A greve como forma de exercício da autotutela na cultura ocidental

AutorCaio Augusto Souza Lara - Raquel Betty de Castro Pimenta
Ocupação do AutorCaio Augusto Souza Lara é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Vice-presidente da Federação Nacional dos Pósgraduandos em Direito (FEPODI) - Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG; Especialista em Direito do Trabalho Ítalo-Brasileiro pela UFMG e pela Università di Roma Tor Vergata
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1. Introdução

A resistência pela greve tem marcado a história dos trabalhadores. Manifestando alguns sinais desde o mundo antigo, a greve constitui exemplo de utilização da autotutela, inicialmente de forma primitiva, com a utilização da força bruta e, posteriormente, como forma de pressão dos trabalhadores oprimidos.

A greve, uma das manifestações coletivas mais contundentes da sociedade de nossos dias, originouse basicamente do movimento operário em busca do atendimento às suas reivindicações, em especial de melhores condições de trabalho e melhores salários.

No início, utilizada como defesa e, posterior-mente, como meio de ataque na busca de melhores condições de trabalho e de vida, a greve aprimorou-se ao longo do tempo, passando a valer-se, na modernidade, de novas ferramentas de atuação, como as manifestações virtuais. Em paralelo ao aprimoramento das formas de exercício da greve, assistimos também à evolução do próprio conceito de autotutela no Direito Coletivo, que perdeu gradativamente a característica violenta que a marcou por um longo período de tempo.

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar, a partir da análise dos elementos característicos da greve e de alguns movimentos grevistas, a evolução da autotutela no Direito Coletivo, não apenas nas conquistas dos direitos trabalhistas, mas também como eficiente forma de resolução de conflitos.

2. A autotutela entre as formas de resolução de conflitos

Os meios para a resolução de conflitos, conforme assinalam Ada Pelegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antônio Carlos Cintra(1, são, basicamente, três: primeiro, a autodefesa ou autotutela (que possui como traços característicos ausência de juiz distinto das partes e imposição da decisão por uma das partes à outra); segundo, a autocomposição, que inclui: desistência (renúncia à pretensão), submissão (renúncia à resistência) - e transação (concessões recíprocas, extraprocessual) - e endoprocessual-acordo. Citam também a mediação (forma autocompositiva com intervenção de terceiros para pacificação de conflitos), a técnica

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da arbitragem e, finalmente, a forma de solução de conflitos através da jurisdição estatal.

A autotutela ou autodefesa, em sentido amplo, pressupõe o exercício da própria defesa, podendo ser considerada a mais primitiva forma de resolução de conflitos. Amauri Mascaro Nascimento leciona que "o vocábulo autodefesa indica o ato pelo qual alguém faz a defesa própria, por si mesmo. Supõe uma defesa social"2. Para Sérgio Pinto Martins, na autodefesa, "o conflito só é solucionado quando uma das partes cede à imposição da outra"3.

Contudo, assevera Adriana Goulart de Sena que, "contemporaneamente, a cultura ocidental tem restringido, ao máximo, as formas de exercício da autotutela, transferindo ao aparelho do Estado as diversas e principais modalidades de exercício de coerção"4.

2. 1 Autotutela no mundo justrabalhista

O fenômeno da autotutela se mostra com mais força e relevância nas relações trabalhistas por causa de sua grande expressão na defesa dos interesses coletivos. Octávio Bueno Magano afirma que "uma das áreas mais ricas em manifestações de autodefesa é, sem dúvida, o Direito do Trabalho, constituindo os exemplos mais frisantes os casos de greve e lockout"5.

Adriana Goulart de Sena, citando Mauricio Godinho Delgado, nos fornece a importante lição:

"No Direito do Trabalho, a greve constitui importante exemplo da utilização da auto-tutela na dinâmica de solução de conflitos coletivos trabalhistas. Todavia, raramente ela completa seu ciclo autotutelar, impondo à contraparte toda a solução do conflito. O que ocorre é funcionar esse mecanismo como simples meio de pressão, visando ao alcance de mais favoráveis resultados na dinâmica negocial coletiva em andamento ou a se iniciar."6

Afirma Gino Giugni, citado por Ari Possinonio Beltran, que a autotutela constitui um dos aspectos da liberdade sindical, implicando "atividade conflitual direta que exerce pressão sobre a contraparte a ponto de induzi-la a fazer ou não fazer algo"7.

Assevera Delgado que "a greve é, de fato, mecanismo de autotutela de interesses; de certo modo, é exercício direto das próprias razões, acolhido pela ordem jurídica"8.

Ademais, a greve "constitui uma forma de autotutela passiva no contrato de trabalho, na medida em que, embora proclamada pelo sindicato, por intermédio dos mecanismos próprios, a aplicação prática há de ser sempre individual", conforme lição de Giuliano Mazzoni, citado também por Ari Possidonio Beltran9.

3. A greve e suas manifestações
3. 1 Origem do termo e breve histórico

A palavra greve deriva do latim vulgar grava, que significa praia de areia10. Luciano Oliveira, professor da UFPE, no artigo "Uma brevíssima história da greve", nos conta a origem do significado de greve como entendemos hoje, usado pela primeira vez no final do século XVIII. Vejamos:

"A palavra greve tem também um percurso interessante. No início ela significava simplesmente um tipo de arbusto existente nas margens do rio Sena, em Paris. Em francês, grève. Num terreno contíguo a uma dessas margens, formou-se uma praça, que veio a ser designada como Place de Grève. A praça tornou-se um local onde se juntavam trabalhadores sem emprego em busca de alguma ocupação. Quando os parisienses precisavam de algum trabalhador, iam lá atrás dessa mão-de-obra. Daí surgiram expressões como "ir a greve" (aller en grève), "estar em greve" (être en grève) - e outros correlatos, para designar o trabalhador que, sem traba-

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lho, lá ficava de braços cruzados sem ter o que fazer."11

Márcio Túlio Viana, citando Gillion, nos ensina que o termo francês Grève se originou na praça do Rio Sena e significa "terreno plano e unido, coberto de graveto e de areia, ao longo do mar ou de um curso de água". Segundo Viana, "na 1ª Revolução Industrial, era ali que os trabalhadores se reuniam para contar suas lorotas, xingar os patrões ["abutres", "chacais" e "vampiros"], esperar pelos gatos ou praticar suas greves"12.

O referido professor nos lembra ainda o significado do termo em outras línguas, a saber: em inglês, strike (ataque); em espanhol, huelga (folga); em italiano, sciopero (livre de vínculos). Segundo o autor, "na verdade, e para dizer pouco, a greve é tudo isso ao mesmo tempo"13.

A greve, como visto, não é fenômeno recente. Certos autores apontam como exemplos de greve a revolta dos operários judeus contra as autoridades faraônicas, em 1.440 a.C., ou mesmo a fuga dos hebreus para o Egito14, além de outras revoltas do mundo antigo.

Contudo, nos diz Ari Possidonio Beltran o seguinte:

"O certo é que tais fatos têm significação somente como referências históricas, já que não passavam de revoltas ou movimentos coletivos de protesto contra a opressão e a violência, numa época em que não havia como se cogitar da liberdade de trabalho, e assim, muito menos de uma greve."15

Somente no final da Idade Média (século XIII), com a organização de trabalhadores livres em coalizões advindas das corporações de artes e ofícios16, é que a greve começou a ter as características do instituto na sua forma atual.

As corporações foram ganhando força política devido à associação de muitos trabalhadores e marcaram o início da atuação coletiva contra as organizações oficiais de profissões. Por isso, as coalizões foram proibidas. Arnaldo Sussekind relata que tal tendência iniciou-se na Itália em 1236, na França em 1243, na Inglaterra em 1305 e na Alemanha em 1371, perdurando até o final do século XVIII17.

Márcio Túlio Viana leciona que a utilização sistemática da greve como forma de luta contra a exploração patronal surgiu a partir do século XVIII, com a expansão capitalista. Diz o autor:

"assumia a greve, então, a natureza de verdadeiro anticorpo à exploração do homem pelo homem, germinando no ambiente insalubre onde crianças sem infância passavam quinze horas de seu dia, envelhecendo precocemente para enriquecer os patrões."18

Mais adiante, apareceram as ideias do sindicalismo revolucionário, que pregava a greve como única solução contra as injustiças dos empregadores e a indiferença do Estado Liberal. Nesta época, a greve era geralmente violenta e duramente reprimida.

Após o período liberal, surgiu a proteção Estatal à greve, como nos conta Lélia Guimarães:

"Com a evolução das próprias concepções políticas, ao Estado Liberal sucedeu o Estado Intervencionista que, não só procurou disciplinar as relações entre empregados e empregadores, como estatuiu normas e preceitos visando à proteção dos trabalhadores. Surge, assim, uma série de conquistas e a greve passa a ser um direito legitimamente reconhecido."19

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Já no século XX, com o fortalecimento do Direito Coletivo, "houve a ruptura do postulado clássico da sanção estatal", conforme leciona o Professor Antônio Álvares da Silva. Para ele, "a civilização industrial e problemática dela emergente fizeram as classes trabalhadoras se adiantarem ao Estado e procurarem, elas próprias, leis mais favoráveis na sociedade liberal"20.

3. 2 Acepções jurídicas da greve

A greve possui várias características que interessam à Ciência do Direito, estando presente nos mais diversos ordenamentos jurídicos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, traz, em seu artigo XXIII, "4", a seguinte norma: "Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses".

Da mesma forma, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950), em seu art. 11º, dispõe o seguinte: "Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar...

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