Gregos e Romanos

AutorMônica Sette Lopes
Páginas22-49
Gregos e Romanos
Para o Ocidente, a compreensão do relacionamento entre
os seres no mundo tem seu ponto de maior expressão originadora
nos gregos. Neles a composição mítica leva à manifestação poética e
esta à losoa como fonte de pensamento organizado1.
Os primeiros lósofos, assim como os primeiros sons pro-
duzidos pelos humanos, ligavam-se à realidade que a natureza dava
a conhecer e, às vezes, a enfrentar. Dela vieram, também, os instru-
mentos musicais e as tentativas de entender os procedimentos da
vida2. E os da morte.
Pascal Quignard, em Ódio à música, salienta que as versões
para o surgimento da música a associam às mais perversas facetas
da humanidade, em que a destruição e a morte se fazem presente. A
vinculação da música ao sofrimento é recorrente.
Atena fabricou a auta para imitar “os gritos que ouvia sair
da goela dos pássaros-serpentes de asas de ouro e presas de javali”3.
Este uso sonoro da dor é a matriz dos instrumentos musi-
cais e, em especial, dos instrumentos de corda.
“O arco é a morte à distância: a morte inexplicável. Mais
exatamente: a morte tão invisível quanto a voz. Corda vocal,
corda da lira, corda do arco são uma única corda: tripa ou
nervo de animal morto que emite o som invisível que mata
à distância. A corda do arco é o primeiro canto: aquele can-
to do qual Homero diz que ele “é semelhante à andorinha
no que diz respeito à voz”. As cordas dos instrumentos de
corda são cordas-de-lira-de-morte.
A lira ou a cítara são antigos arcos que lançam cantos para
o deus (echas para o animal). [...] Não é certo que o arco
tenha sido inventado antes da música de cordas. [...]
Os deuses não se vêem mas se ouvem: no trovão, na torren-
te, na nuvem, no mar. Eles são como vozes. O arco é dotado
de uma forma de palavra, na distância, na invisibilidade e
1 Cf., entre outros, VERNANT, 1984, JAEGER, 1979.
2 MENUHIN, DAVIS, 1990, p. 1-17.
3 QUIGNARD, 1999, p. 10. Cf. LEROUGE, Jean-Christophe. Pascal Quinard: les
mots & les notes. 9 de Coeur, 2005, p. 42-3.
no ar. A voz é primeiro a da corda que vibra antes que o
instrumento seja dividido e instrumentado em música, em
caça, em guerra”4.
Nas faixas insondáveis da memória do mundo ocidental, a
música liga-se ao conito. Ela permeia a vida e a morte e se forma
por elas e através delas. A música matiza o balanço dos interesses e
os instrumentos, por meio de que ela soa, exprimem, no tecido de
que são fabricados, a dor da existência: o grito, a busca da sobrevi-
vência, a luta para resistir ao controle do outro.
A lei também surge da dor. Ela veio, desde os primórdios,
da necessidade de conter o conito, de solucionar a guerra em suas
variadas dimensões.
Estes caminhos e descaminhos podem ser identicados
na música e nas formas de regulação das condutas das pessoas em
grupos em sua historicidade. As passagens não estão presas a uma
única faixa da expansão humana. As inuências e as intersecções são
plurívocas e concomitantes. Pode ser que uma delas se acerque dos
fatos com uma veemência maior. A religião é sempre um vetor de
contundente interferência.
A lei antiga nunca teve considerandos. Por que haveria ela
de os ter? Não necessitava de explicitar suas razões; existia
porque os deuses a zeram. A lei não se discute, impõe-
-se; não é obra da autoridade; e os homens obedecem-lhe
porque crêem nela. [...] No dia em que começaram a ser
escritas, foram nos livros sagrados que as consignaram, nos
rituais, isto é, junto às orações e às cerimônias. [...] Pare-
ce mesmo que as palavras da lei costumavam ser rimadas.
Aristóteles arma que, enquanto as leis não foram escritas,
o povo as cantava. Restam vestígios dessa prática na língua:
os romanos chamavam as leis de carmina, versos; os gregos
nomoi, cantos”5.
A canto enuncia a fé em inúmeras religiões (os cristãos, os
índios, os judeus, por exemplo6) e o fez também para os gregos. A
4 QUIGNARD, 1999, p. 22.
5 C OULANGES, 1975, p. 153. Cf. CANDÉ, 2001, v. 1, p. 15-6 e MARTÍNEZ
GARCÍA, 2002, p. 502.
6 MENUHIN, DAVIS, 1990, p. 45-6.

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