Fundamentos dogmático-jurídicos de um poder de polícia administrativo à brasileira

AutorItiberê de Oliveira Castellano Rodrigues
CargoProfessor de Direito Constitucional no Curso de Direito da Faculdade do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul - FMP

Professor de Direito Constitucional no Curso de Direito da Faculdade do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul - FMP; Professor Convidado de Direito Administrativo nos Cursos de Pós-Graduação em Direito da UFRGS.

Professor Adjunto licenciado na Faculdade de Direito da UFPEL; Mestre em Direito Público pela UFRGS;

Magister Legum pela Universidade de Münster - Alemanha; Doutor pela Universidade de Münster - Alemanha; Sócio do Escritório Veirano Advogados - Porto Alegre/RS.

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Introdução

O tema "poder de polícia administrativo" ainda se apresenta, em boa parte da doutrina administrativista brasileira (e também na jurisprudência), fortemente influenciado pelos autores de direito administrativo francês.

Por outro lado, não se pode afirmar tout court que os fundamentos jurídicos do direito positivo brasileiro vigente permitam que uma tal influência possa continuar a ser assim tão marcante, uma vez que não existe em princípio uma plena identificação nem de hierarquia e nem de conteúdo entre as normas jurídicas vigentes na França e no Brasil, conforme se verá a seguir.

A partir disso, a linha-mestra no presente trabalho tem por finalidade identificar quais seriam os temas ou fundamentos básicos de uma construção dogmático-jurídica "à brasileira" do tema "poder de polícia administrativo", à semelhança - e por direta inspiração - daquilo que já foi intentado por Almiro do Couto e Silva no âmbito dos serviços públicos1.

1. Fundamentos históricos

No Estado absolutista, o "direito de polícia" ou "poder de polícia" é toda e qualquer atividade exercida pelo monarca que não é legislativa, mas que serve exatamente para concretizar essa legislação monarca frente a seus súditos. Poder de polícia era assim o que hoje se entende por atividade de execução da lei. Do ponto de vista do seu conteúdo, o poder de polícia podia ser tanto uma atividade monarca de limitação e restrição da propriedade e da liberdade quanto de benefício ou ampliadora da liberdade e propriedade dos seus súditos.

Assim, por exemplo, o professor de Coimbra Francisco Coelho de Souza e Sampaio afirmava na sua obra de 1793 "Preleções de direito pátrio, público e particular" que "Por Direito da Polícia entendemos a autoridade, que os Principes tem para estabelecerem e proverem os meios, e subsidios, que facilitem, e promovão a observancia das suas Leis. Os meios são principalmente a cultura das Disciplinas [i.e. "Direito, que os Principes tem de estabelecerem Academias publicas, independente da auctoridade Ecclesiastica, e de prohibir os livros perniciosos, e proscrever as falsas doutrinas, e impor silencio ás questões prejudiciais"], o augmento da População, a saude dos Povos, o Comercio, a Agricultura, as Manufacturas"2.

Com a superveniência do Estado liberal de Direito opera-se uma mudança no conteúdo do poder de polícia (e que até hoje basicamente se mantém), mais exatamente uma redução do seu conteúdo apenas a determinadas atividades estatais.

Existe uma lógica interna a essa redução material do conceito de polícia, vez que o Estado liberal é um Estado que se caracteriza sobretudo como um "Estado mínimo" desde um ponto de vista das liberdades do indivíduo, sobretudo as liberdades econômicas.

Assim, no Estado liberal do século XIX o poder de polícia passa a designar (somente) um poder (ou competência) do Estado (ou da Administração Pública) de limitar ou restringir a liberdade e a propriedade dos administrados em nome da segurança e da ordem públicas (ou: do interesse público, ou do interesse coletivo).

Por outro lado, mesmo nesse caso, é possível ainda afirmar que o poder de polícia pretende grosso modo definir o inteiro conjunto de atividades administrativas a cargo do Estado liberal e que se destinam à execução da legislação. Apenas essas tarefas, em face da ideologia intrínseca do Estado liberal, foram quantitativa e qualitativamente reduzidas (se comparadas às atividades do anterior Estado absolutista) em favor de uma ampliação proporcional das atividades de livre autonomia e/ou de livre iniciativa dos particulares.

Essa fórmula liberal encontra-se subjacente, por exemplo, ao art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: "A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei".

Citando um dos clássicos autores liberais do século XIX (Thomas Cooley, 1824-1898, professor universitário e juiz da Suprema Corte dos EUA), Hely Lopes Meirelles irá então afirmar que "o poder de polícia é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito individual. (...) No dizer de Cooley: "O poder de polícia (police power), em seu sentido amplo, compreende um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado busca não só preservar a ordem pública senão também estabelecer para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem necessárias para evitar conflito de direitos e para garantir a cada um o gozo ininterrupto de seu próprio direito, até onde for razoavelmente compatível com o direito dos demais". Entre nós, Caio Tácito explica que "o poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais"3.

O poder de polícia administrativo justifica-se então como necessário porque, na prática, a garantia de uma liberdade ilimitada a todos os indivíduos quando no ingresso em um Estado de sociedade civil seria a própria negação daquela liberdade (ou, para parafrasear Thomas Hobbes, seria a liberdade de todos contra todos, o que também seria significar, na prática, a guerra de todos contra todos).

Note-se todavia que, tanto em nível ideológico-jurídico (um direito natural de liberdade que precede o direito estatal de restrição da mesma) já em um nível semântico (a própria linguagem utilizada), para o liberalismo a atividade administrativo-estatal de polícia aparece como uma atividade anômala e excepcional que limita e restringe algo que já está predefinido em um outro ramo do direito - a liberdade e a propriedade privada dos indivíduos.

Assim, a liberdade e a propriedade do direito civil e/ou comercial (em princípio ilimitadas) são como que vítimas de um mal necessário que é a atividade administrativa de sua limitação e/ou restrição - o poder de polícia.

Em nenhum momento portanto essas limitações ou restrições de caráter administrativo são consideradas como integrantes e verdadeiramente constituintes do próprio conceito de liberdade e de propriedade, isto é: como aspectos materiais que definiriam os próprios contornos do direito de liberdade e de propriedade dos indivíduos.

Em resumo: a ordem e a segurança públicas que servem de fundamento para a ação de polícia administrativa constituem em realidade um limite "externo" ao próprio exercício das liberdades individuais, as quais por sua vez já se encontram conceitual e materialmente definidas apenas e tão-somente pelo direito privado.

Assim, por exemplo, enquanto para o direito privado o direito de propriedade é o direito de pleno e absoluto uso, gozo e disposição de um bem, então os limites ou restrições que se colocam a essa plenitude e a esse absolutismo do indivíduo estão fora do direito privado, eles provêm do direito administrativo.

Liberdade e propriedade privada eram pré-dados, já estavam (autonomamente) constituídas (se necessário, constituídas por um direito "natural"). Daí a tônica liberal em expressões como "intervenção", ou "limitação", ou "restrição" para caracterizar as atividades administrativas nesse âmbito.

A contrario sensu, para as atividades de benefício ou de prestação estatal em favor da liberdade e da propriedade dos administrados reservou-se, sobretudo no direito administrativo francês a partir do final do século XIX, a expressão "serviços públicos" (por exemplo, educação, saúde, água, luz, telefone, correios etc): "Distingue-se a polícia administrativa do serviço público, pois o procedimento daquela é a prescrição e deste a prestação"4.

Na conexão entre direito constitucional e direito administrativo, poder de polícia e serviços públicos traduzem então, no âmbito deste último, aquilo que grosso modo os conceitos de Estado liberal e Estado Social, e de direitos individuais e direitos sociais, respectivamente, representam no âmbito do direito constitucional. Impõe-se portanto realizar uma conexão dogmático-jurídica entre o direito constitucional e o direito administrativo no tema "limitação e/ou restrição da liberdade e da propriedade".

2. Constituição e poder de polícia

Sendo o poder de polícia administrativo aquele que limita e/ou restringe a liberdade e a propriedade dos indivíduos em nome da ordem pública, é forçoso reconhecer ao lado disso que os temas "liberdade" e "propriedade" dos indivíduos constituem o fundamento básico dos direitos fundamentais individuais, e cujo status é de direito constitucional (e não de direito administrativo).

Mas então é somente a partir de uma clara definição dessa matéria constitucional que surgirá, depois, a matéria infralegal ou subordinada à legalidade (por força inclusive da literalidade do art. 37, caput, da Constituição de 1988) que se denomina "poder de...

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