A contribuição para o funrural

AutorTercio Sampaio Ferraz
CargoProfessor Titular da USP e da PUC/SP
Páginas7-21

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1. Do objeto

Este trabalho pretende discutir a recepção da Lei Complementar n. 11/1971, com as alterações estabelecidas pela LC n. 16/1973, e da Lei n. 6.260/1975, que estabelecia uma contribuição anual obrigatória a cargo do empregador rural, correspondente a 12% de um décimo do valor da produção rural do ano anterior já vendida ou avaliada segundo as cotações de mercado (art. 5o, I) e de um vigésimo do valor da parte da propriedade rural por ventura mantida sem cultivo, segundo a última avaliação feita pelo INCRA (inc. II).

Em questão está a revogação daquela legislação anterior à CF de 1988 pela Lei n. 7.787/1989, art. 3o, § 1o, ou pelo art. 138 da Lei n. 8.213/1991. Discute-se, em particular, se a Lei n. 8.212/1991 extrapola a exigência do art. 195,I, da CF/1988, quando estabelece como base de cálculo o recebimento bruto e não o resultado da comercialização. Trata-se, em suma, da existên-cia de algum vício na instituição de contribuição previdenciária, incidente sobre o valor da comercialização da produção rural em relação a empregadores rurais, pessoas física e dos períodos passíveis de repetição de indébito em virtude de pagamentos indevidos a título da contribuição social em análise, em face da CF/1988.

2. Contribuições

O FUNRURAL, instituído na Lei n. 4.214/1963 como fundo destinado à assistência e previdência do trabalhador rural, previa uma contribuição de 1% sobre o valor comercial dos produtos agropecuários, recolhidos pelo próprio produtor.

Pela Lei Complementar n. 11/1971, foi instituído o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL), cujo custeio era provido (LC 11, art. 15) por duas contribuições: (i) de 2% devida pelo produtor sobre o valor comercial dos pro-

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dutos rurais, e (ii) daquela de que tratava o art. 3o do DL 1.146/1970 (elevada a 2,6%, dos quais 2,4% caberiam ao FUN-R URAL pela Lei n. 4.863/1965).

O art. 149 da CF/1988 entrou em vigor com a promulgação da Constituição. Nele se fala da competência da União para instituir contribuições sociais. A chamada contribuição para o FUNRURAL, sendo contribuição social, mas referida também à competência estabelecida no art. 195,I, da CF, tem de ser entendida sistematicamente, para efeitos de sua recepção, na correlação desses artigos com o disposto no art. 145, o primeiro sob o capítulo que trata do Sistema Tributário Nacional. O § 5o do art. 34 do ADCT contém um dispositivo que assegura a legislação anterior quando não incompatível com o novo sistema. E o art. 56 do ADCT fala do art. 195-I, da CF, que, originalmente, previa o financiamento da seguridade social, nos termos da lei, o que ocorreu com o advento da Lei Complementar n. 70/1991.

Sem entrar no mérito de uma discussão que até hoje perdura, ou seja, sobre a natureza tributária da contribuição (cf. nesse sentido o texto de José Afonso da Silva, que, ao tratar do art. 195, revê, inclusive, seu antigo posicionamento, em Comentário Contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros Editores, 2005, p. 764), é importante assinalar que, na Constituição de 1988, as contribuições conhecem, no concerto do sistema tributário, uma menção em separado. Assim, no art. 145, discriminam-se, na competência instituidora da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, "os seguintes tributos": os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria. Já as contribuições (sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas), de competência da União, aparecem no ca-put do art. 149, submetidas, com destaque expresso, a alguns dos princípios do regime tributário constitucional, sendo que o parágrafo único do mesmo artigo fala da competência de Estados, Distrito Federal e

Municípios para estabelecer contribuições destinadas ao custeio da previdência de seus funcionários.

Esse deslocamento de um artigo (145) para outro (149), que levanta alguns problemas de sistematização, tem sua explicação.

Embora a tributação seja um dos fenômenos mais antigos na história das organizações políticas, sua configuração sistemática, em termos jurídicos, é bastante recente. Conhecida no âmbito da Ciência das Finanças, do Direito Financeiro e do Direito Administrativo, a possibilidade de uma configuração autônoma no âmbito de um Direito Tributário data do aparecimento da Lei Tributária alemã de 1919.

A menção a este detalhe histórico não se deve a uma preocupação erudita, mas tem uma importante razão. É que, por conta desta origem, os primeiros estudos do tributo foram buscar luzes comparativas em outros direitos públicos mais tradicionalmente estabelecidos, como o Direito Penal, fazendo de suas condições de certeza e segurança um decisivo paradigma. Daí a idéia do tipo tributário, do respeito à tipificação como uma estrutura referente a uma causa geradora de certos efeitos, tendo em vista a capacidade do agente. Explica-se, assim, que, desde logo, na análise do tributo, dois conceitos se tornassem relevantes, dominando as sistematizações: o de fato gerador e o de capacidade contri-butiva.

Em face do princípio do consentimento, que desde o século XII veio sendo consagrado na tradição ocidental, a exigência de controle da tributação encaminhou-se para a estrita legalidade da sua imposição, donde a correspondente exigência, em nosso ordenamento, do perfil constitucional do fato gerador e da capacidade contributi-va, como base da competência tributária material. Seguiu-se daí que o controle constitucional dos tributos passou a pressupor uma espécie de interpretação, caracterizada pela busca de limites e freios, o

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que se pode chamar de interpretação de bloqueio. Na sua base está a correta configuração da materialidade constitucional dos tributos, por seu fato gerador e pela capacidade contributiva.

Este esquema funcionou e funciona a contento quando se pensa, fundamentalmente, em impostos, taxas e contribuições de melhoria, casos em que a identificação dos tributos pelo fato gerador e pela capacidade contributiva sempre foi perfeitamente possível. Com o crescimento do estado do bem-estar social (e o advento do estado interventor, e, hoje, do estado regulador), a identificação e o controle dos tributos, com base naqueles conceitos, passaram a sofrer conhecidas alterações, o que ocorreu, mormente, com a figura da para-fiscalidade e das contribuições.

A parafiscalidade representou uma resposta à complexidade das organizações políticas para além do Estado mínimo, com a conseqüente multiplicação de entidades paraestatais a cumprir funções sociais nem estritamente privadas nem estritamente estatais. A busca de recursos para estas entidades gerou as contribuições sociais, cuja natureza, cifrada pela parafiscalidade, introduziu, na sua configuração estrutural, a noção de finalidade, de escopo e de afetação a fins específicos. Com isto, na sua configuração como tributo (não reconhecida de imediato) não desaparecia, mas perdia ênfase a questão do fato gerador e da capacidade contributiva. Isto porque as contribuições passavam a ter, como materialidade de seu "fato gerador", não, como nos impostos, uma atividade e uma conduta típicas do agente econômico, mas uma atividade do próprio ente estatal, na conferência de um benefício. Por outro lado, à diferença das taxas e ressalvadas as decorrentes de poder de polícia, não havia uma correlação direta entre a atividade estatal e o benefício a receber, posto que a afetação a fins não decorria de uma estrita reciprocidade. Daí seguia um entendimento das contribuições como um tipo de tributo, caracterizado por um fato gerador consistente numa atividade estatal, indiretamente referida ao obrigado (assim, dentre outros, Geraldo Ataliba, Hipótese de Incidência Tributária, 6a ed., 10a tir., São Paulo, Ma-lheiros Editores, 2009, p. 147).

Assinale-se, como faz Marco Aurélio Greco, em seu Contribuições (Uma Figura "Sui Generis") - São Paulo, 2000, pp. 135 ss. - que, em sua configuração constitucional, salta aos olhos o caráter finalista das contribuições. Elas podem, no caso do ca-put do art. 149, ser estabelecidas pela União "como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas". Ora, quem fala em instrumento fala em meio para um fim: atuar nas respectivas áreas, atendendo-lhes os respectivos interesses. Ou seja, quanto à finalidade, as contribuições admitem uma finalidade imediata que é ser instrumento de atuação, e uma finalidade mediata, que é atender o interesse do grupo ou área (cf. Greco, ob. cit., p. 136).

Isto faz com que a exigência de legalidade das contribuições se desloque do controle da validade condicional para o da validade finalística de suas normas (cf. Ferraz Jr., Teoria da Norma Jurídica, Rio de Janeiro, 1978, pp. 109 ss.), ou seja, desloque-se da relevância do critério de sub-sunção do fato gerador escolhido ao fato gerador definido constitucionalmente, para a relevância do critério de adequação, proporcionalidade e comedimento no atendimento a certos fins constitucionais - relação meio/fim (Greco, ob. cit., pp. 118 ss.).

A análise das contribuições, quanto à finalidade mediata, revela que não é nota relevante o benefício da coletividade, posto que isto é característica de qualquer tributo. Relevante aqui é o benefício específico, direto do grupo e indireto de seu membro. Ao fim e ao cabo, a finalidade mediata das contribuições tem por referência um grupo em função do qual é caracterizada a exigência de um benefício especial e específico, mas quem desfruta, individualmente, do benefício é o membro do grupo enquanto tal. O importante é existir este benefício para o membro do grupo social ou área, que é o seu contribuinte.

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Com isso é possível traçar uma distinção entre contribuição social, taxa e...

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