Genealogia, ontologia e paradigma da informática

AutorMurilo Cardoso de Castro - Raquel Cardoso de Castro - João Cardoso de Castro
CargoPesquisador em Geoprocessamento e SIG da UFRJ - Mestre pelo IBICT/MCT. Doutrora pela ECO/UFRJ - Mestre pelo NUTES UFRJ
Páginas1-21

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Murilo Cardoso de Castro

Pesquisador em Geoprocessamento e SIG da UFRJ

Mestre e Doutor pelo Geoheco UFRJ

murilocdecastro@gmail.com

Raquel Cardoso de Castro

Mestre pelo IBICT/MCT

Doutrora pela ECO/UFRJ

raquelcdecastro@gmail.com

João Cardoso de Castro

Mestre pelo NUTES UFRJ

joaocardosodecastro@gmail.com

1 Introdução

A informática surge no cenário científicotecnológico, após a Segunda Grande Guerra, como a manifestação “concreta” da metaarquitetura da Razão Moderna. Em elaboração desde a Renascença, de forma subjacente e singular ao Ocidente, a “máquina universal” capaz de encerrar a lógica do pensamento humano, e assim “reproduzilo”. Segundo Pierre Lévy (1987), a informática revela um dos segredos da história do pensamento ocidental, a forma oculta de seu ideal democrático, o motor invisível de sua arte, o selo de sua potência industrial e científica -talvez a própria essência do que se chama Ocidente.

A “máquina universal”, como conceito elaborado no campo da lógica matemática, se apresenta

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como um engenho capaz de “tratar a informação”: transformar, segundo uma lei determinada, uma mensagem de entrada (entendida como um conjunto de dados) em uma mensagem de saída. O computador, seu suporte material, nada mais é do que a ponta atualmente visível deste imenso iceberg, a insinuante manifestação técnica desta configuração subterrânea (Ibid.), de domesticação e reprodução do pensar humano.

Ao se falar em “máquina universal”, cabe entender que a diferença entre um tratamento industrial e um tratamento informacional reside primeiramente no campo onde atuam -material e intelectual - e também na quantidade de energia aplicada no processo de transformação de um e de outro campo. Rigorosamente os dois tratamentos são de informação, entretanto, no tratamento informacional, a energia aplicada é mínima, e destinase a conhecer, supervisionar, controlar, comandar, direta ou indiretamente, processos de um nível de energia superior.

O fato da “máquina universal” atuar no campo intelectual faz com que o aprendizado de suas operações, como no caso das denominadas “tecnologias da inteligência” - que dela decorrem como implementações de seus princípios, como a informática, por exemplo - seja uma empreitada “sem fim”, onde o que se transmite em qualquer processo educacional é apenas a maneira de “manipular” a tecnologia. Logo fica geralmente de fora a metodologia que rege sua aplicação, assim como o potencial de desenvolvimento na sua adoção, que só se vai aprender por um longo e árduo processo pessoal de “experimentação” em uso (o que explica, em grande parte, as dificuldades de conclusão satisfatória de qualquer projeto de informatização).

Uma pesquisa do MIT publicada há alguns anos (fig. 1), comparou o processo de aprendizado de tecnologias industriais e intelectuais, chegando à constatação maior de que nas tecnologias industriais o ensino básico de sua aplicação praticamente cobria toda a capacidade oferecida pela tecnologia, permitindo sua adoção plena; o aprendizado em uso, embora existisse, era mínimo (CURLEY; PYBURN, 1982). Com as tecnologias intelectuais passavase justamente o oposto: o ensino básico servia apenas para orientar sua adoção e “manipulação” mais comum, cabendo ao uso efetivo a responsabilidade (a cargo de seu usuário) pelo aprendizado do potencial da tecnologia (em alguns casos indeterminado, a priori).

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[FIGURA EM PDF ANEXO]

Figura 1: Aprendizado do potencial da tecnologia

Fonte: CURLEY e PYBURN, 1982. p.36

2 A primazia do algoritmo na “máquina universal”

O tratamento da informação por excelência é o cálculo, que encerra em si o conceito de operação, ação organizada e metódica com vistas à produção de um resultado determinado. No entanto, é possível estender a definição de cálculo além do conjunto de operações matemáticas, se forem consideradas outras “ações organizadas e metódicas”, como: selecionar, classificar, permutar, combinar, comparar, substituir, codificar, etc.

O algoritmo se apresenta, desta maneira, como uma seqüência finita (é preciso que o cálculo atinja um resultado) e ordenada (convenientemente disposta para se atingir o resultado desejado) de operações (regras ou instruções), com vistas à resolução de uma determinada classe de problemas (realizando um conjunto de tarefas).

Uma vez formalizado um algoritmo, pela dissecação interpretativa de um fenômeno, em seus dados simbólicos e no conjunto de operações sobre estes (algoritmo propriamente dito), correse

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o risco de se perder a percepção global do fenômeno em si, diante do rigor extremo na descrição formal, que por sua vez passa a ser a explicação. O fenômeno, enquanto recorte da realidade, se submete a uma lógica puramente operatória, perdendo eventuais pólos de significação.

Um programa de computador é, portanto, uma equação ótima combinando algoritmo (ou algoritmos) com uma estrutura de dados simbólicos dentro de um computador, visando a consecução de uma ou mais tarefas que traduzem um problema.

Foi em 1936, quase dez anos antes da construção do primeiro computador, que o matemático inglês Alan Turing (1936) propôs um modelo simples do que seria talvez o protótipo “informático” de uma “máquina universal” - a “máquina de Turing”. Uma máquina para tratamento de informação, segundo as seguintes premissas (LÉVY, 1987): ” todos os processos passíveis de decomposição em uma seqüência finita e ordenada de operações sobre um alfabeto restrito, que alcançam ao resultado buscado, em um tempo finito, podem ser realizados por uma “máquina de Turing”; ” todos os trabalhos que uma máquina de Turing é capaz de realizar, são algoritmos ou procedimentos efetivos; ” uma máquina de Turing pode se encontrar em um número finito de estados distintos e predeterminados, correspondendo cada estado a uma maneira diferente da máquina reagir às mensagens de entrada; ” para cada problema calculável corresponde ao menos uma máquina Alan Turing (uma tabela de instruções) capaz de resolvê-lo; ” existe uma classe de máquinas, as máquinas universais, capazes de resolver todos os problemas calculáveis ou de realizar todos os procedimentos efetivos. O poder da máquina universal reside em sua tabela de instruções, que lhe permite imitar o comportamento de qualquer máquina particular.

As bases estavam lançadas para, em 1945, John von Neumann (1947) apresentar uma proposta de construção de uma máquina, que teria registrado em sua memória a tabela de instruções juntamente com o conjunto de dados para tratamento. Tomava forma o protótipo de máquina universal idealizado por Alan Turing, que pouco tempo depois se materializaria no primeiro computador. Vale salientar algumas características da “máquina universal”, arquétipo do computador, de interesse para esta reflexão (LÉVY, 1987):

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” potência de todos os possíveis, com a vocação de abarcar e recapitular a totalidade, mesmo o que dela ainda não se manifestou; ” trabalho lógico formal (operatório) sobre sinais; a máquina universal deixa de fora desta operação toda consideração sobre a significação, interpretação dos sinais ou símbolos que opera. Só um ser humano, atuando como observador consciente, e não como mero periférico desta máquina, pode interpretar ou projetar alguma significação sobre um sistema formal; ” o conhecimento do universo objetivo cada vez mais se fragmenta em diminutos “átomos de informação”, registrados sob uma codificação impalpável. O objeto pulverizado, representado por dados simbólicos elementares sobre os quais trabalha a máquina universal, está aquém (ou além) do patamar da percepção imediata; ” novos dispositivos para captura digital do que nos cerca não apreendem uma forma global (no sentido platônico), mas apenas uma imagem, um padrão, uma medida, traduzida imediatamente em uma seqüência de impulsos binários, um código a ser registrado na “memória” da máquina; ” os objetos, os processos, as palavras são decompostas, analisadas, tratadas pela informática, em um nível abstrato de códigos binários, e não há mais para nós imagem diretamente perceptível, somente uma série interminável de ocorrências de símbolos, células, pixels, átomos de circunstâncias, que se opõem aos elementos macros e micros de nossa vida ordinária, com seus nomes, suas coisas e suas unidades de sentido imediatamente sensíveis; ” a dissolução do objeto global e intuitivamente sensível acompanha a informatização; correlativamente, o sujeito, que entretinha relações diretas de conhecimento e ação com as coisas, cede seu lugar a um “mediador”: um programa e sua base de dados, ou seja, uma série de operações elementares, formuladas como algoritmos, sobre dados simbólicos.

3 Idéias mentoras da “máquina universal”: matemáticas e sistemas formais

Que história, singular ao Ocidente, foi capaz de conjuminar processos que deram forma à filha

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pródiga da Razão Moderna, a máquina universal? Por que caminhos o “algoritmo instrumental” insinuouse em todo “fazimento” humano, culminando na sua mais perfeita encarnação, o computador? Estas questões merecem uma abordagem mínima.

A lenta gestação do que foi denominado “cálculo” pode ser ilustrada a partir de posições filosóficas, científicas e técnicas contemporâneas, como: a cristalização de uma visão de mundo assentada na lógica matemática, oferecida pelo “primeiro” Wittgenstein no início deste século; a cibernética do final dos anos 40; e a teoria da informação da mesma época (LÉVY, 1987).

As matemáticas gregas operam um verdadeiro “corte epistemológico” sobre as anteriores, por sua abstração. Os pontos, retas, superfícies e volumes considerados são figuras ideais, independentes...

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