A gestão dos riscos psicossociais, a saúde mental do trabalhador e o meio ambiente laboral. Uma análise na perspectiva humanística

AutorAndré Sousa Pereira
Páginas43-61

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André Sousa Pereira1

Introdução

A espécie humana, no transcurso de sua existência, notabiliza-se pela busca instintiva e, portanto, sempre constante, da manutenção da vida, tanto na sua extensão temporal quanto em sua qualidade. É certo que, conforme a cultura de determinados povos em determinadas épocas, essa compreensão possuiu contornos peculiares, no molde da ideologia e da cosmovisão dominantes, sobretudo entre aqueles que adotaram/adotam o sistema capitalista de gerenciamento da economia como parâmetro. Na segunda metade do século passado, com maior intensidade, a compreensão jurídica quanto à relação umbilical, essencial, existente entre o direito à vida e o direito à saúde se aprofundou, verticalizou, desencadeando o emergir de normas reguladoras, seja no plano internacional, seja no plano interno de inúmeros ordenamentos estatais. A saúde, enquanto requisito nuclear para o viver com qualidade, inseriu-se na moldura especial dos direitos humanísticos, ou seja, é percebido como atributo da pessoa humana, direito inerente a essa natureza, indissociável, universal. A Organização Mundial de Saúde – OMS, desde o ano de sua criação (1946), dispôs o respectivo conceito a partir de concepção holística do homem, porquanto estabeleceu, para a concretização plena do direito à saúde, um “estado de bem-estar físico, social e mental”2. Há mais de seis décadas, portanto, a concepção desse direito não se restringe à incolumidade física, fazendo-se necessária sua intersecção com a interação social e a integridade mental da pessoa humana.

A despeito de políticas públicas adotadas por vários Estados com o fim de combater as causas de inúmeras enfermidades que agridem a saúde física, ou mesmo a existência de serviços públicos destinados à prevenção, ao diagnóstico e prognóstico dessas mesmas doenças, patologias de ordem psíquica começaram a se notabilizar, não só entre os dados apurados pelas principais instituições atuantes nessa seara3, mas também

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entre aquelas que se voltam para o trato das relações de trabalho4, trabalho que igualmente se qualifica juridicamente como direito humano5.

As causas desencadeadoras das doenças mentais relacionadas ao trabalho podem ser várias, vez se fazer possível, diante das características do labor, a eclosão das enfermidades por contato com determinados agentes químicos, físicos ou biológicos, os quais, por dano à integridade corporal do indivíduo, vêm a afetar a sua saúde mental, desencadeando um quadro patológico. Inobstante, com maior proximidade às características de um modo de produção flexível, mundial, competitivo, de troca de mercadorias ao invés de troca de valores6, os riscos psicossociais laborais proporcionalmente se elevaram em importância como potenciais causas de transtornos mentais ocupacionais, pois presentes na administração do trabalho e nas relações interpessoais estabelecidas no âmbito da atividade organizada.

Notadamente inseridos no poder de gestão próprio do empresário/empregador, porque proprietário da empresa e titular, logo, do direito de bem ordená-la7, os riscos psicossociais penetram no âmbito de dois direitos igualmente humanos e fundamentais8: o da livre iniciativa e o do meio ambiente do trabalho hígido. Entrementes, por serem inter-relacionados e interdependentes aos demais direitos humanos9, conferidas lhes

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são uma continuada conformação jurídica para que sejam praticados, não como contributos à manifestação das enfermidades mentais, mas como confluentes à sua prevenção, reparação e, ainda, promoção de um estado de bem-estar psíquico e emocional a todos aqueles que se inserem no processo de trabalho.

O problema que se buscará enfrentar no presente artigo, desta forma, dirige-se para o dever de gerenciamento dos riscos psicossociais laborais na perspectiva da concretização dos direitos fundamentais à saúde mental do trabalhador e ao meio ambiente do trabalho, porquanto a legitimidade e a licitude da liberdade de empreender se condiciona, dentro de uma hermenêutica humanística, à inexistência de ambiência empresarial geradora de transtornos mentais, particularmente por fatores de risco psicossociais. O efeito substantivo desse entendimento é decisivo à modificação do cenário atual grafado pelo crescente número de doenças psíquicas e emocionais ocupacionais, fundamentando e orientando, nesse sentido, os atos dos sujeitos envoltos nas respectivas relações materiais, mas também o agir daqueles que almejam discutir a questão processualmente, pretendendo a reparação de danos, ou a imposições de obrigações de fazer voltadas à prevenção dos direitos humanos balizadores.

Em tópico inicial, refletir-se-á sobre a consolidação dos direitos sociais no conjunto dos direitos humanos fundamentais, seu conteúdo, alcance e força normativa, visto ser esta a natureza do direito à saúde. Em seguida, passa-se a uma abordagem voltada ao direito fundamental à incolumidade mental, considerado em sua vocação integrativa ao espectro unitário do direito do homem à saúde e, em especial, do seu trato enquanto inserido na relação de trabalho. Por fim, sedimentado em tal premissa, desenvolver-se-ão considerações quanto ao meio ambiente do trabalho psicologicamente hígido, aos riscos psicossociais laborais e ao direito à saúde psíquica, elementos imbrincados, mas que talham um modo prospectivo de gestão construtiva do bem-estar mental do trabalhador.

A construção dos direitos sociais como direitos fundamentais conteúdo e alcance

A sistematização metodológica dos direitos humanos é produto jurídico recente, firmado no transcurso da segunda metade do século passado, mas como solidificação de um processo iniciado entre os séculos XVII e XVIII, período em que se verificou a derrocada do medievo e alvorada da modernidade, marcadamente com as revoluções operadas, nesse lapso, nos principais países ocidentais. Sedimenta-se o Estado Liberal de Direito10.

Por certo que este processo envolveu muitos fatores, como é próprio da complexa dinâmica da história social, vez ter, para sua solidificação, elementos de influência filosófica, fático-históricas, econômicas e jurídicas.

Sem adentrar, com maior profundidade, em algumas dessas vertentes – até por não se amoldar ao escopo deste artigo – importa destacar a relevância do jusnaturalismo no iter percorrido entre o absolutismo e o iluminismo, com a solidificação de um Estado de Direito positivista. Efetivamente, a percepção de existência de direitos que seriam intrínsecos ao homem, pelo simples fato de deter tal qualidade, consistiu no valor motor para toda essa estruturação, destinada a, num momento inicial, impor limites à atuação do Estado em respeito a preceitos próprios do indivíduo, tais como a liberdade de ir e vir, de opinião, de reunião, a igualdade perante a lei, a preservação da propriedade, além da participação na escolha de governantes (direitos civis e políticos). Estabelece-se o que viria a ser catalogado como direitos humanos de primeira dimensão11.12

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Por haver, nesse desenvolvimento, um fator de caráter econômico decisivo para o seu implementar, qual seja, o interesse direto da classe comerciante em obstar a atuação imperial do Estado na regulação do mercado, em seu patrimônio e em sua liberdade, efetivamente os direitos mencionados foram empiricamente consolidados em seu respectivo favor, não consistindo em preceitos usufruídos pela grande maioria da população que era desprovida de riquezas, ainda que o discurso operado dissesse o oposto. Estabeleceu-se uma típica “cidadania-formal”13.

Essa realidade, expandida por grande parte dos países da Europa Ocidental, é potencializada com a deflagração da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918), a qual, dentre os inúmeros efeitos deletérios,

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da fundamentalidade desses direitos, os entes de direito público, no plano das relações internacionais, passam a produzir documentos e a criar organismos com fins idênticos aos pretendidos em nível nacional, o que implicou na relativização do conceito de soberania estatal e atribuiu, ao indivíduo, igual qualidade de sujeito de direito internacional18.

Assim, ainda durante a Primeira Guerra Mundial, pioneiramente, a Constituição Mexicana de 1917 fora promulgada, inserindo, em seu texto, significativo rol de direitos sociais, com destaque para aqueles de conteúdos trabalhista e securitários, dentre os quais se pode citar: limite de jornada para 08 horas, trabalho em período noturno com jornada máxima de 07 horas, adicional de horas extras, repouso semanal remunerado, proteção à maternidade, salário mínimo, igualdade salarial, proibição do trabalho para pessoas menores de 12 anos, limite de jornada de 06 horas para o empregado menor de 16 anos, seguro-desemprego, direito de greve, direitos de sindicalização, indenização em caso de dispensa, higiene e segurança do trabalho, seguro social, além de outros19. Em 1918, após a revolução russa, foi nesse país que se proclamou a “Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado”, a qual, além de consagrar inúmeros direitos sociais, firmou-se como forte contraponto ao capitalismo liberal predominante, constrangendo-o a uma retração em prol da implementação de melhorias sociais20. No dizer dos juristas hispânicos Adoración Guamán e Héctor Illueca:

Este orden económico fue posible, en cierta medida, por la existencia de una alternativa plausible al sistema capitalista: la Revolución de Octubre de 1917. El ejemplo soviético anunció que la revolución era posible y condicionó la evolución del pensamiento económico en las décadas siguientes...

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