Garantias fundamentais e persecução penal: Uma análise comparativa entre o inquérito policial e as comissões

AutorSilvia Primila Garcia Raskovisch; Baltazar José Vasconcelos Rodrigues; Delton Ricardo Soares Meirelles
Páginas37-57

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I Introdução

É de notório saber público que123, atualmente, o processo deve ser embasado e legitimado por uma série de garantias constitucionais. Isto se deve à maior preocupação de considerar as garantias processuais como expressão dos direitos fundamentais. Por outro lado, esta afirmação apresenta ainda maior relevância quando se passa a trabalhar com o Processo Penal.

Com efeito, a imposição de uma pena é a ultima ratio de qualquer ordenamento jurídico ocidental contemporâneo. Deve-se ter em mente também que num país como o Brasil a maioria destas penas implica na restrição, quando não na supressão da liberdade do indivíduo. Infelizmente, nosso país ainda não apresenta as penas pecuniárias e as restritivas de direito como regra.

Tudo isto deve ser considerado como elementos que devem conduzir a um nível cada vez maior de cautela, de zelo do Estado para com os acusados em processosPage 38 criminais. Portanto, faz-se mister rever sempre as garantias que são conferidas aos indivíduos, procurando aumentar este rol, quantitativa e qualitativamente. Afinal, como disse Claus ROXIN, “o Direito Processual Penal é o sismógrafo da Constituição do Estado. Cada mudança essencial na estrutura política (e em especial a do Estado) também leva a transformações no procedimento penal4.

Sem dúvidas. Quanto mais garantista o processo penal, mais democrático tende a ser o regime político (e vice-versa). No mesmo sentido, já se pronunciou processualista pátrio: “Quanto mais democrático for o regime, o processo penal mais se apresenta como um notável instrumento a serviço da liberdade individual. Sendo o processo penal, como já se disse, uma expressão de cultura, de civilização, e que reflete determinado momento político, evidente que os seus princípios oscilam à medida que os regimes políticos se alteram5. Então, um Estado efetivamente Democrático de Direito clama por uma gama cada vez maior de garantias.

Contudo, há um grande anacronismo no processo penal nacional. Trata-se da figura do inquérito policial, que, segundo as teorias clássicas, seria um mero procedimento de caráter investigativo, sem qualquer fim acusatório. Noutras palavras, não se aplicam ao inquérito as garantias que protegem os indivíduos, idéia esta amparada pela supremacia do interesse público em investigar os indícios de autoria e materialidade dos crimes, que poderiam ser prejudicados por essas garantias do acusado.

Ocorre que, muitas vezes, provas obtidas sem sede de inquérito são aproveitadas no processo principal, violando os interesses do acusado e dando grandes vantagens à parte acusadora. Em decorrência deste fato, defende Nereu José GIACOMOLLI que “durante a investigação, a autoridade policial, o Ministério Público e o Juiz tomarão as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do investigado, do indiciado, do ofendido e das testemunhas, sendo vedada a exposição aos meios de comunicação, possibilitando-se somente a divulgação do fato, sem referências aos nomes ou dados que possam identificar o autor do fato”6.

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No entanto, revela-se interessante averiguar se esta teoria clássica é aplicada também quando o inquérito recai sobre parlamentares e outras autoridades, expoentes da vida pública. Especialmente quando se trata de Comissões Parlamentares de Inquérito (as tão famosas CPIs), as quais também são consideradas como fases de persecução pré-processual. Sabendo que o Brasil é um país marcado pelo patrimonialismo, é bastante possível (e até provável) que haja uma maior proteção do Supremo Tribunal Federal para com os acusados envolvidos nesta modalidade específica de inquérito.

No que concerne às Comissões Parlamentares de Inquérito, estas podem ser definidas como um instrumento de afirmação do poder legislativo, através de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, que objetivam a apuração de fato determinado, conforme dispõe o art. 58, § 3º/CF: “As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores” (grifado).

Assim, as Comissões Parlamentares de Inquérito resultam do princípio da separação dos poderes, com todo seu sistema de freios e contrapesos, de controles recíprocos, que procuram afastar a ocorrência do abuso de poder. Evitam a hipertrofia de um dos Poderes, circunstância que desvirtuaria a princípio da separação e da tripartição, assim como a independência e complementaridade, previstas no texto constitucional. Ademais, poderão ser utilizadas como instrumento de controle interno.

Exatamente em relação ao sistema de freios e contrapesos, deve-se explicitar o processo de judicialização presente nas relações políticas no Brasil. Neste sentido assevera Luiz Werneck VIANNA7:

O cenário pós-constituinte, à exceção do governo Collor, tem sido a expressão da concentrada daPage 40 vontade da maioria, principalmente pelo uso continuado e abusivo das medidas provisórias, provocando-se, assim, a erosão das formas clássicas de controle parlamentar da produção da lei. (...) Nesse o contexto, o Poder Judiciário vem desempenhando papel de um tertius capaz de exercer funções de checks and balances no interior do sistema político, a fim de compensar a tirania da maioria, sempre latente na fórmula brasileira de presidencialismo de coalizão.

Neste prisma, o presente artigo tem como escopo investigar se há divergências ou conflitos de interpretação do STF no controle sobre o inquérito policial comum e sobre as CPIs. Para atingir este fim, serão analisadas decisões de nossa Corte Suprema a partir da Constituição Federal de 1988, tomando como base cada uma das diferentes garantias que deveriam ser concedidas na fase persecutória pré-processual. Será feita uma análise comparativa entre acórdãos, especialmente do ponto de vista qualitativo, dando prioridade àqueles que melhor esclareçam os pontos abordados.

II Garantias em espécie: análise comparativa
a) Proibição de auto-incriminação

O princípio da proibição de auto-incriminação é bem amplo, incluindo a idéia de que o acusado não pode produzir provas contra si mesmo, isto é, não pode ser compelido a prestar informações que não queira ou das quais lhe possam extrair conclusões desfavoráveis (nemo tenetur se detegere). Além disto, o silêncio não pode ser interpretado em seu desfavor.

Não há muitas referências explícitas a este princípio nos manuais de direito constitucional e de direito penal. Contudo, há uma maior presença deste tema nos julgados no STF.

Primeiramente, convém mencionar que é pacífico o entendimento de que tal garantia é aplicada às Comissões Parlamentares de Inquérito. No julgamento do HC 88163-MC, impetrado em favor de Nilma Mitsue Penasso Kodama, investigada na CPI dos Bingos, o relator Min. Carlos Britto, em decisão monocrática (06/03/2006), entendeu não ser razoável

(...)a presunção de que uma instituição parlamentar que se investe numa das dimensões da judicatura venha a forçar qualquer depoente a se privar do desfrute de direitos e garantias conferidos a ele, depoente, pelo ordenamento jurídico. Avultando, dentre tais situaçõesPage 41 jurídicas ativas, o direito constitucional da não-auto-incriminação. Que se traduz, sabidamente, na faculdade de alguém não produzir provas contra si mesmo, ainda que para isso tenha que optar pelo silêncio puro e simples. O silêncio como relevante aspecto da própria garantia constitucional da ampla defesa;

Em sentido semelhante, na CPMI do BANESTADO, o Min. Cezar Peluso esclarece que “é firme jurisprudência desta Corte no sentido de que a garantia contra a auto-incriminação (art. 5º, inc. LXIII, da Constituição Federal) se estende a todas as pessoas sujeitas aos poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito, assim às que ostentem qualidade de testemunhas, como aos indiciados mesmos, ou, recte, envolvidos ou suspeitos8. Com isto,

(...) de tal garantia decorrem, para a pessoa objeto de investigação, e, até, para testemunha, os seguintes direitos: a) manter silêncio diante de perguntas cuja resposta possa implicar auto-incriminação b) não ser presa em flagrante por exercício dessa prerrogativa constitucional, sob pretexto da prática de crime de desobediência (art. 330 do Código Penal), nem tampouco de falso testemunho (art. 342 do mesmo Código); e c) não ter o silêncio interpretado em seu desfavor.

Em outro caso relatado pelo Min. Gilmar Mendes, insere-se o direito ao silêncio do depoente na CPI como conseqüência do direito a não incriminação e do princípio da dignidade da pessoa humana9.

Com relação ao inquérito policial, torna-se importante mencionar o julgamento do HC 82354, considerado o leading case sobre o tema. Destaque-se o seguinte trecho do voto do Min. Sepúlveda Pertence, seguidamente citado em outros julgados, comentando o art. 5º, LXIII10:

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O dispositivo tem alcance maior que o de sua expressão literal: certo – inspirado claramente na doutrina do Caso Miranda, a garantia é nominalmente endereçada ao preso; mas, no que a ele, preso, assegura, tem como pressuposto que ao indiciado, ainda que solto, também se estende o direito ao silêncio (que tem como premissa o nemo tenetur...

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