Greve de membros do ministério público

AutorMarcos de Jesus
CargoProcurador do Trabalho
Páginas199-231

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Enquanto o trabalho, quer no setor privado quer no setor público, encerrar um antagonismo básico entre o interesse daqueles que o prestam e daqueles que dele se beneficiam, não há como evitar greves.

Arion Sayaão Romita

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Introdução

Embora a Constituição assegure o direito de greve aos servidores públicos, o constituinte determinou que o exercício do direito de greve dos servidores públicos seria alvo de limites previstos em lei específica (art. 37, VII — na redação original, lei complementar), considerando que ela causa fortes impactos na população, sobretudo quando ocorre nos chamados serviços essenciais. Esta disposição constitucional durante mais de duas décadas e ainda hoje tem sido utilizada para prejudicar o direito reconhecido aos servidores públicos.

Houve dois grandes momentos protagonizados no Supremo Tribunal Federal. Primeiro, em 1994, a Corte entendeu que o direito de greve não poderia ser exercitado enquanto não houvesse lei complementar1.

... O preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em consequência, de autoaplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição.

A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta — ante a ausência de autoaplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição — para justificar o seu imediato exercício. (MI n. 20-DF — Rel. Min. Celso de Mello. DJ 19.5.1994 — destaquei a palavra mera e sua variação)

Depois, em 2007, nos Mandados de Injunção ns. 670-ES, 708-DF e 712-PA, o STF resolveu que os servidores públicos podem exercer o direito de greve, aplicando-se-lhes a Lei n. 7.783/89 (lei de greve do setor privado), com as adaptações que fez. Mas, como se verá, só houve alteração substancial do remédio constitucional — mandado de injunção —, não em

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relação à concepção sobre o direito de greve. Nos votos dos ministros, pode-se observar que o propósito foi impor um regramento mais gravoso e rígido, cerceando o direito dos servidores públicos2.

Em todo país, declarar greves de servidores públicos como ilegais, abusivas e até terroristas têm sido uma reação comum das instituições públicas que, de uma forma ou de outra, atuam no momento de crise, principalmente os órgãos judiciais.

Se a greve de servidores públicos em geral desperta incompreensões, equívocos, todo tipo de reação contrária e tentativas de deslegitimá-la ou esvaziá-la enquanto direito, o que dizer de uma greve de membros do Ministério Público? É reconhecida pelo direito? Qual o tratamento jurídico para a questão? Podem os membros do Ministério Público deflagrar greve?

Este trabalho pretende enfrentar estas questões. Antes, porém, é preciso revisar os fatos que antecederam o estágio atual e fazer uma análise crítica do conceito de greve. Deve-se adiantar que a greve, mesmo sem contar com a simpatia, muito menos apoio, dos poderes constituídos, da imprensa e de grande parte da sociedade, ao longo dos anos, vem resistindo e tem feito o ordenamento jurídico se conformar e conviver com ela, ao ponto de ter sido levada para o texto constitucional.

1. Elementos históricos para compreensão do direito de greve

Uma rápida passagem na história legislativa do país e na origem da palavra greve fornecerá algumas ferramentas para compreensão do tema e conclusão de que a greve é um direito em constante construção, que se antecipa à lei.

1.1. Breve histórico legislativo

O CP de 1890 tipificou como crime o exercício da greve, cominando-lhe detenção. A Lei n. 35/35 considerou a greve como delito, no que fora seguida pela CLT na sua redação original. Para a CF de 1937, a greve era um recurso antissocial, nocivo ao trabalho e ao capital e incompatível com "os superiores interesses da produção nacional". A Lei n. 38/32 e o DL n. 431/38 — leis de segurança nacional — também consideraram a greve

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como crime. Sendo que este tipificava como crimes contra ordem social, punido com prisão de 1 a 3 anos e inafiançável sem possibilidade de livramento condicional, a incitação de funcionários públicos e a indução de empregados para greve (arts. 3e, 21 e 22). Também vedava a impressão e qualquer forma de circulação de qualquer publicação com incentivo à greve. O funcionário público que praticasse o crime seria afastado do cargo imediatamente, podendo ser exonerado e, se condenado penalmente, ficaria 10 anos inabilitado para o serviço público (arts. 9e e 11). Punições também foram previstas para greve no DL n. 1.237/39, que instituiu a Justiça do Trabalho. O CP de 1940 tipificou como delito a adesão à greve em obra pública ou em serviço de interesse coletivo.

O DL 9.070/46 admitia a greve e o lockout, mas considerava crime inafiançável o aliciamento para ambos, com possibilidade de prisão preventiva e sem recurso com efeito suspensivo nem suspensão da execução da pena (art. 15). Já a CF de 1946 reconheceu o direito de greve, tendo remetido seu exercício à regulamentação legal.

Em 1964, a Lei n. 4.330 regulou o direito de greve, permitindo-a nas atividades que chamou de normais, com muitas restrições, de modo a inviabilizá-la. O art. 4e vedava seu exercício por funcionários públicos da Administração Pública direta. Ela previa a suspensão do contrato de trabalho com a greve, mas assegurava aos grevistas o pagamento dos salários, se deferida alguma das reivindicações.

As Constituições impostas de 1967 e 1969 reconheceram o direito de greve, porém, a proibiu nos serviços públicos e atividades essenciais. O DL n. 1.632/1978 também proibiu a greve em atividades essenciais. Ele previa pena de advertência, suspensão e demissão por justa causa para quem participasse de greve em serviço público ou atividade essencial (art. 3e). O dirigente sindical ou de conselho profissional que apoiasse ou incentivasse tal greve poderia ser advertido, suspenso ou destituído do mandato pelo Ministro do Trabalho (art. 5e). A Lei de Segurança Nacional de 1978 (Lei n. 6.620/78) proibiu a greve nos serviços públicos e nas atividades essenciais.

Somente com a Constituição de 1988, a greve foi reconhecida de forma ampla para todos os trabalhadores, com exceção dos militares.

As criminalizações e restrições primeiro cederam para greve do trabalhador no setor privado, tendo permanecido por mais tempo para os servidores públicos. Atualmente, tramitam no Congresso Nacional 10 projetos de lei, regulamentando o direito de greve destes3.

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1.2. Origem terminológica

Há registro de que a primeira greve ocorreu no Novo Império Egípcio, reinado de Ramsés III, quando trabalhadores se recusaram a trabalhar na tumba do faraó, em sinal de protesto contra irregularidade no fornecimento de utilidades e o tratamento a eles dispensado no canteiro de obras4. Mas a denominação greve surgiu após a Revolução Francesa e está relacionada com a Praça da Prefeitura de Paris. O logradouro era chamado Place de Grève porque nela se acumulavam gravetos trazidos pelas enchentes do rio Sena, sendo greve originário de graveto5. Os trabalhadores insatisfeitos, deixavam os postos de trabalho e ficavam nesta praça, onde podiam ser arregimentados pelos que procuravam empregados, por isso, "os operários em busca de empregos estavam em greve"6.

Era nessa praça que se reuniam os obreiros desempregados, sendo ali que lhes procuravam os contratantes. Ali também se concentravam os empregados que estavam descontentes com as suas condições de trabalho, em seus períodos de folga, e ali lhes procuravam seus empregadores, a fim de lhes proporem melhores condições laborais. [...]

Em suma, é inegável que a palavra greve surgiu a partir da reunião do operariado francês na praça do 'Hotel de Ville', em Paris. Tais obreiros ou estavam desempregados ou, mesmo empregados, ali se reuniam para discutir a reivindicação de melhorias em suas condições laborais7.

2. Elementos conceituais
2.1. Conceitos

O conceito de greve foi elaborado para o setor privado. Transportá-lo integralmente e sem ajustes para o setor público, desconsiderando as

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diferenças entre os regimes jurídicos da prestação dos serviços, é inapro-priado8.

Arnaldo Süssekind define greve, considerando o direito positivo pátrio, como sendo: a suspensão coletiva, temporária e pacífica, da prestação pessoal de serviços em uma ou mais empresas, no todo ou em parte, determinada por entidade sindical representativa dos respectivos empregados [...] com a finalidade de pressionar a correspondente categoria econômica, ou os empresários, para a instituição ou revisão de normas ou condições contratuais ou ambientais de trabalho, assim como para o cumprimento de disposições de instrumento normativo.9

Já Mauricio Godinho Delgado a define como "paralisação coletiva...

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