Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

AutorMaria José de Rezende
Páginas178-203

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Introdução

Tendo* em vista que, neste estudo, trata-se de dois pensadores que têm uma vasta obra de interpretação do Brasil 2 , faz-se necessário, em primeiro lugar, recortar, no conjunto de seus livros, aqueles textos que melhor explicitam uma constante preocupação com a formação das atividades urbano-industriais no país. Os livros Sobrados e mucambos e Ordem e progresso, de Gilberto Freyre e Formação econômica do Brasil 3 , Dialética do desenvolvimento, A fantasia organizada e A fantasia desfeita , de Celso Furtado, fornecem subsídios suficientes para a compreensão de duas perspectivas distintas acerca do modo de processamento da urbanização e da industrialização no Brasil.

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As divergências constituidoras de suas interpretações não se formaram com base em diálogos diretos estabelecidos entre eles próprios. Celso Furtado e Gilberto Freyre trilharam caminhos distintos em suas análises, quase se ignorando em relação ao modo como cada qual interpretava o país. Os principais livros de Freyre ( Casa grande & senzala , Nordeste , Sobrados e mucambos ) são anteriores aos escritos de Furtado, mas as obras Formação econômica do Brasil , desse último, e Ordem e progresso , do primeiro, tiveram suas primeiras edições no mesmo ano, ou seja, 1959. Ao construírem análises expressivamente distintas e sem diálogos e enfrentamentos críticos, formaram dois blocos de interpretação, “em que ambos perdem. Freyre, mantendo-se apático ou até mesmo hostil diante do grande movimento político-cultural que reinseriu o Nordeste no imaginário nacional e que resultou na criação da Sudene. Furtado, ao não desenvolver, mesmo criticamente, as ricas pistas sobre a formação da identidade nacional e sobre a problemática racial contidas na obra de Freyre” (GUIMARÃES, 2000, p.19).

O próprio Celso Furtado argumenta em As aventuras de um economista brasileiro que desde muito cedo travou contato com a obra de Gilberto Freyre, em especial, Casa grande & senzala , o qual o introduziu nas discussões antropológicas e sociológicas que se desenvolviam nos EUA na primeira metade do século XX. No entanto, o livro principal de Freyre que havia empolgado muitos intelectuais em nada o havia influenciado “no que diz respeito a sua mensagem substantiva, isto é, no que se refere à interpretação do processo histórico brasileiro. Sua importância esteve em que nos revelou todo um instrumental novo de trabalho” (FURTADO, 1997c, p.16).

O declínio do patriarcalismo e a formação das atividades urbanoindustriais no Brasil: a leitura de Gilberto Freyre
O mundo rural e o mundo urbano: interpenetração e acomodação

As análises de Gilberto Freyre sobre a formação das atividades urbano-industriais estão marcadas pela busca de relações de acomodação e de incorporação de interesses entre as classes sociais preponderantes.

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Isso não supunha, todavia, a inexistência de formas de subordinação entre os segmentos sociais diversos que controlavam as atividades econômicas prevalecentes. Os grandes proprietários de terras eram detentores de um poder político sem igual e definidor, nos séculos XVI, XVII e XVIII, do padrão de domínio patriarcal. O padrão de organização social que ganhou forma nesse período estenderia, assim, suas influências ao longo do século XIX, o que se deu de maneira tal que o processo de urbanização e de industrialização estivera marcado pelo modo de encadeamento da vida social dos séculos anteriores.

O declínio do patriarcalismo rural teria, segundo Freyre, dado lugar paulatinamente a uma outra forma de patriarcalismo: o urbano. Em Sobrados e mucambos , ele demonstra que as atividades urbano-industriais teriam sido, desde o início, marcadas por relações patriarcais. As novas distâncias sociais (de classe, de renda, de raça, de instrução), as novas formas de subordinação e os novos antagonismos tanto se redefiniram quanto mantiveram alguns traços do padrão de organização social, política e cultural do mundo rural. O mundo urbano, portanto, com todas as atividades que lhe são pertinentes, formou-se a partir de uma contemporização de estilos de vida e de padrões de cultura (FREYRE, 1961). As atividades de comércio e de indústria, por exemplo, nasceram marcadas pelo privatismo patriarcal. Sendo, então, enganoso supor que o desenvolvimento paulatino das atividades urbanas teria encerrado definitivamente um dado padrão de organização social.

A análise de Freyre oferece dados que elucidam a tortuosidade do desenvolvimento das atividades urbano-industriais, no que diz respeito à reelaboração de um padrão de organização e de domínio. Os efeitos desse processo, aos quais Freyre não se atém, seriam visíveis na maneira como as atividades urbanas reproduziam um tipo de mentalidade escravocrata na relação com o trabalhador. Como afirma Manoel Bomfim, em A América Latina: males de origem , firmavase uma relação de parasitagem que se estendeu século XX adentro e se pautava na refutação de toda reivindicação por melhorias salariais e de condições de trabalho (BOMFIM, 1993). Pode-se afirmar, então, que a constatação de que no mundo urbano o privatismo e o personalismo continuaram a existir nos moldes sedimentados pela organização patriarcal esclarece a tortuosidade das mudanças sociais no Brasil.

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Isso é verificável não somente no modo da mentalidade patriarcal imiscuir-se nas relações econômicas, mas também nas relações políticas, sociais e culturais. A partir do final do século XIX, verifica-se que o poder tutelar foi-se esmaecendo no âmbito das atividades econômicas, mas não, por exemplo, no âmbito da vida e da cultura políticas.

Nesse sentido, a análise efetuada por Freyre acerca da formação e da expansão das atividades urbano-industriais revela que não somente no âmbito da vida política e no do Estado as incorporações dos valores patriarcalistas trouxeram conseqüências significativas. Tal absorção foi também decisiva no âmbito das atividades econômicas, que passaram a reproduzir um padrão de organização social que não se desvencilhava totalmente dos controles personalistas e familistas. Todavia, o grau desses controles era variável à medida que ocorriam mudanças na própria estrutura patriarcal. Explicando melhor, pode-se dizer que tais controles eram distintos no patriarcalismo semi-rural, no semi-urbano e depois no propriamente urbano. Como padrão de organização de família, de economia e de cultura, o patriarcalismo foi-se modificando e produzindo tipos particulares de relações sociais. Por isso, as gradações que iam do patriarcalismo agrário ao urbano passavam por, no mínimo, duas etapas intermediárias.

Para Gilberto Freyre, a essencialidade de estudar essas gradações estava no fato de elas revelarem condições de raça, de classe e de cultura que iam se modificando, ajustando-se, acomodando-se e se redefinindo a um só tempo. A transição do patriarcalismo rural para o patriarcalismo urbano esteve marcada pelo desprestígio do senhor de engenho e pela ascensão do prestígio da aristocracia urbana, a qual era formada pelos comerciantes e pelos bacharéis. No entanto, a necessidade de se diferenciar da aristocracia rural foi-se constituindo paulatinamente por meio da desintegração do poder econômico e do sistema de moral vigente. Essa desintegração deixou suas marcas, seus rastros, nas novas atividades econômicas e no novo sistema de hábitos e de costumes que se instalava nas cidades. Por isso, não houve rompimentos absolutos, mas sim combinações e conciliações que foram produzindo equilíbrios, desequilíbrios e acomodações (FREYRE, 1961).

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Padrão de domínio e padrão de organização social: continuidades e mudanças

A formação das atividades urbano-industriais processou-se, não eliminando ou destruindo inteiramente o sistema patriarcal, mas incorporando traços desse padrão de domínio e de cultura “contraditório em vários dos seus efeitos sociais” (FREYRE, 1961, p.400). Isso se deu tanto pela incorporação dos negros livres às atividades mecânicas quanto pelo modo como os aristocratas urbanos aproximaramse dos proprietários de terras e de escravos. É evidente que Gilberto Freyre generaliza significativamente essa incorporação dos negros livres às atividades urbanas. Alguns, de fato, adentraram as atividades industriais, mas, seria esse fato significativo a ponto de garantir a sedimentação, nas novas formas econômicas, dos traços do patriarcalismo agrário? Essa co-responsabilização do negro nesse processo tem duas dimensões. A primeira é a necessidade que Freyre via de mostrar que o negro e o mulato desempenharam papéis fundamentais nas revoluções técnicas que ganharam fôlego no início do século XIX 4 . Eles não foram somente agentes passivos. A segunda fundase na necessidade de ressignificar a importância social desse processo de incorporação de alguns negros e mulatos livres à ordem econômica industrial.

No capítulo Escravo, animal e máquina , de Sobrados e mucambos , Freyre faz uma análise do aperfeiçoamento técnico que ocorreu com a ascensão da máquina, o que teria representado a emergência das condições que dificultaram a sobrevivência da escravidão no país. As mudanças foram morais e materiais. Seria visível na primeira metade do século XIX que alguns negros livres...

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