Globalizacao Hegemonica e Politica Criminal Neoliberal/Hegemonic globalization and neoliberal criminal policy.

AutorPessoa, Sara de araujo
  1. INTRODUCAO

    As transformacoes sociais das ultimas decadas trazem a criminologia critica o desafio de repensar a prisao e suas funcionalidades, para tambem repensar as estrategias na luta pelo desencarceramento e por uma politica criminal cidada. Se o cenario da decada de 70, na efervescencia dos movimentos sociais e criticos, apresentava uma perspectiva otimista e de retracao do direito penal, as realidades dos anos que seguiriam, com o aumento vertiginoso do encarceramento, jogaram um balde de agua fria e colocam muitas perguntas sobre os caminhos tomados (BATISTA, 2007, p. 6-7).

    Das explicacoes ao superencarceramento surgem as relacoes, nao ineditas, entre economia, modo de producao (de vida e social) e prisao, na busca de uma atualizacao da economia politica da pena, que, se anteriormente possibilitou a compreensao do carcere/fabrica enquanto funcionais ao desenvolvimento do capital, por meio do disciplinamento e proletarizacao (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2008, p. 31-108; FOUCAULT, 2010, 133-189; MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 209-236), atualmente aponta para uma gestao de indesejaveis, que nao substitui a disciplina prisional mas a ela se alia, expandindo, acirrando, e muitas vezes diluindo as fronteiras do controle penal e social.

    Partindo da premissa da existencia destas relacoes, na pretensao de atualizacao e precisao dos elementos que compoe a (re)legitimacao da prisao, imperativo o estudo das modificacoes do proprio modo de producao, mas nao somente isto. Se no contexto Latino Americano, Sozzo (2016) adverte para o cuidado da explicacao do giro punitivo como consequencia direta do neoliberalismo, necessaria a analise mais precisa sobre elementos integrantes destes contextos de transformacao.

    Nesse intuito, busca-se dialogar com autores que nao tem como objeto de estudo a prisao, mas que seguem em analise critica as injusticas sociais. Assim, o problema de pesquisa busca responder qual a interseccao entre o neoliberalismo e as politicas criminais? Para isso elege-se como ponto de interseccao a globalizacao, ou globalizacoes, como elemento da ascensao do neoliberalismo, e com potencialidade de correlacao com a metamorfose das politicas criminais e a globalizacao da politica de encarceramento em massa como produto exportacao e decorrente dos processos de globalizacao hegemonica

    Sem a pretensao de esgotar o tema, pretende-se relaciona-los partindo do pensamento de Boaventura de Sousa Santos e, com o subsidio da criminologia critica, imbrica-lo com transformacoes do controle social juntamente com as transformacoes neoliberais e decorrentes/causadoras do que o autor entende por globalizacao(oes) hegemonica(s), ou mais especificamente por localismo globalizado (SANTOS, 2006, p. 438).

    Para tratar destas relacoes, impende situar o leitor no marco teorico a ser utilizado, iniciando pelo pensamento do sociologo portugues Boaventura de Sousa Santos, com ampla producao academica, e tambem militancia e dialogo com movimentos sociais, localizando-o e circunscrevendo-o em alguns de seus lugares de enunciacao.

    Neste trabalho, interessa-nos sobretudo a identificacao do sociologo como "um critico do Marxismo que encarna a logica marxiana fundante ao adentrar na civilizacao do capital, ampliando o horizonte de analise no desvendamento das exclusoes e opressoes do colonialismo em suas versoes contemporaneas" (CARVALHO, 2009, p. 3). Seu pensamento, interdisciplinar e transversal, tem horizonte emancipatorio e de critica a modernidade ocidental, consolidando-se principalmente na vinculacao entre capitalismo e colonialismo, sem reduzir este aquele.

    No texto base deste artigo, "Os processos da globalizacao", identifica-se um pensamento complexo, que reconhece a globalizacao (ou globalizacoes) de forma macro, heterogenea e nao linear, suas origens e reflexos, traca estrategias de resistencia ao que o autor denomina "globalizacao hegemonica", pautado numa analise paradigmatica e, nas palavras do autor, sensivel, e sempre voltada a acoes transformadoras e emancipatorias (SANTOS, 2002, p. 94).

    As analises do autor no livro, que tem como tema central o impacto da globalizacao neoliberal nas sociedades semiperifericas, nao obstante a riqueza dos elementos trancados, e o olhar social, economico, politico e cultural apresentado, pode ser acrescido o estudo da politica criminal neoliberal, que neste trabalho e compreendida como nucleo da (re)configuracao das exclusoes deste modelo, a partir dos aportes da criminologia critica.

    Os aportes aos quais se refere correspondem ao que Vera Regina Pereira de Andrade chamara de "acumulo criminologico", e que se desenvolvera "na esteira da Criminologia radical e da nova criminologia, por dentro do paradigma da reacao social e, para alem dele, partindo tanto do reconhecimento da irreversibilidade dos seus resultados sobre a operacionalidade do sistema penal quanto de suas limitacoes analiticas macrossociologicas e mesmo causais" (ANDRADE, 2012, p. 52).

    Trata-se de acumulo teorico que encontra eco no pensamento de Boaventura, pela superacao do paradigma liberal de igualdade, e que se contrapoe a dogmatica penal, que assim como a ciencia moderna traz pressupostos de abstracao e universalidade e acaba por reproduzir desigualdades e exclusoes. Estas mesmas que, conforme se demonstrara, sao consequencia da globalizacao hegemonica nos seus mais diversos vieses.

    Alem disto, parte-se especificamente de uma criminologia de base materialista, que a partir de um plano macroestrutural identifica no modo de producao capitalista um dos grandes pontos de sustentacao (mutua) do controle penal, que em sua face neoliberal encontra-se atualmente ancorado no discurso populista punitivo e de tolerancia zero.

    A formacao desta criminologia, que se sustenta em grande parte numa abordagem marxista da questao criminal, busca superar o pensamento tradicional e microssociologico, bem como o paradigma etiologico e a ideologia da defesa social, que com uma analise superficial produz e reproduz estereotipos, sem questionar os interesses por traz da dinamica punitiva e a logica de seletividade e estigmatizacao provocada pelo proprio sistema penal, vinculado a producao de criminosos e distribuicao de condutas desviantes (LEAL, 2017, p. 133).

    O entrelacamento destes marcos teoricos sao justificados: se as politicas criminais transformam-se com a sociedade de forma intrinsecamente relacionada ao modo de producao, para entender fenomenos decorrentes da politica criminal de lei e ordem faz-se necessario entender os processos de transformacao economica e social da atualidade, focando o presente estudo, dentro dos limites de espaco, nos processos de globalizacao (ou globalizacoes) e ascensao e alastramento do neoliberalismo. A pesquisa desenvolve-se com metodologia eminentemente analitico-critica, desde uma abordagem teorica, e que tem como metodo dedutivo utilizando-se da ferramenta de pesquisa bibliografica. O artigo divide-se em tres capitulos, o primeiro com alguns apontamentos sobre duas grandes "passagens" da historia global (hegemonica) do Estado, isto e, do Estado Liberal para o Estado Social e do Estado Social (de bem estar) ao neoliberal, este ultimo como cenario das principais analises propostas.

    No segundo capitulo, abordar-se-a o contexto neoliberal e a partir do consenso de Washington e a globalizacao hegemonica, e todos os seus vertices, conforme o pensamento de Boaventura de Sousa Santos. No terceiro e ultimo, utilizar-se-a dos marcos teoricos da criminologia critica e contemporanea para demonstrar as transformacoes ocorridas no sistema penal concomitantemente e com sustentacoes reciprocas nas mudancas decorrentes/causadas pelo neoliberalismo.

  2. ESTADO LIBERAL, ESTADO SOCIAL E ASCENSAO DO NEOLIBERALISMO: breves consideracoes sobre uma historia incontaveis vezes contada

    Impende situar historicamente o processo de ascensao neoliberal, sobretudo para entender as pressoes no setor economico que deram origem nos Estados Unidos ao Consenso de Washington, mencionado por Boaventura como a principal diretriz neoliberal que configurara a globalizacao economica e influenciara as demais, e ao enfraquecimento das politicas sociais do Estado de Bem-estar (SANTOS, 2002, p. 27). Antes disso, reputa-se importante algumas consideracoes sobre o proprio Estado liberal, a passagem para o Estado de Bem-estar social, e suas crises, respectivamente.

    O discurso ideologico liberal, que em realidade trata-se de discursos liberais com a ideia comum de limitacao do Estado e defesa da propriedade privada, transpassa vertices social, politico, juridico e cultural, e ancora-se no projeto burgues iluminista (sec. XVIII), fundamentado sob a pretensao de progresso humano e tolerancia religiosa, contrapondo-se a logica absolutista de privilegios (nobreza), com a preconizacao da razao, da liberdade politica e civil para "todos" (burgueses), e de uma etica individualista. Frisa-se que, nao obstante ao ideario discursivo da liberdade para todos, pautando-se na exploracao do trabalho assalariado e na promocao da defesa da propriedade privada, o liberalismo acabou por concretizar um pacto desigual (VIEIRA, 2013, p. 118-122).

    Com a revolucao industrial e a ascensao do modo de producao capitalista, em grande medida possibilitada pelo pensamento liberal, e o acirramento das desigualdades deles decorrentes, o seculo XIX foi marcado por grande crise social, sobretudo diante da precarizacao do trabalho e inchaco populacional nas grandes cidades--pos processo migratorio campo/cidade -, que acarretou na organizacao de movimentos sociais, principalmente de operarios, com a paulatina compreensao de que a culpa pelas miserabilidades nao era da evolucao da maquinaria, mas sim dos que detinham os meios de producao, cujo auge de consciencia deu-se na metade do seculo XIX ate a metade do proximo seculo e, respaldando-se nas concepcoes marxistas, organizam-se para, assim como a burguesia em contraposicao ao absolutismo, dar concretude a uma revolucao contra...

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