A fúria contra o Direito do Trabalho e contra a Justiça do Trabalho

AutorValdete Souto Severo
Páginas179-181
26.
A fúriA ContrA o direito do trAbAlho
e ContrA A juStiçA do trAbAlho
Valdete Souto Severo
(1)
(1) Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, Professora e Diretora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho
do RS, Juíza do Trabalho da Quarta Região, Membro da AJG Associação dos juízes pela democracia e da RENAPEDTS – Rede Nacional
de Pesquisas e Estudo em Direito do Trabalho e da Seguridade Social.
O Brasil nunca viveu uma experiência efetivamente
democrática. Os lapsos de exercício democrático que tive-
mos foram sempre interrompidos por golpes e vivenciados
dentro de uma lógica que é hostil à verdadeira democracia:
a lógica do capital. A revisão dos papeis assumidos pelos
diferentes atores do Direito do Trabalho, ao longo dos úl-
timos séculos, evidencia isso.
A Constituição de 1988 parecia anunciar uma nova
era. Havíamos superado duas décadas da pior experiência
autoritária de nosso passado recente. Tínhamos não ape-
nas conseguido assegurar o exercício de direitos liberais
elementares, mas também construir uma Constituição que
propunha um novo modelo de sociedade: solidariedade
em lugar do individualismo; supremacia dos direitos so-
ciais. Comemoramos, com razão, essa conquista. Esque-
cemos, porém, de prestar atenção nas vírgulas. O processo
constituinte já trouxe consigo a marca da efemeridade.
A Constituição, tanto nos direitos liberais clássicos,
quanto naqueles sociais, já nasceu marcada pelo embate
das ideias fascistas que não arrefeceram com a abertura de-
mocrática. As concessões feitas pelo capital não foram sin-
ceras. Por isso nossa Constituição, em larga medida, nunca
saiu do papel. As liberdades são toleradas apenas e na me-
dida em que não afetem o interesse do capital. Quando se
sente ameaçado, ele sacrifica inclusive as liberdades indi-
viduais, sobre as quais edifica seu castelo. Com os direitos
sociais, a situação é ainda mais grave. Uma sociedade capi-
talista pressupõe a compreensão dos direitos sociais como
simulacros. As normas trabalhistas, que no Brasil surgem
já no início do século XX, e são generalizadas na década de
1930, inclusive em razão do propósito de industrialização
do país, nunca foram integralmente cumpridas. Daí, in-
clusive, a importância que a Justiça do Trabalho tem, com
todos os seus defeitos, no contexto das conquistas sociais.
É apenas de forma tardia e parcial, diante de um juiz
do trabalho, que o trabalhador brasileiro consegue fazer
valer (alguns) dos seus direitos. No âmbito da empresa,
não existe limitação de jornada, respeito à integridade mo-
ral ou à manutenção de condições favoráveis de trabalho,
exceto se assim desejar o empregador. A exceção é a regra
para quem trabalha, sempre foi. Por isso espanta tanto a
facilidade com que “cola” o falso discurso da demasiada
proteção aos empregados. E mesmo quando vai ao Estado
pedir que seus direitos sejam respeitados, o trabalhador
tem que provar o que ocorreu no ambiente de trabalho,
tem que enfrentar ou sucumbir à prática (ilegal) de quita-
ção geral do contrato; tem que se sujeitar à morosidade dos
prazos processuais. O que muda, nos períodos de suposta
democracia, em relação àqueles de autoritarismo declara-
do, é o pacto de silêncio acerca das verdadeiras regras des-
se jogo. Em uma sociedade capitalista, não há liberdade
para quem não tem capital. Não há direitos sociais, senão
dentro de limites mínimos que permitam a perpetuação da
exploração. E a exclusão social, que cresce na proporção
do crescimento demográfico, é uma necessidade. Nesse
contexto, a democracia revela-se como a possibilidade de
ao menos reivindicar esses direitos, de contar com um Es-
tado que na aparência os garanta, ainda que na realidade
também os negue sistematicamente. É tolerar uma insti-
tuição como a Justiça do Trabalho, declaradamente criada
para fazer valer direitos trabalhistas, mesmo com tantas
limitações. Quando esse pacto de tolerância, que na reali-
dade da vida promove uma diferença importante, vital, pa-
ra um número expressivo de pessoas, é rompido, voltamos
ao estado de exceção.
O capital mostra sua verdadeira face, rompe seus acor-
dos, termina com o pacto de silêncio: persegue, prende,
mata, retira direitos; decreta a morte dos excluídos, por
falta de moradia, de trabalho, de comida, de saúde. É o que
estamos vivenciando no Brasil, já há algum tempo. A últi-
ma máscara caiu em 2016, quando permitimos o golpe que
retirou uma Presidenta eleita do poder, sem a comprovação
da prática de crime de responsabilidade. A partir de então,
mesmo sem alteração fundamental na política liberal que
já vinha sendo praticada, o capital voltou a revelar sua es-
sência: a exceção é sua regra.
O STF está reescrevendo a carta constitucional e sua
versão em nada se amolda à proposta de sociedade in-
clusiva e solidária. Basta pensarmos nas decisões acerca
do direito de greve, na redução do prazo para a cobrança

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