Fundamentos da tutela de direitos no tempo

AutorFrancisco Rossal de Araújo - Rodrigo Coimbra
Páginas17-23

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Preceituavam os romanos um conhecido brocardo: dormientibus non succurrit ius, ou seja, o direito não socorre quem dorme, quem é inerte, quem deixa o tempo passar sem tomar atitudes. O tempo tem grande relevância para o Direito, pois, ainda que não seja um fato jurídico, por ser de outra dimensão, o seu transcurso integra, com muita frequência, suportes fáticos, como ocorre com a prescrição e a decadência, sendo que, quando previsto expressamente pela norma, é considerado elemento de suficiência para a configuração do fato jurídico respectivo.1 Portanto, o tempo tem força “jurígena”: pode criar, modificar e extinguir direitos. É um fato do mundo físico que, pela sua significação para os seres humanos, é absorvido pelas relações sociais e juridicização por meio de normas jurídicas, que disciplinam em que circunstâncias sua consideração é importante.

Cumprindo a missão da regulação social, da qual o Direito é instrumento2, cabe ao ordenamento de um Estado, querendo, limitar o exercício das pretensões no tempo, com o escopo de evitar as incertezas jurídicas e a instabilidade social, para que não fiquem pendentes indefinidamente, justificativa para o surgimento de institutos de natureza extintiva, como a prescrição e a decadência. Portanto, por detrás da prescrição e da decadência, como institutos de direito material, está o princípio da segurança jurídica, como sustentáculo do próprio Estado, visando a assegurar a paz social, mediante a estabilidade da ordem jurídica. A criação de direitos pelo transcurso do tempo pode ser exemplificada pela usucapião, que transforma a posse por determinado tempo em propriedade. Mais recentemente, outro exemplo de enorme repercussão social, no direito de família, é a união estável, que cria inúmeros direitos e deveres relacionados ao transcurso do tempo.

Page 18A segurança jurídica é um problema recorrente na história do Direito. Os romanos não tratam da prescrição no período das legis actiones e nem mesmo no período clássico. A regra era a imprescritibilidade das ações. Somente no período tardio é que houve tratamento legislativo para a prescrição, em especial com Teodósio II, por meio da praescriptio longi temporis.3 Mas o Direito Romano clássico conhecia os efeitos da passagem do tempo nas relações jurídicas obrigacionais, família, sucessões e coisas.

A partir de meados do século XVII, com o Leviatã, de Thomas Hobbes, que se incorporou à teoria política a convicção de que, sem segurança, não pode existir vida social organizada, razão pela qual se passou a entender que a segurança constitui um dos valores em que se assenta o pacto fundante da sociedade estatal. Pode-se encontrar referência ao tema na parte II do Leviatã, que cuida da República (traduzida também como Estado), na qual o autor diz que a finalidade do Estado é a segurança dos indivíduos que o compõem: “A causa final, finalidade e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e domínio sobre outros) ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual o vemos viver em repúblicas, é a preocupação com a sua própria conservação e uma vida mais satisfeita”.4 Hobbes constrói as bases iniciais da noção de segurança jurídica por meio da lei, sob a forma de absolutismo monárquico, entendendo o direito como expressão da vontade do soberano.5

Atualmente, o princípio da segurança jurídica traduz a proteção da confiança que se deposita na subsistência de um dado modelo legal, sobretudo, em face da doutrina de Canotilho6, que associa o princípio da segurança jurídica ao da proteção da confiança, a ponto de conceituá-los de uma só vez.

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No Brasil, o princípio da segurança está previsto no preâmbulo e no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988, e o Supremo Tribunal Federal tem explicitado a natureza constitucional do princípio da segurança jurídica destacando-o como “um valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria ideia de justiça material”.7

Para além do seu aspecto formal de certeza a respeito do direito positivo (perspectiva objetiva) e de proteção da confiança e das expectativas legítimas do indivíduo (perspectiva subjetiva), a segurança jurídica possui também uma faceta material de certeza sobre a inexistência de arbitrariedade na aplicação do direito. O princípio da segurança jurídica exige a segurança por meio do Direito, traduzida na prévia definição dos instrumentos jurídicos pelos quais serão solucionados os conflitos de interesses na sociedade, mas também demanda a segurança no próprio Direito, mesmo que haja ocasiões em que a segurança jurídica seja assegurada mediante a preservação de situações aparentemente injustas.8

Assim, a partir do princípio da confiança, eventual posição delimitadora no âmbito de posições jurídicas sociais exige, portanto, uma ponderação (hierarquização) entre a agressão (dano) provocada pela lei restritiva à confiança individual e a importância do objetivo almejado pelo legislador para o bem da comunidade.9

Desse modo, a visão estática de segurança, que se baseava na garantia do devido processo legal (art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal de 1988), deve ser substituída por uma visão dinâmica, ligada à concretização da Constituição e dos direitos fundamentais.10

Ainda que a nossa Constituição não contenha previsão expressa à segurança jurídica no plano processual, um dos fundamentos do Estado Constitucional é a segurança jurídica e o ordenamento constitucional arrola, expressamente, a segurança jurídica entre os direitos fundamentais (art. 5º, caput), razões pela qual Marinoni e Mitidiero11 apontam a segurança jurídica no processo como um direito fundamental.

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Em termos processuais, de acordo com Mitidiero12, na dimensão da Constituição, não há propriamente colisão entre segurança e efetividade, pois a segurança é um elemento do conceito de efetividade.

O direito à segurança jurídica no processo, destacam Marinoni e Mitidiero13, constitui direito “à certeza, à estabilidade, à confiabilidade das situações jurídicas processuais”, deter-minando “não apenas a segurança no processo, mas também a ‘segurança pelo processo’”, isto é, segurança no resultado da prestação jurisdicional.

Se as pretensões fossem perpétuas, como ocorreu em boa parte do direito romano, ou se tivessem prazos muito longos, poderia o prescribente ser surpreendido com demandas com as quais não mais contava e para as quais não se encontrava preparado. Os fundamentos da prescrição transcendem as análises puramente individualistas, focadas nos interesses do polo ativo de uma relação jurídica, para encontrar justificação no “interesse social”.14

A estabilidade das relações sociais e a segurança jurídica compõem, portanto, os principais fundamentos da prescrição, ao visar a impedir que o exercício de uma pretensão fique pendente de forma indefinida. Então, o ordenamento jurídico estabelece um lapso temporal para que a pretensão seja exercida (prazo prescricional). Transcorrido esse prazo sem qualquer diligência por parte do seu titular, o próprio ordenamento jurídico que tutela a pretensão concede ao devedor a possibilidade de limitar o seu exercício no tempo, em nome da estabilidade das relações sociais e da segurança jurídica.15

Dentro da concepção de...

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