Gilda e Candido: leituras sobre Manuel Bandeira na Revista Brasileira de Poesia e Depois

AutorCarlos Speck Pereira, Maria Lucia de Barros Camargo
CargoCarlos Speck Pereira é graduando no curso de Letras Português na Universidade Federal de Santa Catarina. Integrante do Núcleo de Estudos Literários & Culturais e bolsista de Iniciação Científica. - Maria Lucia de Barros Camargo é professora titular de Teoria Literária no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas. Pesquisadora do CNPq e ex...
Páginas46-55
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doi:10.5007/1984-784X.2019v19n30p46 46
GILDA&E&CANDIDO
leituras)sobre)manuel)bandeira
na)revista(brasileira(de(poesia)e)depois
Carlos&Speck&Pereira
Maria&Lucia&de&Barros&Camargo
UFSC&–&CNPq
RESUMO:pretendetextode<1948,Gildae
publicadoRevista(Brasileira( de(Poesia,< e “Introdução” Estrela(da( vida(inteira,< de<1965,<
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PALAVRAS-CHAVE:Revista(Brasileira(de(Poesia;<Estrela(da(vida(inteira.
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ABSTRACT:
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KEYWORDS:Revista(Brasileira(de(Poesia;<Estrela(da(vida(inteira.
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Vernáculas.quisadoraeordenadoraoeostudosários<&raisNELIC).
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GILDA E CANDIDO
leituras sobre manuel bandeira
na revista brasileira de poesia e depois
Carlos Speck Pereira
Maria Lucia de Barros Camargo
Em 1947, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Carlos Burlamaqui Kopke,
Domingos Carvalho da Silva, Geraldo Vidigal e João Accioli fundaram a Revista
Brasileira de Poesia. Editada até 1953, a revista publicou seis números, que
veiculavam poemas, ensaios, traduções, resenhas e notícias voltadas para o
cenário literário brasileiro da época. Junto à equipe diretora, havia um con-
selho consultivo marcado pela presença de Antonio Candido, Sérgio Milliet,
Jamil Almansur Haddad, dentre outros colaboradores.
Figura 1 – Capa1
Ante a Revista, uma sóbria aparência se apresenta, em sua capa, para o lei-
tor. Sobre os responsáveis pela arte gráfica nenhuma informação é explicitada
nas páginas de informações editoriais. É constituída por traços na capa que de
número para número se alteram apenas por diferentes marcações numéricas
de ano, volume e número. Ao redor do título em destaque, ressalta como or-
1 Revista Brasileira de Poesia, n. 2, 1948.
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namento um entrelaçado de flores que lembra uma estética de arte nouveau.
Essa aparência destoa, por exemplo, daquela da revista Joaquim; um periódico
também da década de 40, cuja arte gráfica se mostra arrojada, investida, cria-
tiva.
Virando a folha de capa e as primeiras páginas de sumário e informa-
ções catalográficas da Revista Brasileira de Poesia, adentramos em seu pri-
meiro texto. Em “O neo-modernismo”, de autoria de seu diretor responsável,
Péricles Eugênio da Silva Ramos delineia considerações acerca de uma “nova
escola”2 literária em surgimento. Esse primeiro ensaio, que não é exatamente
um editorial, no espaço de abertura da revista se coloca. Ali, Péricles reelabora
o termo neo-modernismo, cunhado por Tristão de Ataíde, ao reavaliar os valo-
res e a presença dessa “nova escola”. Debruçando-se sobre o texto de Tristão
de Ataíde (pseudônimo para Alceu Amoroso Lima), o autor destaca: “Para o
crítico, o movimento em início manifesta-se não como uma ruptura, mas sim
como um prolongamento do modernismo, cujas figuras exponenciais não são
atacadas pelos novos. [...]”3
Acerca de algumas inventivas de Ataíde, Péricles Eugênio da Silva Ramos
diverge; considera por inadequada, por exemplo, a demarcação de fim do pe-
ríodo modernista pelo acontecimento de morte de Mário de Andrade. É, aliás,
através de Mário de Andrade que verifica, já no tempo do modernismo da
década subsequente à 22, considerações do estético caras ao fazer poético de
seu contemporâneo:
Se Mário foi, sob muitos aspectos, a figura principal do modernismo, em sua obra,
ao mesmo passo, se encontram as bases do neo-modernismo, que, se existe, de-
ve-o, e altamente, à pregação de “O Empalhador de Passarinho.4
O princípio de que o neo-modernismo seria uma espécie de prolonga-
mento do modernismo é presente no texto de Tristão de Ataíde; Péricles não
o refuta, mas o incorpora em constatações como acima. A preocupação em
observar e definir características de um novo movimento a aparecer no final
da então década de 1940 permeia diversos textos de periódico.
Na mesma linha de Péricles, Carlos Burlamaqui Kopke, diretor administra-
tivo do periódico, relembra Mário de Andrade enquanto crítico literário em
2 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O Neo-modernismo. Revista Brasileira de Poesia, São Paulo,
v. 1, n. 1, p. 1, dez. 1947.
3 Ibidem, p. 2.
4 Ibidem, p. 2.
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“Valorização do estético em Mário de Andrade”. É o segundo ensaio do núme-
ro inaugural, antecedido por uma exposição de poemas de Bueno de Rivera.
No fazer crítico, Mário se detinha em verificar nos artistas “uma consciência
plástica, que fosse o resultado da vontade de uma técnica. Parece que foi, ver-
dadeiramente, a vontade de uma técnica o núcleo das críticas andradinas.”5
Na crítica a um tipo de composição que prescinde da vontade de uma técni-
ca, apresenta-se no próprio enunciado de Kopke uma postura a corroborar
com Mário de Andrade: “Enfim: sempre essa inflação do artista e êsse esque-
cimento da obra de arte que vem sendo o maior engano estético desde o
Romantismo até os nossos dias.6 Talvez seja aqui uma tentativa de constatar
no autor de Macunaíma a valorização da técnica que estimulava grande
parte da então nova geração.
Na seção “Arquivo”, seção da Revista destinada à apresentação de excer-
tos retirados de outros veículos de imprensa, ainda no primeiro número, exi-
bem-se trechos do artigo “Reação poética” de outro colaborador do periódi-
co, Sérgio Milliet, publicado em O Estado de S. Paulo no início daquele ano de
1947. Esse texto, anterior ao neo-modernismo de Tristão de Ataíde, indica os
prenúncios de uma sensibilidade poética outra, em caráter de reação à poesia
da geração de 22. Itera-se uma reação que, apesar de fazer dissonância, de
certos exemplos modernistas também se valia, a citar:
Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida, que nunca desprezaram a técnica do
verso, que nunca se esqueceram de que a poesia não é apenas emoção bruta, mas
também euritmia, música, transposição para o plano literário, arte.7
Correlacionado à Revista, é organizado por sua equipe editorial, no pri-
meiro semestre de 1948, o I Congresso Paulista de Poesia, cujo regulamento,
convidados, inscrições e resultados foram expostos ao longo dos números do
periódico entre os anos de 1947 a 1949, em sua seção “Noticiário”. Dentre os
objetivos do congresso, destaca-se a discussão sobre as “causas e consequên-
cias da escola modernista”, assim como o debate acerca “dos aspectos atuais
da poesia brasileira e da crítica poética”.8 Foi desse Congresso a conferência
5 KOPKE, Carlos Burlamaqui. Valorização do estético em Mário de Andrade. Revista Brasileira de
Poesia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 12, dez. 1947.
6 Ibidem, p. 14. Todas as citações diretas estão em sic.
7 MILLIET, Sérgio. Reação poética. Revista Brasileira de Poesia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 74, dez.
1947.
8 Revista Brasileira de Poesia. Primeiro Congresso Paulista de Poesia. São Paulo, v. 1, n. 1, p. 66,
dez. 1947.
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de Domingos Carvalho da Silva intitulada “Há uma nova poesia no Brasil”, na
qual designa aquele novo movimento como Geração de 45. Nesse discurso,
Domingos é incisivo e apresenta, de certa maneira, um contraponto aos tex-
tos anteriormente citados,9 ao afirmar:
O tema, aliás, foi colocado pelos modernistas de 22 no alicerce da sua obra. O tema
é uma parte necessária mas subalterna na poesia que surge. O mundo de 1948 não
está preso ao de vinte e cinco anos atrás. A poesia da hora que passa não é uma
herança legada pelo passado ao presente; é uma conquista da nova geração.10
Assume, portanto, que a Geração de 45 não mantinha uma relação de
prolongamento com a geração modernista de 22; pelo contrário, ressoa desse
discurso antes uma atitude de ruptura com ela.
Ainda sobre o I Congresso Paulista de Poesia, foi decorrente dele a cria-
ção do Clube de Poesia de São Paulo.11 Dentre as atividades do Clube, dis-
cutiu-se a possibilidade da produção de uma antologia de poesia.12 Coube a
Carlos Burlamaqui Kopke, então diretor administrativo da Revista Brasileira
de Poesia, a organização dessa antologia, a ser intitulada Antologia da Poesia
Brasileira Moderna e que acabou sendo publicada em 1953.
Encarregado do arranjo, Kopke dividiu a Antologia em três partes, demar-
cadas pelas conhecidas três gerações, pontuadas em 22, 30 e 45. Subdividida,
a parte 1 é constituída por “Poesia de tendência nacionalizante, regionalis-
ta etc.” e por “Poesia de tendência universalista, espiritualista etc”. Poemas
de Manuel Bandeira são classificados na seção de “tendência nacionalizan-
te”, onde figuram “Balada de Santa Maria Egipcíaca”, “O cacto” e “Poética”.
Bandeira é também incluído na segunda parte do livro, naquela dedicada aos
poemas de depois de 1930, mas posto na subdivisão “Itinerário da Geração
de 22”. É com um poema dele que Kopke introduz a categoria, com “Vou-me
embora p’ra Pasárgada”. Em justaposição, na nomeada “Geração de 30”, o or-
ganizador abre alas com “No meio do caminho”. Aparecem naquele “Itinerário
da Geração de 22” os poemas bandeirianos “Momento num café”, “Última
9 Antes da transcrição do discurso de Domingos, a Revista, relatando os atos do Congresso, a
introduz depois da seguinte ressalva: “A Comissão [avaliadora das teses do Congresso] rejeita
as conclusões da tese, ao mesmo tempo que discorda ainda de várias de suas premissas. Re-
comenda, entretanto, sua publicação nos Arquivos do Congresso, como ainda a publicação, se
for possível, dos debates que suscitar” SILVA, Domingos Carvalho da. Há uma nova poesia no
Brasil. Revista Brasileira de Poesia, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 66, ago. 1948.
10 Ibidem, p. 69.
11 Revista Brasileira de Poesia. Clube de poesia. São Paulo, v. 1, n. 3, p. 56, ago. 1948.
12 Idem, Antologia da poesia brasileira moderna. São Paulo, v. 2, n. 6, p. 65, jun. 1953.
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canção do beco” e “A estrela”. A fuga de “Poesia de circunstância” isto é, “ela-
borada num desses momentos em que o poeta se faz levar pelo engodo de
qualquer circunstância ou qualquer tema [...], sem zonas interditas”,13 foi um
dos critérios que Kopke utilizou na seleção dos poemas da Antologia.
Voltamos, então, para a leitura da Revista Brasileira de Poesia. Nela e no
seu entorno, como visto sumariamente, permeia tanto a discussão sobre o
delineamento e expressão de uma nova geração da poesia, quanto a presença
da tradição moderna, ou modernista, nesse cenário. No segundo número do
periódico, em “Dois poetas”, Gilda de Mello e Souza resenha o lançamento
de dois livros de poesia. Tratavam-se de dois livros de dois grandes poetas.
Poesias completas, com acréscimo de Belo belo, de Manuel Bandeira, e Poesia
até agora, de Carlos Drummond de Andrade. Ambos livros de reunião do que
até então tinham produzido em matéria de poesia. Sentimo-nos convidados a
adentrar numa leitura a contar de um recente tão distante. Um ar de novidade
intrínseco à natureza do suporte que o transporta: “Dois dos nossos maiores
poetas abrem o ano oferecendo-nos suas poesias”.14 De poetas, velhos conhe-
cidos, a inaugurar.
À guisa de introdução, a autora comenta sobre um período no qual os
dois poetas se confundiam numa mesma “zona de rebeldia”: “o mesmo ar os
envolve e se não tivermos cautela, pensaremos que foi Bandeira que escreveu
a Anedota búlgara e Drummond assinou o Poema tirado de uma notícia de jor-
nal.”15 Tal apontamento, tal qual um mote para a distinção, logo em seguida
é dissolvido pela passagem do tempo e do poetar, colocada pela fundamental
maturidade particular e plena do autor de A rosa do povo, já liberado da cate-
goria de “discípulo”.
Então, Gilda elabora uma espécie de dicotomia: afirma haver dois tipos
de atitudes opostas com as quais um poeta pode se expressar. Ou um pendor
a um exibicionismo de confissão, num polo; ou um avesso construído por um
pudor de recalque, em outro polo. A Manuel Bandeira caberia este último, se-
gundo a autora. E a Mário de Andrade, o trânsito entre os dois tipos:
Há os poetas do pudor, há os poetas do abandono. E existem ainda os que, dilace-
rados pelo dilema, criam um compromisso entre os dois polos, velando a confissão
até o hermetismo, inventando para cada paixão um sinal que a substitua.16
13 KOPKE, Carlos Burlamaqui (Org.). Antologia da Poesia Brasileira Moderna. São Paulo: Clube
de Poesia de São Paulo, 1953, p. 16.
14 SOUZA, Gilda de Mello e. Dois poetas. Revista Brasileira de Poesia, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 72,
abr. 1948. [Grifos nossos].
15 Ibidem, p. 72.
16 Ibidem, p. 72.
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Da sucinta explanação, exigida pela própria natureza do gênero do dis-
curso resenha, decorre uma evidência sobre Manuel Bandeira num exemplo
de seu modo. Na contenção, Manuel Bandeira “risca no papel o escudo geo-
métrico”17: “Escudo vermelho nele uma Bandeira / Quadrada de ouro / E nele
um leão rompente / Azul armado.”,18 do poema “Carta de Brasão”, contido no
livro Lira dos cinquent’anos.
Ocuparia o poeta um lugar de comedimento, não revelando de si um lu-
gar profundo, antes um olhar até a borda; é uma poesia de “extrema lucidez”.
Para a autora, a poesia de Bandeira não se vale de catarse para o alcance de
um “equilíbrio na vida”; a poesia de Bandeira é um mostrar-se sem entrega.
“O poeta não mostra o coração, mostra a sua casa.19 E ela afirma que mesmo
em Libertinagem e depois de Libertinagem, essa casa não se expressa em de-
sordem. Atribuindo a essa lucidez uma consonante “conscienciosa felicidade”,
pensamos em “Vou-me embora pra Pasárgada”, que num gesto de controle o
eu poético é lançado por si a um acesso sem chegada.
Além de consciente, o refinado manejo da linguagem excita uma sensi-
bilidade sonora própria da poética de Manuel Bandeira, que “recolhe em seu
berimbau todos os sons da terra.”20 O que faz trazer em planos primeiros an-
tes a “joia”-palavra, cuja sonoridade, segundo a autora, no fecho do enunciado
encimado em Poesias completas, “refulge como o Grão-Mogol”.21
Isto posto, a autora conduz seu texto para referir-se a Carlos Drummond
de Andrade de Poesia até agora. Sumariamente, nessa cisão, ela principia
numa afirmativa sobre uma possível oposição: ao autor de José seria atribuída
a característica de uma poética marcada, em retomada à tipificação teorizada,
por uma espécie de exibicionismo.22
Impossível ler a resenha de Gilda de 1948, que toca no conjunto da obra
poética de Manuel Bandeira, sem lembrar da “Introdução” da Estrela da vida
inteira, escrita quase duas décadas depois, em 1965, pela própria Gilda de
Mello e Souza e por Antonio Candido.23
17 Ibidem, p. 73.
18 Ibidem, p. 7
19 Ibidem, p. 73.
20 Ibidem, p. 74.
21 Ibidem, p. 74.
22 Ibidem, p. 74.
23 Partimos para a leitura defrontados com uma escritura reeditada inúmeras vezes. O papel
não está amarelado; um texto lido fixo no tempo que não envelhece, que não pressupõe um
ontem recente a se fazer seduzir.
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Sobre a sonoridade apurada e inconteste da obra poética de Manuel
Bandeira, os autores dão destaque à recorrência de contrapontos, como na
alteração semitonal de “Capiberibe, Capibaribe”. O contraponto é também
presente no plano temático, ou responsivo, como nos dois poemas de mesmo
nome “Belo belo”.
Vindo da musicalidade obsessiva do Simbolismo, a sua evolução poética se proces-
sou no sentido do abandono gradativo do universo melódico por um novo espaço
mais vizinho da música contemporânea, isto é, não mais fluido e sim anguloso e
fragmentado, às vezes baseado no contraponto, jogado usualmente com as dis-
sonâncias.24
Destarte, aquele caráter de pudor atribuído a Manuel Bandeira no texto
de 1948 não é refutado na “Introdução”, é talvez corroborado. Gilda e Candido
afirmam dessa poética como marcada por um certo “tipo de materialismo que
o faz aderir à realidade terrena, limitada, dos seres e das coisas, sem precisar
explicá-los para além da sua fronteira.”25 É também um “mostrar a casa, não
o coração”, como dito naquele texto de 48. E atribuem à essa “franqueza”
contida o potente alcance do transcendente, que paradoxalmente, ecoa da
concisão bandeiriana. Aí também entra a forma fixa, que revisitada, toma ou-
tras matizes “mais nobres mais fundas”; mas sobretudo a transcendência aqui
é um dizer da experiência material, que colada a uma terminologia “ampla-
mente universal no seu desdobramento”, ancora “de um lado, na matéria e na
carne como realidade suficiente; mas de outro, ter como segundo ponto de
referência a destruição de ambas, isto é, a morte.”26
Interessante notar, ainda, um acréscimo de Gilda e Candido a tal leitura,
um fazer ampliar: mas não nos referimos a outra volta no parafuso desse viés
analítico – destacamos mesmo é a vontade de abertura a que se colocam:
assumem, de início e de fecho, uma pluralidade de outras leituras possíveis
e desenvolvem, na segunda parte da mesma Introdução, outro tipo de trato
com a poesia bandeiriana analisando alguns poemas contidos na reunião.
Do nível de abstração legado a uma visão do conjunto, os críticos partem
para a análise de poemas. Além da consideração de uma “poesia condensada
e fraterna” motivada pela “capacidade de redução ao essencial”, aliada a um
24 SOUZA, Gilda de Mello e; CANDIDO, Antonio. Introdução. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da
vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993 [1965]. p. 10.
25 Ibidem, p. 3.
26 Ibidem, p. 4.
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refinado “senso do momento poético”,27 a análise poética perscruta em segui-
da, primeiramente, para buscar no particular as incidências dos contrapontos,
poemas como “Canção das duas Índias”, “Balada das três mulheres do sabone-
te Araxá”, “Pneumotórax”, etc.
Mas retomemos aquele mesmo número dois da Revista em que é veicula-
da a resenha de Gilda de Mello e Souza. Lá, Antonio Candido também publica
um texto. Trata-se de um ensaio sobre T. S. Eliot, “La fliglia que piange”. No
início desse texto, Candido cita versos e poemas como “Brisa”28 para defen-
der uma figura de leitor que, cada um, “é um vaso novo em que os cantos do
poeta irão combinar-se de modo especial e quase único”.29 Ao leitor, caberia
uma visão toda ela marcada particularmente, a se encontrar com a leitura de
forma igualmente particular. “A nossa aventura pessoal no domínio da poe-
sia consiste pois em buscar contactos através dos poemas.30 Na esteira do
argumento, Antonio Candido faz menção à persona Manuel Bandeira: tanto
os poemas quanto a persona, inconfundíveis, seriam “presenças peculiares”
construídas, portanto, no encontro entre leitor e obra. Pensamos, portanto,
que aquele “mostrar a casa”, do texto de Gilda, implica também em um ‘sinta-
-se à vontade’ para entrar, ver e pensar nos retratos, que não pesam. Não pe-
sam, outrossim, pois está preservada a intimidade oculta – porque de esmera
temperança: apresenta-se para o toque e visão apenas um arranjo de retratos
escolhidos que convergem a um encontro potente de significações.
De volta à Introdução de 1965, nos deparamos com a seguinte afirmativa:
A nossa atenção é despertada inicialmente pela voz lírica deste Eu, que, ao cons-
truir os poemas, nos acompanha a cada passo, dando a cada verso o seu timbre e
a sua vida. Ela é o produto de componentes que nunca poderemos enumerar, e de
que apenas vislumbramos uma ou outra, segundo o ângulo em que nos situamos.31
Considerações finais
Em pauta naquele fim de década estava a constituição de uma nova sensi-
bilidade poética. A Geração de 45, nomeada por Domingos Carvalho da Silva,
27 Ibidem, p. 5.
28 O verso do poema citado apresenta uma irregularidade impressa no texto: “Vamos viver de
brisa, Marina”. Em verdade, o poema de Manuel Bandeira é grafado, consultando a Estrela da
vida inteira, “Vamos viver de brisa, Anarina”. Tal erro, contudo, não pode ser de pronto atri-
buído ao autor, na medida em que o processo de edição e tipografia também poderia cometer
similar equívoco.
29 CANDIDO, Antonio. La figlia que piange. Revista Brasileira de Poesia, São Paulo, v. 1, n. 2, p.
45, abr. 1948.
30 Ibidem, p. 45.
31 SOUZA, Gilda de Mello e; CANDIDO, Antonio. Introdução, op. cit., p. 3. [grifos nossos].
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se propunha a “uma poética que foi definida de recuo ideológico e de aprofun-
damento técnico”.32 Contudo, reduzir a essa poética o fazer poesia de autores
como João Cabral de Melo Neto, o próprio Domingos Carvalho da Silva, Bueno
de Rivera ou Lúcio Cardoso parece um tanto artificial, a não ser que isso seja
encarado como ponto de partida. Glosando Cabral, que afirma preferir “par-
tir do que pensam e dizem sobre os jovens poetas, os poetas mais antigos,
porque eles são capazes de fornecer sobre as novas tendências uma visão de
conjunto”,33 trazemos a opinião de Manuel Bandeira a respeito daquele entor-
no poético que se firmava (ou que muito se explicava a fim de se firmar),34
“desentranhada” de uma entrevista do Diário Carioca, publicada em 1951:
Formalismo de linguagem [...] pois muitos deles não têm no ouvido o sentido do
verso. [...] Acho que há uma coisa nova – respondeu – e eu me fundo, para esse
juízo, ao fato de que eu muitas vezes não consigo entender esses poetas novos.
Se uma pessoa de uma geração já não entende a de outra, é que houve uma mu-
dança.35
Vale lembrar que no ano de 1948 Manuel Bandeira publicava, além de
Poesias completas, o livro Mafuá do malungo. Esse livro é marcado fortemen-
te pela presença daquela poesia de circunstância de que fala e foge Carlos
Burlamaqui Kopke em sua Antologia. Em Mafuá do Malungo, Bandeira apre-
senta poemas como “Elegia inútil” (“Lágrimas, duas a duas, / choraram dentro
de mim, / ao ler que o Prefeito Alvim / mudou o nome a muitas ruas”[...]36) a
versar, por exemplo e a partir de, acontecimentos factuais e pontuais. É uma
poesia demovida também das asserções de “Dois poetas”, de Gilda de Mello
e Souza (talvez aqui, contudo, pelo motivo de ela não ter tido contato com a
primeira tiragem de Mafuá). Resta refletir no quanto o poeta a compor em
“Jogos onomásticos” tensionaria o conjunto fortemente lembrado pelo pudor,
pela “franqueza” contida, teorizados e cristalizados pela crítica.
32 STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. A “Geração” de 45. In: STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. Histó-
ria da Literatura Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004. p. 591.
33 MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 742.
34 Ibidem, p. 741.
35 Declara Bandeira que já não consegue entender muitos “desses poetas novos”. Diário Carioca.
Rio de Janeiro, p. 9. jul. 1951.
36 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.
338.
Recebido em 18 de dezembro de 2018
Aceito em 12 de fevereiro de 2019

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