Guerra as drogas?/Drug War?

AutorFerrugem, Daniela

Ágatha, presente!

Introdução

O mês é setembro de 2019; a primavera e o florescer da natureza se anunciam. Muitas pessoas acordaram neste dia de setembro sem conhecer esta menina, e tantas outras dormiram sentindo a perda de sua vida. Um sentimento de consternação e raiva tomou conta do país: uma criança de oito anos tem seu trajeto alterado por balas, esta menina de apenas oito anos tem sua vida interrompida por tiros. A família perde parte de si e, com isso, a esperança de uma vida sem guerra.

A guerra às drogas não pede permissão, invade as casas, as comunidades, as vidas das pessoas, sem que elas tenham qualquer intenção de combater nesta batalha vil. Infelizmente Ágatha não está presente para seus familiares, não estará mais presente na sua escola e com os colegas nas brincadeiras no momento do intervalo. Resta-nos manter sua presença viva na luta pelo fim da guerra. Falar seu nome é interromper o silêncio, parte deste acordo tácito de parcela da sociedade brasileira que nega o racismo que a estrutura, negando também o horror desta guerra.

Está em curso um genocídio da população negra no Brasil. De pronto, gostaríamos de denunciar esta realidade, para que o incomôdo se instaure desde o início deste diálogo, permitindo que produza em nós a sensação de urgência que só um grande incômodo pode causar. Que nos faça "erguer a voz", como nos convoca bell hooks em seu livro que carrega este imperativo-ação como título (2019), para romper com o silenciamento histórico que o racismo produz, para barrar a letalidade que a guerra às drogas provoca.

Desse modo, no presente artigo pretendemos tecer considerações sobre a guerra às drogas no Brasil, sobre o genocídio da população negra e sobre o encarceramento de seus corpos. É das mortes físicas e sociais do povo negro no país que trata esta escrita.

"Ô Neide, cadê menino?"--Guerra às drogas e genocídio da juventude negra

A pergunta ressoa na música de Luedji Luna (2017) e representa as interrogações que ecoam diariamente nas periferias. "Cadê" o menino? São tantos os meninos, as meninas, os homens e as mulheres que fazem falta em suas famílias, em suas comunidades. Os dados estão acessíveis para todos. Embora sejam importantes para análise da situação, planificam a realidade e escondem histórias e identidades. Escondem as ausências e as perguntas que não são respondidas. Indagações que permanecem e se colam aos vazios do que antes eram vidas humanas.

O discurso de que está em curso no Brasil uma guerra por conta da proibição das drogas é recorrente, mas ainda segue o silenciamento de uma questão central, que é: quem é o inimigo real desta guerra? Onde estão as vítimas? Não é possível ignoramos o fato de que a vitimização apresenta padrões particulares: 53% das vítimas são jovens; destes, 77% são negros e 93% do sexo masculino. O risco de perder a vida pela violência não se distribui "aleatória e equitativamente por todos os segmentos sociais e raças, ao contrário, concentra-se na camada mais pobre e na população negra, reproduzindo e aprofundando as desigualdades sociais e o racismo estrutural" (BRASIL, 2016, p. 5).

No Brasil, o proibicionismo das drogas sempre esteve pautado pelo racismo institucional, as marcas escravocratas da constituição do país sempre foram uma constante da democracia brasileira, e esta, embora se metamorfoseando, guarda a essência racista e classista em seu bojo (FERRUGEM, 2019). Precisamos demarcar que, por ser o racismo estrutural, se constitui como elemento alicerçante das divisões de classe, permanente na sociedade capitalista; assim, não ficou restrito ao modo de produção escravista colonial (MADEIRA, 2017).

A sociedade brasileira ainda apresenta dificuldades para historicizar devidamente a escravidão. Analisamos a sociedade brasileira e os desafios atuais, desconsiderando que fomos o último país a pôr fim ao regime escravocrata e fizemos isso sob protestos de vários segmentos, que exigiam reparação para os senhores de escravos. O Brasil extinguiu a escravidão, um processo que vinha em decadência pela luta do povo e pressão externa, mas não se fez qualquer reparação às pessoas que foram tornadas escravas. A ordem vigente permaneceu inalterada, produzindo a manutenção da hierarquia racial, que insiste em operar no país, se metamorfoseando à mesma medida que se acirra. Considerando a sociedade brasileira, a raça é fundante e, como tal, deve ser trazida em sua centralidade para o debate da questão sobre drogas.

O estatuto proibicionista não é apenas um regimento legal, é também econômico, moral, ético e estético. Um estatuto que visa à proibição das drogas, mas que carrega em seu bojo interesses dos mais diversos, com o objetivo final de atender às demandas de um capital global e cada vez mais financeirizado (FERRUGEM, 2019).

Na guerra às drogas, há uma sinergia entre o racismo e o ódio de classe. A junção desses marcadores sociais determina as vítimas dessa guerra, uma guerra que não é, nem poderia ser, contra as drogas: é contra as pessoas, mas não todas elas, algumas parecem ter um alvo invisível que a maquinaria bélica do Estado sabe reconhecer. Os corpos negros são controlados por políticas de Estado que os tornam descartáveis. Um signo que o racismo atribuiu à corporeidade negra.

A violência também é estética, as discursividades apresentadas pela mídia tradicional nos fazem associar a corporeidade negra à violência...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT