Greves. Quando a paralisação sabota o direito

AutorAngelo Antonio Cabral
CargoMestre em direito
Páginas40-56
40 REVISTA BONIJURIS I ANO 30 I EDIÇÃO 652 I JUN/JUL 2018
DOUTRINA JURÍDIcA
Angelo Antonio Cabral MESTRE EM DIREITO
QUANDO A PARALISAÇÃO
SABOTA O DIREITO
Bens jurídicos devem se vincular a valores do estado constitucional
e dar a devida medida para o que é criminalizar a liberdade de
manifestação coletiva
Por um ato de força do presidente Getú-
lio Vargas, com o apoio do general Góis
Monteiro e de outras patentes militares
que com o ministro da guerra haviam se
reunido em 27 de setembro de 1937, re-
solveu-se romper com a ordem consti-
tucional a pretexto de pôr fim à ameaça
comunista. Dessa feita, em 10 de novembro de 1937,
outorgou-se no Brasil uma nova constituição1, ela-
borada para conferir ao presidente da República
todos os poderes e uma infinidade de motivos para
a intervenção nos estados-membros2.
A “Polaca”, como ficou conhecida a Constitui-
ção de 1937 por ter adotado por modelo a da Po-
lônia, estabelecia um presidencialismo forte e um
parlamento bicameral: o dos deputados e o dos
conselheiros federais. A Câmara dos Deputados
era composta por representantes eleitos de forma
indireta, e o Conselho Federal era integrado por
mandatários das entidades federadas e dez mem-
bros de indicação do presidente da República.
O autoritarismo da Constituição de 1937 chegou
a tal ponto que se previa a possibilidade de o pre-
sidente da República, discricionariamente, após
a declaração de inconstitucionalidade de uma lei
pelo Poder Judiciário, caso entendesse relevan-
te ou necessário para o bem-estar do povo, ou a
promoção dos interesses nacionais de alta monta,
submeter a lei novamente ao parlamento e, em
caso de nova aprovação por dois terços, anular a
decisão do Supremo Tribunal Federal3.
Nesse contexto de autoritarismo, o melhor
instrumento jurídico para se fazer valer a nova
ordem foi o direito penal, normatizado ao talan-
te do opressor4. Instalada a nova ordem jurídico-
-política, o ministro da justiça Francisco Campos
incumbiu o jurista Alcântara Machado de elaborar
um projeto de código penal. A parte geral do an-
teprojeto foi entregue ao governo em 15 de maio
de 1938 e o projeto definitivo, com 390 artigos, foi
finalizado em abril de 19405.
O Projeto Alcântara Machado foi submetido
à revisão por uma comissão composta por Vieira
Braga, Nélson Hungria, Narcélio de Queiroz e Ro-
berto Lyra, sob a presidência de Francisco Cam-
pos. Alcântara Machado somente tomou conhe-
cimento da comissão revisora por intermédio da
imprensa e com a revisão já consumada.
O Código Penal foi baixado com o Decreto-lei
2.848, de 7 dezembro de 1940, e entrou em vigor em
1º de janeiro de 1942. Em 1984, pela Lei 7.209, de 11
de julho de 1984, houve a reforma da parte geral,
mantendo-se incólume a parte especial, ou seja, a
previsão de crimes e cominação das penas.
Há, portanto, que reavaliar os tipos penais, mor-
mente aqueles afetos ao direito do trabalho, consi-
derando-se que, desde 1988, vivemos sob a égide de
um estado democrático de direito. Daí a proposta de
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dissecarmos os tipos penais de paralisação de tra-
balho de interesse coletivo e sabotagem à luz da lite-
ratura e jurisprudência criminal e enfrentá-los criti-
camente a partir das premissas do juslaboralismo.
1. PARALISAÇÃO DE TRABALhO DE
INTERESSE COLETIVO
1.1. Considerações iniciais
O crime de paralisação de trabalho de interesse
coletivo está tipificado no artigo 201 do Código Penal:
Paralisação de trabalho de interesse coletivo
Art. 201 – Participar de suspensão ou abandono
coletivo de trabalho, provocando a interrupção de
obra pública ou serviço de interesse coletivo:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Segundo o magistério de Nélson Hungria e He-
leno Claudio Fragoso, observando a exposição de
motivos do Código Penal, não foram trazidos para
o campo do ilícito penal todos os fatos contrários
à organização do trabalho. São incriminados, em
regra, somente aqueles que se fazem acompanhar
de violência ou de fraude. Na ausência desses ele-
mentos, o fato não passará, salvo exceções, de ilíci-
to administrativo6.
A paralisação de trabalho de interesse coletivo,
no entanto, não está condicionada ao emprego de
violência contra a pessoa ou contra coisa. Basta
que da suspensão ou do abandono coletivo do tra-
balho resulte interrupção de obra pública ou servi-
ço de interesse coletivo.
Em sentido contrário, Magalhães Noronha
afirmava que “[d]eixa bem claro a disposição em
exame que só pune a suspensão do trabalho ou a
parede quando há violência (força sica) contra a
pessoa ou contra coisa”. Referido autor entendia
também ser patente que a violência devia quando
ocorresse a greve ou a parede, pois, se usada antes,
o crime estaria tipificado no art. 197, II, do Código
Penal (atentado contra a liberdade de trabalho)7.
O escólio de Noronha, todavia, não convenceu a
jurisprudência da época:
Pratica o delito do art. 201, do CP, o bancário que
participa de suspensão ou abandono coletivo do
trabalho, porque tal serviço reveste-se de cunho de
interesse coletivo, porém nenhum cabimento tem a
exasperação prevista no art. 31 da Lei de Segurança
Nacional se o delito não foi praticado com ameaça
ou subversão da ordem pública ou social (TJGB – AC
– Rel. Ivan Castro de Araújo e Souza – RF 210/320).8
Divergências históricas à parte, vale relembrar
o conceito de obra pública para fins penais, talha-
do à época da imposição do código:
Obra Pública a que se refere o art. 201 é a que a
administração pública manda executar por pesso-
as estranhas ao quadro de seus funcionários. Se a
obra pública é executada por funcionários públicos,
o crime é o do art. 18 da Lei 1.521, de 1951. Se a
greve ou o
lock-out
obedecem a fim político-social,
o simples fato de instigá-los ou prepará-los é crime
previsto no art. 13 da referida lei.9
Seguindo com as lembranças históricas, serviço
de interesse coletivo é:
Todo aquele que afeta as necessidades da popula-
ção em geral, como, por exemplo: serviços de ilu-
minação, de água, de gás, de energia motriz, de
limpeza urbana, de comunicações, de transportes
(terrestres, marítimos, fluviais ou aéreos), de ma-
tadouro, de estiva, etc. O que se quer garantir é a
continuidade, indispensável ao curso normal da vida
civil, de serviços (dependentes, ou não, de conces-
são do Governo) correspondentes às necessidades
primárias do povo.10
À época, Cesarino Junior criticava severamente
o dispositivo acima por não prever como crime o
fato de excitar ou dirigir a greve ou o lockout que
resulta na paralisação de trabalho de interesse co-
letivo, mas, já advertia Hungria, estas pessoas se
enquadravam pela coautoria, agravando-se a pena
à luz do antigo artigo 45 do Código Penal11.
Como se pode ver, o Código Penal dispensou
tratamento distinto para a greve em empresas
privadas (art. 200, “Participar de suspensão ou
abandono coletivo de trabalho, praticando vio-
lência contra pessoa ou contra coisa”) e empresas
públicas ou que pelo menos executem serviços de
interesse coletivo (art. 201).
Contemporaneamente,12 Cezar Roberto Biten-
court12 faz coro com Nélson Hungria ao afirmar
que, sob a égide da Constituição “polaca”, o legisla-
dor de 1940 criminalizou a prática de greve ou do
lockout, pacíficos ou não, de atividades públicas
ou de interesse social.
O AUTORITARISMO DA CONSTITUIÇÃO DE 1937 PREVIA A POSSIBILIDADE
DE O PRE SIDENTE SUBMETER UMA LEI AO PARLAMENTO E, EM CASO DE
APROVAÇÃO [CONTRA SUA VONTADE], ANULAR A DECISÃO DO STF

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