a outra diz respeito ao que chamamos de luta pelo reconhecimento'". O que nós podemos estar testemunhando é não apenas o fim da Guerra Fria, ou a passagem de um período de história do pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o

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ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano". (FUKUYAMA, 1992, p. 11 e 13)

Não foi, todavia, a primeira vez na história em que a supremacia econômica e militar de um modelo de desenvolvimento serviu de embasamento para uma teoria metafísica da superioridade "destes em detrimento daqueles". Com efeito, é difícil deixar de perceber o paralelismo entre a tese de Fukuyama - que evangeliza a democracia capitalista liberal ocidental como o ideal da história humana - e as ideias de Hegel (1770-1831). Este sustentava que a Europa era o centro do mundo em sua época, bem como que os europeus estavam legitimados pela graça divina em sua missão de levarem o progresso ao mundo. Nas palavras do célebre filósofo alemão (destaques em negrito nossos):

The nation to which is ascribed a moment of the Idea in the form of a natural principle is entru ted with giving co plete effect to it in the adv nce ofthe self-developin elf-con ciou ness ofthe world mind. This nation is dominant in world histo-ry during this one epoch, and it is only once that it can make its hour strike. In contr t with this it b olute ri ht of being the vehicle of this pre-sent stage in the world mincTs development, the inds of the other n tion re without ri hts , and they, along with those whose hour has struck already, count no lon er in world hi tory. (HEGEL. Elements of the Philosophy of Right, se-ções 346 e 347).

Durante décadas, após a Segunda Guerra Mundial, a história do mundo e todas as tensões a ela inerentes foram reduzidas/resumidas à agenda política e econômica de duas superpotências antagônicas,

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situação legitimada pelo medo do poderio nuclear de ambas. Findo este estado de coisas com a derrocada pacífica do socialismo soviético, Fu-kuyama apressa-se em ver aí o fim da história humana como um todo, aparentemente esquecendo-se que aquela "história" que ali se encerrava não era nada além de um ersatz de história - ou seja, um congelamento artificioso que ignorava todas as tensões, anseios e realidades regionais daqueles que eram meros coadjuvantes no antagonismo Washington versus Moscou, que monopolizou o palco das relações internacionais por tanto tempo.

Jacques Derrida (1994, p. 31), de forma eloquente, resumiu a impropriedade da tese que celebrava o fim da história:

Muitos jovens dos dias atuais (do tipo 'leitores consumidores de Fukuyama' ou do tipo 'Fukuyama' mesmo) não o sabem, sem dúvida, suficientemente: os temas escatológicos do 'fim da história', do 'fim do marxismo', do 'fim da filosofia', dos 'fins do homem', do 'último homem' etc. eram, nos anos 1950, há quarenta anos, nosso pão de cada dia. Esse pão de apocalipse, nós o tínhamos naturalmente na boca, já então, tão naturalmente quanto isto a que denominei a posteriori, em 1980, o 'tom apocalíptico da filosofia'. (...) o alarde midiático dos atuais discursos sobre o fim da história e o último homem parece-se, o mais das vezes, a um tedioso anacronismo.

A crítica feita à tese do "fim da história" se dá no sentido de que a mesma traz embutida dentro de si a perigosa ideia de que, diante das ruínas do socialismo real, não há mais qualquer possibilidade (ou necessidade) de novos discursos sociais críticos, na medida em que já se teria alcançado o desiderato da humanidade - a democracia liberal capitalista ocidental...

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