Gender issue and food sovereignty: self-organization of women in the MST of Espirito Santo/Questao de genero e soberania alimentar: auto-organizacao de mulheres do MST no estado do Espirito Santo.

AutorMoreira, Renata Couto
CargoDossie Trabalho, Saude e Ambiente

Introducao

A experiencia em assentamentos de auto-organizacao de mulheres militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Espirito Santo (ES), apresenta-se como uma realidade que leva a importantes reflexoes. A primeira e acerca da resistencia que representam as familias de trabalhadores rurais no campo e na cidade. A outra evidencia o papel das mulheres na garantia de soberania alimentar dentro da construcao de uma nova perspectiva para as relacoes de producao e de genero. Discutir esses aspectos torna-se objetivo fundamental para compreensao do problema da fome, do exodo rural e das alternativas de superacao dos mesmos sob o ponto de vista das politicas sociais. As mudancas mundiais que vem ocorrendo atualmente estao exigindo uma reorganizacao da sociedade, uma nova partilha de tarefas, um novo sistema de divisao do trabalho e um maior equilibrio na presenca feminina e masculina nos diferentes ambientes e setores da vida humana. Em consequencia, essa maior insercao na vida publica cria condicoes ao despertar da consciencia da mulher que passa a exigir uma participacao mais equitativa nas grandes decisoes politicas e economicas.

De acordo com Faria e Nobre (2003), e no campo da producao que se dao as definicoes financeiras e politicas. Os maiores acessos a ambas as esferas expoem as contradicoes e discriminacoes a que o genero feminino vem sendo historicamente reprimido, aprofundando a necessidade de autoorganizacao das mulheres para lidar com as condicoes materiais que as libertam e, ao mesmo tempo, submetem-nas. Os objetivos da experiencia de auto-organizacao de mulheres extrapolam, portanto, a esfera da geracao de trabalho e renda, ainda que considerada fundamental para a emancipacao das mesmas. No entanto, agregam outras necessidades que socialmente foram sendo negadas a este genero. A formacao na busca pela autonomia politica e social, e o estudo do papel das mulheres nas esferas produtiva e reprodutiva, sobre como se da a divisao sexual do trabalho na sociedade atual e, tambem, de como funciona a sociedade, se configuram igualmente como essenciais para as transformacoes almejadas.

No conceito de soberania alimentar tratado pelo presente artigo, o que esta em jogo e a contraposicao entre distintos modos e relacoes de producao, de como estao organizados a distribuicao, o preparo e o consumo de alimentos pelas familias rurais e urbanas. Estas se alteraram historicamente na transicao de uma producao agricola, praticamente relacionada ao autoconsumo, para outra voltada, exclusivamente, a logica do mercado durante o aprofundamento da especializacao campo-cidade (CALDART et al, 2012). Da primeira, focada no valor de uso, para a segunda, no valor de troca. A reconfiguracao na divisao social do trabalho nao escaparia a esfera domestica e a participacao da forca de trabalho feminina, cada vez mais intensa no mercado, deslocou ao longo dos anos o preparo e o consumo de alimentos para fora de casa. Esse processo levou a transformacoes nos lacos familiares e nas relacoes sociais, voltando o pensamento economico a uma logica fundamentada no individualismo classico preconizado por Adam Smith. (HUNT, 1987).

Longe de apoiar a ideia de retrocesso as condicoes anteriores de submissao da classe trabalhadora em geral, e das mulheres em particular, pretendeu-se apontar a necessidade de encontrar outro caminho que concilie a producao agricola e o abastecimento de alimentos para a populacao mundial com os direitos dos povos a soberania alimentar (1) o que significa o direito a organizar o modo de producao de alimentos de acordo com cada realidade e suas necessidades locais, vinculado a sua cultura alimentar, aos conhecimentos tradicionais de plantas e producao de alimentos saudaveis, garantindo a democratizacao e sustentabilidade do acesso aos alimentos, a terra e a outras riquezas produzidas pelo trabalho, ao longo das geracoes.

A mulher tem exercido papel fundamental nessa cadeia de relacoes, enquanto que em sua maioria ainda se responsabiliza pelo preparo dos alimentos, assumindo, com isso e nao tao raro, a compra desses alimentos, e nas zonas rurais, a producao de milho, arroz, feijao, mandioca, frutas, alem do plantio de hortas e cuidado de pequenas criacoes nos quintais. A importancia da auto-organizacao de coletivos de mulheres em comunidades rurais e, particularmente, em assentamentos de reforma agraria (2), coloca-se para as militantes do MST, como foco central no enfrentamento dos problemas de discriminacao de genero, alimentares, de geracao de renda, do exodo rural e de conquista de direitos (MST, 2005).

Nesse sentido, o objetivo principal dessa pesquisa foi trazer reflexoes acerca das experiencias de coletivos de mulheres assentadas do MST, a partir da realidade dos assentamentos Adao Preto e Pip-Nuk em Nova Venecia, ao norte do estado do Espirito Santo. Com isso, pretendeuse compreender como potencializar essas, entre outras experiencias, e como propiciar formas de articula-las e organizar suas demandas.

A proposta metodologica foi a da pesquisa-acao (THIOLLENT, 1997; TRIPP, 2005; FRANCO, 2005), utilizando metodologias de diagnostico e planejamento participativas (PETERSEN, 1996; GEILFUS, 1997; PEREIRA et al, 2003), como ferramenta basica para a valorizacao e construcao dos conhecimentos. Optou-se entao pela alternancia de encontros de diagnostico e reflexao teorica com acoes que potencializassem a formacao e a troca de experiencias entre as mulheres. Visou-se com esta iniciativa, potencializar a participacao das mesmas no processo economico e organizativo de suas comunidades, assim como a sua auto-organizacao em grupos produtivos. Tratou-se de uma pesquisa de campo, qualitativa e quantitativa, com aplicacao de questionario sem !estruturado em grupo de mulheres de acordo com a auto-organizacao das mesmas no assentamento, discutindo questoes acerca da historia e importancia de constituicao do grupo de mulheres, como estao organizadas atualmente e quais as perspectivas. A forma como as atividades foram realizadas visou tambem recuperar a mistica da luta pela terra e o sentido de envolvimento e participacao de toda a familia no processo. Outro aspecto importante e que os encontros mesclaram os estudos de fontes documentais com troca de experiencias, articulacao, animacao/confraternizacao e mobilizacao em torno de problemas comuns. As atividades foram realizadas em 2012 com apoio financeiro do CNPq via edital universal. Constaram de reunioes do Coletivo Estadual de Genero de tres dias, para estudo, levantamento das experiencias produtivas e organizacao dos encontros com os grupos de mulheres nos assentamentos, as reunioes de mulheres em si nos assentamentos com duracao de dois dias cada, e realizacao de um Encontro Estadual de Genero com duracao de 03 dias e participacao de 350 mulheres oriundas dos assentamentos do MST no ES. Maiores detalhes metodologicos podem ser encontrados em Moreira et al (2013).

Para a apresentacao dos resultados e reflexoes oriundas da pesquisa, o trabalho esta organizado alem dessa breve introducao, em uma revisao de literatura das categorias de genero e seu papel para a analise das relacoes sociais de producao, da soberania alimentar e do modelo historico de desenvolvimento da agricultura brasileira. Apresenta-se uma breve caracterizacao socioeconomica dos assentamentos e, entao, se volta para a discussao acerca das experiencias de auto-organizacao de mulheres, de suas historias de organizacao, potencialidades, dificuldades e formas encontradas de superacao. Por fim, as principais conclusoes ressaltam a importancia destas para a superacao de problemas tanto pessoais, quanto comunitarios.

  1. A categoria de genero na analise das relacoes sociais de producao

    A categoria de genero, usada na analise proposta se torna central na desconstrucao da naturalizacao da opressao do homem sobre a mulher, rompendo com a ideia generalizada no senso comum do determinismo biologico para a explicacao das desigualdades entre os sexos. Como discute Campos (2011), esse conceito desvenda o mecanismo de subjugacao historicamente imposto as mulheres condenando-as a serem "cidadas de segunda categoria" por forcas sociais que se manifestam em variadas dimensoes. Apesar de nao negar diferencas biologicas que de fato existem entre seres dos dois sexos, a categoria enfatiza o carater social do debate. Nessa perspectiva, entende-se que e na construcao social das relacoes entre seres onde se impoem as relacoes desiguais entre homens e mulheres.

    Faria e Nobre (2003) apesar de nao negarem a importancia da autonomia financeira na luta contra a opressao de genero, chamam a atencao para a necessidade de articular este conceito com as categorias de classe e etnia. Argumentam que as desigualdades se abatem de forma diferenciada entre homens e mulheres e para estas, entre as ricas e pobres, assim como entre as brancas e negras. Assim, apesar da mulher participar cada vez mais do mercado de trabalho, saltando de uma taxa de atividade (3) de 32,9%, em 1991, para 44,1%, em 2000; 48,9% em 2001, alcancando o pico de 52,6%, em 2009, e retornando aos patamares de 48,9%, em 2010, e de 50% em 2011, sua insercao ainda se da de forma precaria. Principalmente sobre dois aspectos considerados centrais--um relacionado aos postos e as relacoes de trabalho que predominantemente ocupam e o outro, relacionado as duplas jornadas que acumulam com o trabalho de cuidados familiares necessarios a producao e reproducao da mercadoria forca de trabalho--cuidados estes com a familia, que continuam pesando sob sua responsabilidade no ambito domestico, sob a forma de trabalho nao pago.

    Com relacao ao primeiro aspecto, os postos de trabalho que ocupam sao predominantemente associados as profissoes menos valorizadas socialmente e que recebem menores remuneracoes. Apesar disso, nao e negada a extrema importancia dessas profissoes para a producao e reproducao da vida social, tais como, professoras, enfermeiras, empregadas...

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