Gender and autonomy: the case of the direct unconstitutionality action n. 4.424/Genero e autonomia: o caso da acao direta de inconstitucionalidade n. 4.424.

Autorde Mello Senra, Laura Carneiro

Introducao (1)

A violencia contra a mulher no ambito domestico ainda e um fenomeno presente na vida das mulheres de diferentes paises e culturas. No contexto brasileiro, ha inumeras pesquisas que revelam que as familias sao esferas nas quais as mulheres nao estao seguras (DataSenado, 2013; Avon/Ipsos, 2013; WALSELFISZ, 2012; entre outras). Estimase que, a cada vinte e quatro segundos, uma mulher sofre violencia, sendo que, na maioria dos casos, os agressores sao os proprios parceiros intimos. A violencia contra a mulher, enquanto padrao estrutural, esta diretamente associada a distribuicao desigual de poder entre os generos, que e estruturante das percepcoes tradicionais sobre o masculino e o feminino.

A Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) foi criada apos ampla mobilizacao dos movimentos feministas brasileiros, que, pelo menos desde a decada de 1980, tem como pauta o direito das mulheres a uma vida livre de violencia. Essa norma, reconhecendo que a igualdade juridica formal nao e suficiente para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais, institui protecao especifica para mulheres em situacao de violencia domestica.

Nao obstante a edicao da Lei Maria da Penha tenha sido marcadamente influenciada por uma perspectiva critica de genero, sua aplicacao sofre inflexoes e rupturas pela jurisprudencia e doutrina patrias. Um dos eixos desse debate foi encerrado na Acao Direta de Inconstitucionalidade--ADI 4.424, ajuizada pela Procuradoria Geral da Republica (PGR) para conferir interpretacao conforme a Constituicao Federal aos artigos 12, I, 16 e 41 da Lei, no sentido de que a acao penal para processar lesoes corporais leves, praticadas contra mulheres no ambito domestico e familiar, e publica incondicionada a representacao.

Buscando aprofundar a reflexao sobre os discursos judiciais acerca da efetividade dos direitos das mulheres, especialmente no contexto domestico e familiar--em que as mulheres nao raro estao em posicao de vulnerabilidade--, esse trabalho analisou a integra da Sessao de Julgamento da Acao Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424, a partir das contribuicoes da teoria politica feminista sobre autonomia. A opcao metodologica pela transcricao da Sessao de Julgamento ocorreu pelo fato de o inteiro teor do acordao nao ter sido publicado pelo Supremo Tribunal Federal ate a realizacao da presente analise.

A primeira parte da discussao concentra uma revisao bibliografica sobre as abordagens teoricas presentes na teoria politica feminista contemporanea sobre a autonomia. O objetivo e tracar pontos de convergencia e divergencia entre perspectivas procedimentais e substantivas, percebendo conteudos, valores e limites do ideal da autonomia decisoria, especialmente diante de escolhas e preferencias que reforcam padroes de opressao e dominacao.

A segunda parte contextualiza brevemente alguns marcos legais e institucionais relacionados ao enfrentamento da violencia domestica no Brasil. Esse capitulo oferece as bases para situar o impacto da ADI 4.424 sobre os direitos das mulheres. O recorte temporal foi tracado a partir da criacao dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/1995).

Apos, recorremos a esses pressupostos teoricos e historicos para analisar as narrativas judiciais que sao conjugadas na Sessao de Julgamento do STF. Essa analise possui quatro desdobramentos principais: a percepcao da decisao da ADI 4.424 como um avanco na protecao aos direitos das mulheres, as tensoes entre privacidade e autonomia decisoria, a insercao das mulheres na familia e os estereotipos que perpassam os discursos judiciais.

Desenvolvimento

1 Teoria politica feminista, autonomia e construcao de preferencias

Na teoria politica feminista, ha distintas perspectivas sobre a relacao entre o exercicio da autonomia, os efeitos da opressao e da subordinacao, e a formacao de preferencias e de identidades. A producao de escolhas, opinioes e ambicoes dos individuos esta situada numa trama de relacoes e e fortemente influenciada por um contexto, no qual interagem padroes culturais de socializacao, componentes normativos e institucionais. As opcoes individuais estao inseridas numa conjuntura e atreladas "as posicoes em uma coletividade, em redes desiguais que se estabelecem em contextos sociais concretos" (BIROLI, 2013, p. 81).

Essas abordagens teoricas visam a enfrentar problemas concretos envolvendo a tensao entre a expressao da autonomia dos individuos e as relacoes de poder produzidas pelas estruturas sociais--representadas por valores, coacao, tradicao ou o discurso das instituicoes. A critica feminista se preocupa nao apenas com a manifestacao das preferencias, mas, fundamentalmente, com o que a antecede. Nesse sentido, o processo de socializacao e os efeitos da opressao e dos constrangimentos sistematicos sao centrais a analise da formacao das preferencias e da agencia individual, uma vez que podem refletir nas suas escolhas. Esses elementos possuem especial relevancia em abordagens que, tomando o genero como categoria de analise (2), visam a questionar escolhas que reforcam padroes de opressao das mulheres.

Colocar em oposicao a escolha dos individuos e os constrangimentos sociais implica considerar que, por mais que as preferencias pessoais estejam situadas e sejam construidas socialmente, nao estao absolutamente determinadas por fatores sociais e culturais. Diversamente, "significa que sao feitas em meio a pressoes, interpelacoes e constrangimentos que nao sao necessariamente percebidos como tal" (BIROLI, 2013, p. 82).

Por isso, questoes acerca da agencia individual e da sua constituicao social nao se resumem a um dualismo entre polos antagonicos--ilustrados ora por individuos oprimidos sem agencia, ora livres segundo um criterio legal e abstrato. Diversamente, os fatores que atravessam o processo de construcao das escolhas sao responsaveis pela criacao de posicoes inegavelmente heterogeneas. Partindo do pressuposto de que os individuos, enquanto agentes morais, podem fazer escolhas sobre si proprios e suas vidas, e preciso analisar como e em que grau a opressao e a dominacao podem mitigar sua autodeterminacao.

O objeto da Acao Direta de Inconstitucionalidade 4.424 possui aproximacoes com desse debate. O Supremo Tribunal Federal, julgando a ADI 4.424, conferiu interpretacao conforme a Constituicao Federal aos artigos 12, I, 16 e 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), para determinar que a acao penal, no caso de lesao corporal leve contra a mulher em ambiente domestico e familiar, e incondicionada a representacao. Em linhas bastante gerais, isso significa que, independentemente da manifestacao da mulher em situacao de violencia, ou mesmo contra sua vontade, a acao penal podera ser iniciada contra o agressor. (3)

Sem adentrar, por ora, em detalhes sobre o julgamento da ADI 4.424, pode-se afirmar que ha duas concepcoes que sobressaem no debate sobre autonomia e escolhas dos individuos sujeitos a condicoes que limitam potencialmente suas experiencias. Para uma das correntes, nao obstante a percepcao dos individuos tenha sido largamente estruturada a partir de praticas opressoras, ha valores--ainda que naturalizadores da subordinacao--que estao na base das suas identidades e fundamentam suas preferencias. Outra corrente perfilha o entendimento de que a opressao pode anular a autonomia dos individuos e, por isso, suas escolhas poderiam ser afastadas e sua experiencia, desvalorizada (BIROLI, 2013, p. 83).

1.1 Abordagens procedimentais e substantivas sobre a autonomia

Na teoria feminista contemporanea, e possivel identificar duas abordagens principais sobre as exigencias para a construcao da agencia autonoma. Em primeiro lugar, ha a perspectiva procedimental, segundo a qual nao e necessario perscrutar o conteudo das preferencias dos individuos. Desde que o procedimento que leva a decisao tenha sido guiado pela presenca de algum grau de autonomia e, paralelamente, pela ausencia de condicoes impeditivas do seu exercicio, pode-se adotar uma postura neutra em relacao ao teor da preferencia adotada. A autonomia consiste nas condicoes que as escolhas e acoes do individuo devem encontrar para serem autonomas (FRIEDMAN, 2003, p. 4-5).

Nessa definicao, as escolhas e acoes autonomas seriam autorreflexivas em dois sentidos. Primeiro, seriam causadas parcialmente pelas reflexoes do individuo acerca dos desejos e valores que reafirma e parcialmente efetivas ao determinar seu comportamento (FRIEDMAN, 2003, p. 5), o que requer a ausencia de coercao e manipulacao, interferencias que poderiam distorcer debilitar a avaliacao individual. Segundo, as escolhas seriam autorreflexivas ao traduzir os desejos, vontades, valores e compromissos profundos que o individuo reafirma de forma relativamente estavel (FRIEDMAN, 2003, p. 5). A abordagem procedimental concebe a autonomia como uma questao de grau. Quanto mais uma pessoa reflete sobre suas vontades e compromissos, maior a autonomia em relacao a esses valores.

Tendo em vista que aspectos relacionados ao conteudo da escolha nao sao importantes nessa tendencia, ha uma clara adocao da perspectiva neutra sobre autonomia. Nela, ha uma diferenca qualitativa na agencia, pois o individuo e considerado autonomo desde que suas escolhas sejam coerentes com sua perspectiva de vida. Ao levar em consideracao a determinacao do individuo e a coerencia das escolhas e acoes com valores, desejos e conviccoes, o criterio passa a ser o comprometimento com os proprios objetivos--nao necessariamente o comprometimento com a autonomia enquanto valor.

Embora haja menos requisitos para que os individuos sejam considerados autonomos, a perspectiva procedimental nao e capaz de enfrentar "o funcionamento dos mecanismos de dominacao e de opressao nas sociedades contemporaneas" (BIROLI, 2012a, p. 19). Biroli (2012a) enuncia tres limites dessa concepcao: e insuficiente, obscura e distorcida em seu foco. Em relacao ao primeiro, tem-se que a construcao da autonomia requer a ausencia de coercao, porem, nao sao...

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