Garantias e prerrogativas da magistratura: escorço e cotejo. Por onde anda o 'juiz-gestor'?

AutorGuilherme Guimarães Feliciano
CargoJuiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP
Páginas35-43

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De um modo geral, quanto aos predicamentos da Magistratura, as doutrinas nacionais distinguem entre garantias institucionais (a saber, a autonomia orgânico-administrativa e a autonomia orçamentária) e garantias funcionais. Essas, por sua vez, distinguem-se entre garantias de independência (art. 95, I a III, CRFB) e garantias de imparcialidade (art. 95, parágrafo único, CRFB).

As garantias de independência são, na tradição constitucional brasileira, as seguintes:

- a vitaliciedade;

- a inamovibilidade; e

- a irredutibilidade de subsídios.

Diga-se, em particular, da importância estratégica do vitaliciado para a independência da Magistratura e do Ministério Público. A vitaliciedade tem origem secular, remontando à Constituição de 1824, que dizia serem “perpétuos” os juízes brasileiros. Traduz-se juridicamente na garantia de não perder o cargo, senão por decisão judicial transitada em julgado. No último lustro, porém, volta a ser objeto de ataques no Brasil. Assim, p. ex., pretendiam extingui-la ou relativizá-la a PEC n. 53/2011 (Senado), a PEC
n. 291/2013 (Câmara) e a PEC n. 505/2011 (Câmara). Ao lado da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) atuou fortemente em todas essas frentes, na perspectiva de assegurar, para atuais e futuros magistrados, a garantia da vitaliciedade.

Não se confundem, tecnicamente, as garantias de independência e as prerrogativas “stricto sensu”. As ditas prerrogativas da Magistratura estão basicamente previstas no art. 33 da LOMAN, em um rol significativamente restrito, se comparado ao rol de prerrogativas do Ministério Público (LC n. ). Dentre as prerrogativas “stricto sensu”, citem-se, por excelência, as seguintes:

— a de não ser preso, senão por ordem do tribunal competente, salvo em caso de flagrante de crime inafiançável;

— a de prisão especial ou em sala de Estado-Maior, durante a restrição cautelar (inocorrendo, portanto, durante o cumprimento definitivo de pena privativa de liberdade); e

o de porte de arma de fogo para defesa pessoal (com alguma polêmica atual, à vista do “esquecimento” dos juízes e membros do MP entre aqueles que, nos termos Estatuto do Desarmamento — Lei n. 10.826/2003 —, estariam dispensados de submeter-se à autoridade policial para o exercício do porte).

Por outro lado, compreender a real extensão do atributo da independência judicial requer alguma compreensão histórica. Vejamos.

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O conceito moderno de jurisdição, construído na tradição secular do direito romano-canônico, não é fiel ao conceito romano de “iurisdictio” (v. OVÍDIO BAPTISTA). E da mesma forma, mais recentemente, caminha-se para a superação do conceito formal de CHIOVENDA (“realização da vontade concreta da lei”). Com efeito, entende-se hoje ser função da jurisdição, em acepção contemporânea, a tutela de direitos subjetivos (e, em especial, de direitos humanos fundamentais), como genuíno exercício de soberania do Estado.

A ideia formal de jurisdição, como expressão da vontade “concreta” da lei, possivelmente deite suas raízes mais remotas na “cognitio extraordinaria” do direito romano pós-clássico. Naquele tempo, a reboque da emblemática concentração de poderes políticos promovida por JUSTINIANO, as codificações justinianeias — hoje diríamos a “lei em sentido formal” — seriam a fonte praticamente exclusiva do direito; e o imperador, seu único intérprete.

Na pós-modernidade, porém, essa compreensão já não se sustenta. A jurisdição, para além das suas funções formais, deve desempenhar uma específica função substantiva: a de imperativo de tutela (C. W. Canaris, Proto Pisani), o que transforma em responsabilidade aquilo que, noutros tempos, seria mera possibilidade da atividade judicante: prestigiar as fontes e as hermenêuticas que melhor atendam à defesa do direito objetivo.

Algo dessa tendência, entretanto, poder-se-ia identificar, um vez mais, na própria tradição processual romana. Com efeito, no direito romano clássico (= período republicano), a coexistência de uma multiplicidade de fontes do Direito (p. ex., as leis, os senatusconsultos, as constituições imperiais, as respostas dos prudentes, etc.) estimulou sensivelmente o caráter criativo da Jurisprudência (na acepção anglo-germânica — “Jurisprudenz” —, ligada à Ciência do Direito e à doutrina), como da própria jurisprudência (na acepção latina, ligada à construção hermenêutica dos tribunais). O Direito era construído, em larga medida, pela integração pretoriana; e sua legitimidade se extraía não apenas dos meros procedimentos burocráticos, mas — em uma leitura weberiana — das próprias tradições condensadas na razão jurídica.

Com efeito, a iurisdictio clássica era privada, no sentido de não estatal, porque seu conteúdo era ditado por um particular (o iudex); nada obstante, era pública, como expressão do imperium romano (porque publicitada com o selo de Roma, pela pessoa do praetor). Nas esferas de socialidade, essa iurisdictio valia mais pela sua ratio que pela sua auctoritas, traduzindo o sentido não coercitivo das fontes formais do Direito.

Pois bem. A iurisdictio a que se referia G. CHIOVENDA (“volta à jurisdição romana”) é a iurisdictio da Roma dos...

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