O tribunal do júri como garantia fundamental, e não como mera regra de competência: uma proposta de reinterpretação do art. 5º, XXXVIII, da constituição da república

AutorIorio Siqueira D‘alessandri Forti
CargoMestrando em Direito Processual na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Juiz Federal na Seção Judiciária do Rio de Janeiro
Páginas178-196

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Introdução

Este artigo1 não trata da origem do Tribunal do Júri, nem se refere ao tratamento recebido pelo instituto em outros países. Nosso foco está no inciso XXXVIII do artigo da Constituição da República de 1988, que, assim com as constituições de 1891, de 1946 e 1967, incluiu o Júri não no capítulo referente à organização do Poder Judiciário, mas no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Sabido que é e sempre será polêmica a instituição do Júri – amada por uns, odiada por outros –, inquieta-nos o silêncio da doutrina a respeito da opção feita pelo Poder Constituinte de atribuir-lhe caráter de garantia fundamental. A maioria das obras de Direito Constitucional não dedica maior atenção à inclusão do Tribunal Popular no rol do artigo 5º da Constituição,2 enquanto as de Direito Processual Penal tendem a se limitar à análise do procedimento. A jurisprudência também parece negar a fundamentalidade atribuída ao Júri, ao não extrair dela efeito prático algum.3

Cremos que o status conferido pela Constituição ao Tribunal do Júri impõe a imediata releitura da legislação infraconstitucional, para que uma garantia não se transforme numa imposição, numa mera regra de competência, e para que se prestigie o direito do réu de, conforme a conveniência de sua defesa, optar entre ser julgado por seus pares e ser julgado por um juiz togado.4

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1 Brevissimo panorama sobre o tribunal do júri no direito positivo brasileiro

O Júri foi criado5 no Brasil pela Lei de 18 de junho de 1822, com a competência restrita aos delitos de imprensa,6 cabendo recurso das suas decisões para o Príncipe Regente.

A Constituição de 1824 elevou o Tribunal do Júri à categoria de ramo do Poder Judiciário.7

A Lei nº 261, de 1841, restringiu a ampla competência que tinha sido atribuída ao Júri pelo então vigente Código de Processo Criminal. A Lei nº 2.033, de 1871, regulamentada pelo Decreto nº 4.824 do mesmo ano, redefiniu as competências, dando ao Júri a feição definitiva com que o encontrou a República.8 O Decreto nº 848, de 1890, criou, ainda, o júri federal.9

A Constituição de 1891 não tratou do Júri nos artigos 55 a 62, que regulavam o Poder Judiciário. Entretanto, por influência de Rui Barbosa, na Seção que veiculava a "declaração de direitos", mais especificamente no artigo 72, onde se enunciava que "A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes", fez constar do parágrafo 31 a regra segundo a qual "É mantida a instituição do júri".

A Constituição de 1934 limitou-se a dizer, no artigo 72, que "É mantida a instituição do júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei"; apesar de manter a regra da Constituição anterior, deslocou-a do capítulo sobre direitos e garantias para o capítulo sobre o Poder Judiciário.

A Constituição outorgada de 1937 não tinha nenhuma regra que tratasse do Tribunal do Júri. As dúvidas a respeito da sobrevivência do instituto cessaram com a edição, em 1938, do Decreto- Lei nº 167, que manteve o júri, retirando-lhe a soberania das decisões, com base no artigo 183 daPage 180Constitução, segundo o qual "Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariem as disposições desta Constituição".

A Constituição de 1946 tratou de proclamar, entre os "Direitos e Garantias Individuais" do artigo 141, que "era mantida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida".10

Ao lado do Júri comum, regulado pelo Código de Processo Penal e pela Lei nº 263 de 1948, a Lei nº 1.521, de 1951, previu a existência de Júri especial (com composição e atribuições distintas) para julgamento de crimes contra a economia popular.11 A Lei nº 2.083, de 1953 previu o Júri de Imprensa, composto de Juiz de Direito, com direito a voto, e de quatro cidadãos sorteados dentre vinte e um jurados da Comarca;12 a Lei de Imprensa posterior, de número 5.250, de 1967, não reiterou a previsão desse órgão de julgamento, que, portanto, deixou de existir.

A Constitução de 1967, ainda no capítulo dos direitos e garantias individuais (artigo 150), enunciou que "São mantidas a instituição e a soberania do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida" – isto é, sem reiterar a menção ao sigilo das votações e à plenitude de defesa. A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, também manteve a instituição dentre os direitos e garantias individuais (artigo 153), suprimindo a menção à soberania: "É mantida a instituição do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida". Com a nova redação, a competência ficou restrita aos crimes dolosos contra a vida, restando não recepcionado o Júri especial para crimes contra a economia popular.

Por fim, a Constitução da República de 1988, fez com que houvesse previsão, no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais, no inciso XXXVIII do artigo 5º, disse que "é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida".

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2 (In)conveniência da manutenção do tribunal do júri no Brasil

Para ARAMIS NASSIF, as freqüentes oscilações na localização do Júri nas diversas Constituições do Brasil teriam contribuído para perpetuar a indagação sobre a natureza da instituição, se órgão do Poder Judiciário ou se direito e garantia individual13 Pensamos que não constituem fundamentos suficientes para sustentar que o Júri não integra o Poder Judiciário a circunstância de vir referido no rol de direitos e garantias individuais, de não constar do rol do artigo 92,14 e de suas decisões não serem fundamentadas.15

A questão reside em saber se, mesmo integrando o Poder Judiciário, o Tribunal do Júri oferece ao jurisdicionado – principalmente ao réu – todos os benefícios que teria perante o Juiz togado, e saber se oferece algum benefício a mais, a ponto de poder ser classificado como garantia fundamental pelo artigo 5º da Constituição.

NELSON HUNGRIA, citado por JOSÉ FREDERICO MARQUES, diz que cessaram as condições pelas quais o Júri deveria ser incluído entre as garantias constitucionais: "Os juízes togados passaram a vir do seio do próprio povo, de que emana, conceitualmente, a sua autoridade. Tornaram-se cidadãos do povo e, pelo menos nos governos democráticos, é em nome dele que distribuem justiça".1617 Nossa inclinação, francamente, também é no sentido da resposta negativa àPage 182questão, e para isso valemo-nos dos argumentos bem sistematizados por MARCELO COLOMBELLI MEZZOMO,18 adiante expostos.

(i) O Poder Judiciário estruturado no Estado Democrático de Direito conta com uma Magistratura independente, autônoma e isenta, protegida por uma série de garantias e que atua de forma pública, sujeita à fiscalização ampla da sociedade. Não se justifica mais – se é que noutro momento histórico deste país se justificou – o julgamento por jurados, como se a sociedade precisasse subtrair do Juiz togado o poder de decidir em alguns casos específicos.

(ii) O conjunto de garantias processuais tende a assegurar a imparcialidade do Juiz togado; o fato de exercer profissionalmente a atividade de julgar faz com que possa avaliar melhor não só os autos e o caso trazido a julgamento, mas também faz com que tenha mais consciência da importância da própria função de julgar. No que diz respeito a jurado leigo, a garantia de imparcialidade se torna mais tênue, sujeitando seu julgamento à pressão que pode decorrer do prestígio e do poder das famílias dos acusados, ou dos meios de intimidação de que dispõem grupos criminosos. Além disso, o leigo "repentinamente se vê lançado em uma função nova e desconhecida, em um universo estranho cuja linguagem desconhece, o que o leva a julgar pelo que já conhecia 'extra-oficialmente' do caso, ou baseado em provas sobre as quais lança um juízo apressado e por vezes desatento, tolhido que esta pelo cansaço de horas a fio. Isto quando não julga impulsionado por interesses próprios."

(iii) O jurado atua como juiz, sem dispor de conhecimentos especializados para tanto. É errado dizer que o jurado só se pronunciará sobre fatos, e que o julgamento pelo "homem médio" é a razão de ser do Juiz: primeiro, porque haverá necessidade de exercício constante de apreciação intelectiva das provas, valorando-as; segundo, a quesitação inevitavelmente envolverá conceitos jurídicos – violenta emoção, provocação injusta, torpeza, motivo fútil, traição – que podem até vir a ser compreendidos pelo jurado, mas dos quais ele é pouco íntimo, e que fatalmente não poderão ser objeto de "apreciação acurada e serena dentro de cada caso, tarefa essa incompatível com o turbilhão da plenária".

(iv) Durante o julgamento, o jurado toma contato pela primeira vez com uma atividade a que não está acostumado, restando perplexo diante da complexidade das questões que se lhe apresentam, e, nesse contexto, "os argumentos valem menos pela sua solidez e conclusividade do que pela forma teatral com que são expostos", de modo que a capacidade cênica dos "atores" lhes conferem mais probabilidade de êxito quanto ao convencimento dos julgadores leigos que propriamente a solidez de seus argumentos. Isso faz com que...

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