Guarda responsável e dignidade dos animais

AutorLuciano Rocha Santana/Thiago Pires Oliveira
CargoPrimeiro Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Comarca de Salvador (BA) e Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha)/Acadêmico de Direito da Universidade Federal da Bahia
Páginas67-104

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1. Introdução

Preliminarmente, faz-se mister informar que este artigo é um desdobramento mais atualizado do texto anteriormente apresentado ao "8º Congresso Internacional de Direito Ambiental: Fauna, Políticas Públicas e Instrumentos Legais", realizado em São Paulo (SP) entre os dias 31 de maio a 3 de junho de 2004, através do Instituto "O Direito por um Planeta Verde". O presente texto começa a inovar em relação ao anterior conforme se observa através do título. A tese apresentada no congresso mencionado era denominada como "Posse Responsável e Dignidade dos Animais". A importância de se mudar "posse responsável" para "guarda responsável" abrange muito mais que uma simples questão de estética. O emprego do termo "posse" apresenta uma ideologia implícita em sua semântica: o animal ainda continuaria a ser considerado um "objeto", uma "coisa", que teria um "possuidor" ou "proprietário", visão que consideramos já superada, sob a ótica do direito dos animais, visto que o animal é um ser que sofre, tem necessidades e direitos; frisando-se, ainda, o fato de, tradicionalmente, ser o animal o mais marginalizado de todos os seres, ao ser "usado" e "abusado" sob todas as formas possíveis e, sem, ao menos, a possibilidade de se defender, visto sua notória dificuldade de se manifestar perante os "racionais" seres humanos, tal qual já ocorreu, em passado, não tão remoto, com os "surdos mudos", "mulheres", "loucos de todo o gênero", "índios" e "negros".

Ademais, tal vocábulo encontra-se em confronto com os princípios e valores que dão sustentáculo ético e lógico ao Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) e a sua respectiva política recepcionada pela Constituição Federal, a saber: o respeito à vida em todas as suas formas e a dignidade humana. Razoável deduzir da análise da lei da política nacional do meio ambiente que a vida, por sua própria natureza, não pode ser sujeita a apropriação.

Por outro viés, os corolários de tal inteligência do ordenamento constitucional e legal vigente podem representar a superação do processo de "coisificação" da vida,

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em especial, dos animais e, em última conseqüência, do próprio ser humano, que se tornou peça descartável de uma realidade social fragmentada, que aniquila o ser em si, em síntese, de um sistema que não realiza os valores que preconiza, consubstanciados no desejo de felicidade humana preconizado desde os augúrios do Iluminismo.

Assim, substituímos o termo "posse" pela expressão "guarda", exceto nas citações de textos e normas, para melhor atender a finalidade deste artigo que é a tutela da dignidade animal1 . Substitui-se também o conceito de poluição ou degradação ambiental pelo de crueldade ou maus tratos. E, por fim, reformulou-se o próprio conceito de posse, ou melhor, guarda responsável para outro conceito mais abrangente e completo, tutelando adequadamente, destarte, a dignidade animal.

A questão da guarda responsável de animais domésticos é um das mais urgentes construções jurídicas do Direito Ambiental, visto a crescente demanda que se tem verificado nas sociedades, pois a urbanização cada vez mais crescente vem suplantando hábitos coletivos entre os indivíduos que, isolados em seus lares, têm constituído fortes laços afetivos com algumas espécies, como é o caso dos cães e gatos, transformando-os em verdadeiros entes familiares.

Porém, esse relacionamento nem sempre foi ética e ambientalmente correto. No cotidiano, observam-se muitas arbitrariedades praticadas pelo homem que aniquilam a dignidade desses seres geralmente indefesos, ao promover todas as modalidades de abusos, maus tratos e crueldade, ou então, adestram-nos para se tornarem violentos e, assim, portá-los como se armas fossem, quando não os abandonam a toda sorte de riscos, transformando-os em vítimas inocentes e vetores de doenças, afetando, inclusive, a saúde pública.

Assim, para fins puramente epistemológicos, delimitaremos nosso enfoque nos "animais de companhia", também denominados "animais de estimação", que são os mais presentes nas grandes cidades, conforme pesquisa do IBOPE - Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística de setembro de 2000, segundo o qual 59 % (cinqüenta e nove por cento) da população brasileira possui algum tipo de animal de companhia, sendo 44 % (quarenta e quatro por cento) cães2 .

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De acordo com os mais recentes estudos médico-veterinários3, a companhia desses animais para o ser humano produz os seguintes efeitos benéficos:

  1. Efeitos psicológicos: diminui depressão, estresse e ansiedade; melhora o humor;

  2. Efeitos fisiológicos: menor pressão arterial e freqüência cardíaca, maior expectativa de vida, estímulo a atividades saudáveis;

  3. Efeitos sociais: socialização de criminosos, idosos, deficientes físicos e mentais; melhora no aprendizado e socialização de crianças.

O desenvolvimento da relação entre o ser humano e o animal de companhia ocorre no âmago de uma mudança comportamental importantíssima da própria sociedade, que passou a cultivar vários hábitos, tais como: menor número de filhos e mais recursos em geral; conferir ao animal de companhia o status de membro da família; que passa a viver mais dentro de casa do que fora; o animal de companhia ganha seu espaço; está previsto no orçamento familiar e passa a ser assistido na vida e na morte.

Observados esses fatores, que demonstram a relevância e atualidade do tema, analisar-se-á neste artigo o tratamento ético-jurídico que deve ser dispensado aos animais de companhia, abordando sob esta ótica as graves e atuais questões da superpopulação e do abandono nas ruas das cidades, em suma, os maus tratos e crueldade institucionalizada ou difusa na sociedade contra estes seres viventes e sensíveis portadores de necessidades e direitos; procurando demonstrar as tendências atuais para a resolução dessa urgente crise paradigmática, além de propor políticas públicas que visem solucionar, senão, ao menos, reduzir os impactos dessa tragédia.

2. O homem e a fauna: marcos históricos de uma relação conflituosa
2.1. Evolução filosófica do pensamento humano sobre os animais

Ao longo de sua epopéia civilizatória, o homem travou uma constante luta com a natureza, em busca da sobrevivência da espécie, resistindo a toda forma de hostilidades que o espaço oferecia, como glaciações, secas, temporais, ventanias, abalos sísmicos. Enfim, o espaço natural imperava absoluto e ameaçador sobre o frágil ser humano.

Assim, a civilização humana foi o artifício criado pelo homem para que pudesse dar o seu grito de libertação diante da opressão totalitária do meio natural, só que

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esse grito provocou o distanciamento do homem em relação aos seus instintos, custando essa separação um preço: o surgimento dos mecanismos psicológicos da frustração, proibição e privação, que estariam entre as variáveis influenciadoras das práticas de crueldade e maus tratos aos animais4 . Assim, separar-se de sua natureza animal foi o meio encontrado pelo homem para se superar diante da supremacia ameaçadora da natureza, e, essa distinção, vem servindo como paradigma civilizatório, a ponto de ter sido a origem do "especismo"5e da resistência do homem em reconhecer a sua natureza animal, assim como em considerar os demais seres viventes como objetos passíveis de apropriação e domínio.

Desse modo, para sobreviver diante daquele meio hostil, a espécie humana necessitou de uma importante, senão essencial, ajuda, que foi a prestada pelos animais. Sua domesticação pelo homem, há seis mil anos atrás6, não foi um fenômeno simbiótico, tal qual comumente ocorre na natureza entre as diferentes espécies de animais, mas sim um processo histórico traumático, em que os animais, ao oferecer alimento, vestuário, proteção e transporte, eram tratados como meros objetos de apropriação, que, com o surgimento das primeiras civilizações da Antiguidade, foram imbuídos de valor econômico, passando a ser considerados moedas de troca e bens de consumo em quase todas as sociedades do período, como Roma, enquanto em outras eram os animais idolatrados como se fossem deuses, como foi o caso das civilizações egípcia7e indiana8 .

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A perspectiva negativista referente aos animais será fundamentada através das religiões monoteístas, que formarão o judaísmo entre outras, conforme se infere do livro do Gênesis que, integrante das Escrituras monoteístas, determina o ser humano como o máximo da criação, pois este seria o único ser criado à imagem e semelhança de Deus; devendo-se a existência dos demais seres atender a finalidade exclusiva de servir ao homem9 .

Não só as religiões dos homens serão um dos elementos legitimadores da visão negativista referente aos animais. Teremos, também, no racionalismo filosófico um de seus mais fervorosos elementos, como é o caso do filósofo pré-socrático Protágoras (480-410 A.C.), que enaltecerá o antropocentrismo, ao formular o princípio do homo mensura, segundo o qual o homem seria a medida de todas as coisas, inclusive daquelas que são pela sua existência...

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