O projeto genoma humano e os desafios da bioética na pós-modernidade: princípio da dignidade da pessoa humana como paradigma às questões bioéticas

Autor1.Marília Bortolotti 2.Simone Stabel Daudt
Cargo1.Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Franciscano. - 2.Advogada e professora do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA)
Páginas170-188

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Introdução

O século XXI certamente é um marco para os estudiosos da biologia, assim como para humanidade, haja vista as relevantes descobertas sobre as características do ser humano, as quais são obtidas através do chamado mapeamento genético.

Tais avanços técnico-científicos desencadeiam uma série de questionamentos sobre a utilização de tal descoberta, conseqüências positivas e negativas da manipulação das informações obtidas por meio dessa tecnologia, e, principalmente, o papel do Estado como mediador frente a essas mudanças sociais e científicas.

Os avanços na genética acarretam problemas éticos, sociais e legais, pois além de atingir outros, a informação genética possui implicações diretas àqueles que estão próximos ao indivíduo afetado.

Em um mundo em que quase tudo deve ser judicializado para que seja respeitado, os operadores do direito vivenciam constantemente os dilemas resultantes da aplicação do conhecimento biotecnológico, que tanto pode ser aplicado em prol da humanidade ou proteção ao indivíduo, quanto pode se revelar em instrumento fomentador de práticas racistas, de extermínio e discriminação de população portadora de doenças e anomalias já registradas nos seus genes.

Neste cenário de mudanças sociais e científicas, imprescindível que o operador do direito esteja preparado para enfrentar as gradativas problemáticas que o tema irá instigar na comunidade científica e social.

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O direito, como ciência que visa à formulação de regras e normas de condutas dos indivíduos na sociedade, ainda que sofra adaptações/alterações constantemente, muitas vezes demora a se adaptar a situações fáticas novas. Em razão disso, nem sempre o direito alcança a satisfação normativa na mesma proporção das demandas sociais, originando lacunas no direito.

O ordenamento jurídico brasileiro, apesar de primar pela efetividade da aplicação de princípios como o da dignidade da pessoa humana e utilizar instrumentos normativos internacionais, ainda se encontra revestido de lacunas, esbarrando em obstáculos quanto às novas demandas sociais.

Diante do cenário de lacuna normativa, o papel da dignidade humana é o de intermediar a aproximação entre o direito e os avanços biotecnológicos. Para tanto o princípio da dignidade humana serve como antecedente lógico à liberdade de criação científica e como limite ético e jurídico à exploração das descobertas científicas.

1 O projeto genoma humano na pauta das discussões bioéticas

Durante a segunda metade do século XX os avanços científicos e tecnológicos tiveram relevante incentivo em razão de resultados positivos na área da saúde, tais como a criação de Unidades de Terapia Intensiva, transplante de rins, diagnóstico pré-natal, entre outros (SOARES, 2002).

Segundo André Marcelo Soares, concomitantemente a esses avanços, a sociedade passou a questionar os efeitos de tais descobertas, de forma que entre a comunidade médica despertou a procura pela definição do que era, ou não, bom para o paciente e para a coletividade, e quais os limites do poder desses profissionais.

Uma das características da revolução3 genômica é o seu surgimento em um mundo despreparado para suas conseqüências (BARBAS, 2007), sendo importante considerar que seu conhecimento não é apenas informação privada, pois também envolve terceiros.

Consoante Matilde Carone Slaibi Conti, em face a insuficiência das normativas existentes sobre as novas tecnologias, pois até mesmo os princípios daPage 172bioética são desprovidos de coerção, foi necessário incorporar às discussões bioéticas o direito, o que resultou no surgimento do denominado biodireito, cujas normas são orientadoras da conduta humana em face do princípio à vida. O biodireito visa dispensar cunho legal às decisões éticas, o que implica a obrigatoriedade de seu cumprimento.

Obviamente que o direito não caminha no mesmo passo que os avanços técnico-científicos, especialmente no que tange à engenharia genética, que atualmente ganha ampla repercussão com o projeto do genoma humano. Na maioria das situações envolvendo novas tecnologias, a morosidade na adaptação do direito aos novos fatos é notória, motivo pelo quais algumas relações sociais relevantes ainda possuem lacunas no direito (CONTI, 2001).

O genoma4 é o conjunto das informações genéticas de dado indivíduo, ou seja, é a estrutura fundamental para o desenvolvimento de um novo ser, sendo a base química da hereditariedade.

Maria Rita Passos-Bueno defende a importância do mapeamento genético do ser humano

Dispor de um mapa genético talvez seja equivalente a termos um mapa de uma cidade grande, como, por exemplo, de São P aulo [...] Podemos dizer que a cidade de São Paulo corresponde ao genoma humano (os 23 pares de cromossomos) e que cada um dos cromossomos corresponde a um bairro. Ainda, precisamos de um mecanismo que divida o cromossomo em ruas. Este mecanismo deve permitir a identificação de cada pessoa: ou seja, poderíamos dizer que, estando diante de uma rua, teríamos vários números, e que cada um é específico de uma casa. E é a esse mecanismo que chamamos de marcador genético [...]. Qual a importância de dispormos de marcadores, ao longo do genoma? Utilizando a analogia geográfica, se tivermos só alguns marcadores isto corresponde a termos um mapa com alguns bairros de SãoPage 173Paulo. Se você tiver um mapa assim, como irá localizar a rua que deseja? Possivelmente você conseguirá, porém vai levar muito mais tempo. [...] (MYSZCZUK, 2006, p. 35)

O Projeto Genoma Humano, constituindo importante empreendimento científico dos séculos XX e XXI, tem como objetivo primário a identificação e mapeamento de todos os genes humanos e o sequenciamento de todos os nucleotídeos que formam a hélice de DNA nos vinte e três pares de cromossomos humanos. Secundariamente, visa à determinação de possíveis causas para doenças de etiologia genética, e a partir dessas descobertas são desenvolvidas t erapias genéticas para a cura dessas doenças.

Dos investimentos do Projeto, estimados em três bilhões de dólares, metade dos recursos provém dos Estados Unidos, e a outra parte é dividida entre os demais países envolvidos, como Alemanha, França, Grã -Bretanha e Japão, ocasionando questionamentos sobre a futura igualdade de propriedade das informações obtidas de acordo com a quota de contribuição de cada envolvido.

Simone Born de Oliveira (2003) traz em sua obra um breve histórico sobre o Projeto Humano. Em 1984, o biólogo molecular norte americano Robert Sinsheheimer propôs a criação de um instituto na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, objetivando a realização do sequenciamento do genoma humano e, principalmente, obtenção de verbas milionárias de financiamento e prestígio para a universidade. Para tanto, em 1985 promoveu uma reunião entre biólogos moleculares de renome nos Estados Unidos, e nessa oportunidade os cientistas adotaram duas posições extremadas: a primeira entendeu que as descobertas não seriam suficientes para justificar tamanho empreendimento, e, para a segunda, o projeto traria à tona conhecimentos demasiadamente perigosos, principalmente em relação à possibilidade de discriminação e práticas eugênicas.

A ideia da criação do instituto não prosperou, entretanto, a de mapear e sequenciar o genoma humano ganhou espaço, até que o Departamento de Energia dos Estados Unidos5 se interessou pela proposta, buscando informações sobre os efeitos da radiação sobre os genes dos seres humanos. O chefe da Agência de Pesquisa em Saúde e Meio Ambiente – Office of Health and Environmental Research - OHER – Charles DeLisi, em 1986, começou a impulsionar a idéia do sequenciamento, apontando o Departamento de Energia como destaque nas pesquisas, até porque o mesmo dispunha de laboratórios, equipamentos e recursos para a realização do projeto. Dessa forma, o Departamento de Energias passou aPage 174liderar as pesquisas, o que ocasionou grandes debates sobre a legitimidade da pesquisa sobre o genoma humano nos Estados Unidos.

Atento às discussões, o Conselho Nacional de Pesquisas decidiu apurar os questionamentos através de um comitê, o qual, em 1987, enfatizou a necessidade de sequenciamento e mapeamento do genoma humano. Porém, só em 1988, mais precisamente em 1º de outubro daquele ano, é que os Institutos Nacionais de Saúde6 assinaram um acordo de cooperação nas pesquisas, e é nessa data que se inicia o Projeto Genoma Humano, sob o comando dos Institutos Nacionais de Saúde.

Gradativamente, outras nações organizaram-se em proveito do sequenciamento, como o Reino Unido, com a concentração das pesquisas na análise do ácido desoxirribonucleico (ADN) ativo e sequenciamento do genoma do verme nematódeo Caernorhabiditis elegans; a França, cujo projeto é desenvolvido por duas instituições, coletando amostras de referências de células retiradas de membros de famílias humanas extensas de vários locais do planeta e realizando o mapeamento de genes ligados a doenças; e o Japão, cujo programa compreende o desenvolvimento de tecnologias para o sequenciamento automático do genoma.

O Brasil também integra esse consórcio internacional desde 1997, e sua atuação principal se dá através do Programa Genoma - FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – realizando pesquisas no Projeto Genoma -Câncer, no projeto de seqüenciamento do chamado “amarelinho”; além da participação do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP que mapeou o gene de uma doença raríssima que causa cegueira progressiva, a Síndrome de Knoblock (MYSZCZUK, 2006).

Ainda, a respeito da evolução histórica do Projeto Genoma Humano, Ana Paula Myszczuk (2006) refere que a criação da Organização do Genoma Humano em 1988 – Human Genome Organization7 - HUGO – teve por objetivo “coordenar os esforços internacionais para evitar duplicações e superposições de pesquisas”...

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