O refúgio e a questão da identificação oficial dos refugiados no Brasil

AutorFrancielli Morêz
CargoBacharela em Direito pela PUCPR, Especialista em Direito Público pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná e em Sociologia Política pela UFPR. Advogada, Professora e Pesquisadora do Núcleo de Direito Internacional da PUCPR.
Páginas2-23

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Pelo fato de ser exilado ou banido, um homem não perde a sua qualidade de homem nem, por conseguinte, o direito de habitar alguma parte da terra. Ele recebe esse direito da natureza ou, antes, de quem a destinou aos homens para que a habitassem; e a propriedade não foi introduzida em prejuízo do direito que todo homem recebe ao nascer - o direito ao uso das cousas absolutamente necessárias.

Emer de Vattel

Introdução

Por ocasião do término da Primeira Guerra Mundial e da eclosão da Revolução Bolchevique, a comunidade internacional mobilizou-se pela proteção dos refugiados e, com a criação da Liga das Nações, teve início o processo de institucionalização de tal proteção. Criada em 1920, a Liga tinha como finalidade primordial o restabelecimento do equilíbrio rompido pelos traumas da Primeira Grande Guerra, através da promoção da cooperação, da paz e da segurança internacionais. A Convenção da Liga das Nações ainda estabelecia sanções econômicas e militares a serem impostas pela comunidade internacional aos Estados que violassem suas obrigações, culminando numa redefinição do conceito de soberania estatal absoluta2. Naquele período, o então Alto Comissariado da Liga das Nações para Refugiados operava de maneira bastante incipiente e limitada, pois, além de esbarrar nos óbices ligados aos aspectos de soberania, não dispunha de fundos próprios, o que evidentemente veio a agravar-se com o início da Segunda Guerra Mundial.

Para além dos conflitos bélicos, ideológicos, políticos e econômicos, a Segunda Grande Guerra, assim como o período que a sucedeu, deu azo aos maiores deslocamentos humanos da História moderna. Calcula-se que, em meados de 1945, mais de 40 milhões de pessoas encontravam-se deslocadas nos limites do continente europeu, sendo, em sua maioria, os sobreviventes do Holocausto – isso sem contabilizar o grande contingente de alemães foragidos do exército soviético que avançava rumo ao leste, bem como os estrangeiros que trabalhavam em regime forçado na própria Alemanha3.

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Outrossim, incluíam-se no efetivo ora mencionado mais de um milhão de russos, bielorussos, ucranianos, poloneses e letões foragidos do regime comunista soviético, além dos foragidos da guerra civil que então eclodia na Grécia. Fora dos limites da Europa, os conflitos armados também deram margem a deslocamentos massivos, com milhões de chineses evadidos das regiões da China controladas pelas forças japonesas. Especulase que havia, igualmente, cerca de 13 milhões de pessoas de origem alemã, expulsas, naquele mesmo período, da União Soviética, da Polônia, da Tchecoslováquia e de outros países do leste europeu4.

Neste prisma, a necessidade da criação de uma instituição para a proteção dos refugiados mostrou-se premente, posto que, desde então, visualizaram-se as principais dificuldades que até hoje acompanham estes indivíduos: a desnacionalização de facto, ou seja, o abandono e a perseguição por parte do país de origem em relação aos seus próprios nacionais, e a condição de apátrida, de jure, estabelecida de forma repentina5. Em termos tais, e de modo a assinalar a necessidade de cooperação entre todos os sujeitos e agentes nacionais e internacionais – posto o grave problema dos refugiados tratar de uma questão de ordem humanitária –, assim como a cautela com a qual tal ambiente cooperativo deve ser desenvolvido – considerando o fato de que as questões levantadas pela condição dos refugiados trazem consigo outros problemas de nuances igualmente desafiadoras, geralmente abrangendo disputas e interesses políticos –, emergiu a necessidade da verificação das posições assumidas pelos Estados em relação aos refugiados, mediante o estabelecimento de políticas favoráveis a tais grupos ou ainda através da criação de medidas restritivas ou mesmo impeditivas ao acolhimento, por exemplo.

Em relação ao primeiro posicionamento, a preocupação em promover a ampliação do número de países dispostos a empreender esforços em prol dos refugiados através de variados esquemas de cooperação, por parte da sociedade internacional, tem sido evidenciada no apelo à criação de mecanismos que visem à proteção das vítimas, das suas famílias e dos seus descendentes no âmago interno de cada Estado. Tais mecanismos tendem a envolver, primordialmente, o ensejo à integração destes grupos nos países receptores, bem como a inclusão dos reassentados em programas governamentais ligados à saúde, à educação, ao trabalho, à habitação, ao lazer e ao consumo – o que por si só já representa um grande desafio, considerando o fato de que uma grande parcela dos Estados tende a ter insuficiência de políticas públicas para tal e instituições assistenciais deficientes em relação aos seus próprios nacionais.

No que tange à recepção e proteção dos refugiados, alguns dos procedimentos adotados por cada Estado tendem, invariavelmente, a resultar um efeito diverso – senão antagônico – à sua proposta inicial, qual seja a de oportunizar uma efetiva reintegração social e melhores condições de vida aos refugiados. No Brasil, tal indagação se faz ilustrar especialmente na atual versão dos documentos de identificação destinada aosPage 4deslocados, cédulas nas quais se encontra o vocábulo “Refugiado” para designar o portador do documento. De maneira geral, as principais manifestações favoráveis à supressão do referido termo dos documentos adotados no Brasil surgiram em tempos mais recentes, quando, sob a evocação de princípios magnos dos Direitos Humanos, tais como a dignidade e a igualdade, foi-se constatando a grande dificuldade dos deslocados em consolidar sua integração e readaptação no país, a exemplo das muitas vezes frustradas ofertas de trabalho e a busca por serviços básicos ao cidadão. De tal feita, julgou-se necessária a análise do questionamento levantado no início de 2008 pelo ACNUR no Brasil, qual seja o de que o termo “Refugiado”, impresso nos documentos de identidade para os deslocados, termina por assumir uma acepção discriminatória.

1 Refugiados: evolução protetiva e conceitual

A importância dada, na reflexão atual, aos temas globais, é facilmente explanável se considerado o fato de que os indivíduos, comunidades, nações e mesmo Estados deste início de século já não se encontram insulados em seus próprios territórios. Esta tensão aponta, dentre uma infinidade de outros caracteres, para os sinais da globalização, cujo significado, entrementes, não é o mesmo para todos os indivíduos, grupos e nações; de acordo com Sonia de CAMARGO, o paradoxo está em que, ora permanecendo no centro, ora nas margens de onde os processos globais são gerados e desenvolvidos, estas comunidades são profundamente atingidas por eles, negativa ou positivamente, fazendo com que dificilmente consigam controlá-los6. Bens, capitais e informações nunca circularam tão facilmente quanto na atualidade, e businessmen, turistas e estudantes movimentam-se constantemente através de fronteiras físicas e simbólicas – estas últimas cada vez menos visíveis. A contrastar, governos continuam determinados em controlar o movimento de pessoas indesejadas e tomam medidas austeras para impedir entradas não-autorizadas em seus limites territoriais, impossibilitando, muitas vezes, que indivíduos com efetiva necessidade de proteção alcancem um local onde possam gozar de segurança.

Em relação ao indivíduo enquanto sujeito de direitos e sua inserção na ordem internacional, cabe ressaltar a evidência, no âmbito do Direito Internacional, de duas tendências nítidas. A primeira, cujo caráter se possa chamar de repressivo, clarificou-se com a criação de tribunais internacionais, por exemplo; a segunda, e mais visualizável nos dias atuais, possui natureza preventiva e protetiva7. No atinente a esta última, sublinha-se a contemplação do Direito Internacional Público em relação a três ramos normativos destinados à proteção do ser humano: o Direito Internacional Humanitário, integrado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR) e composto pelas quatro Convenções de Genebra, o qual estabelece um regime de proteção dos indivíduos em situações de conflito armado internacional e/ou doméstico; o Direito Internacional dos

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Direitos Humanos, composto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, os dois Pactos Internacionais sobre Direitos Civis, Políticos, Sociais, Econômicos e Culturais, as Convenções sobre Direitos Humanos celebradas em âmbito regional, as Convenções contra a Tortura e a Convenção Contra todo tipo de Discriminação Contra a Mulher; e, por fim, o Direito Internacional dos Refugiados, sobre o qual o presente estudo será mormente pautado. Ambas a vertentes consolidam um sistema interdependente, de modo que a coexistência normativa, conceitual e operacional deste conjunto permite sua aplicação simultânea, sobretudo em situações de emergência humanitária, tão comuns ao longo da História e de forma enfática na contemporaneidade8.

Dando prosseguimento a esta análise, cabe emergir a relevância de uma conceituação adequada correlativamente aos refugiados, estabelecendo, para tanto, as semelhanças e diferenças entre os institutos do asilo e do refúgio. Como demonstrado por Paulo Borba CASELLA, tal tarefa mostra-se importante sob vários aspectos: primeiramente, porque os conceitos legais possuem conotação decisiva em relação às características das obrigações dos Estados signatários dos tratados pertinentes ao tema, de modo que um indivíduo que satisfaça as condições neles previstas possa gozar do direito ao seu amparo; consequentemente, pelo fato de que as definições dos citados instrumentos são adotadas por muitas legislações nacionais, tornando-se relevantes para a caracterização formal do status de refugiado, bem como do asilo, sob a proteção de determinado sistema nacional9.

Popularmente, entende-se que o asilo...

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