O fundamento ético do direito de punir

AutorDANIEL CARDOSO GERHARD
Páginas50-85
Capítulo 4
O fundamento ético do direito de punir
Tendo em vista as ilações feitas no capítulo retro,
pergunta-se: como pode o Estado, que foi concebido a partir
das liberdades, interferir na esfera de liberdade de um indiví-
duo através de uma punição? Como pode o Estado, que traz
em seu bojo o ideal pacificador, guerrear contra um indiví-
duo? Se não houvesse um fundamento ético para responder
tais questionamentos, qualquer tentativa de resposta se apre-
sentaria como um verdadeiro contrassenso. Explicitar o fun-
damento ético do direito de punir é também explicitar a con-
dição mesma (fundamento político) de existir do Estado: “a
semente tende para a planta, e não terei apreendido o que é a
semente se ignorar o que ela tende a ser.1
Isto posto, mister se faz, em um primeiro plano, expli-
citar o fundamento político do direito de punir, para depois
explicitar o fundamento ético, vez que aquele está circunscri-
to a racionalidade deste.
Beccaria estabelece uma espécie de hierarquia em seu
texto, no que concerne às fontes de onde derivam os princí-
pios morais e políticos reguladores da sociedade. Enquadra-
se, neste contexto, o fundamento do direito de punir, em seus
vieses ético e político.
Conforme explanado no capítulo segunto, Beccaria
acredita serem três as referidas fontes das quais derivam os
princípios morais e políticos reguladores dos homens: a reve-
lação divina, a lei natural e as convenções sociais. O filósofo
milanês, contudo, exclui a primeira fonte (revelação divina)
1 VILLEY. Filosofia do Direito, p. 180.
Capítulo 4 O fundamento ético do direito de punir • 51
da fundamentação ética e política da sociedade, já que a sua
concepção de Estado é laica.
Embora ciente dessa emancipação do homem do jugo
da religião, Beccaria não a rebaixa perante a sociedade, co-
mo fizeram alguns enciclopedistas; ao contrário, afirma que,
para o sagrado, existe uma racionalidade própria, específica,
conforme se extrai, por hermenêutica, do seguinte excerto:
Cabe aos teólogos estabelecer as fronteiras entre o justo e o
injusto, quanto à malícia ou à bondade intrínseca do ato; cabe
ao publicista estabelecer as relações do justo e do injusto po-
lítico, ou seja, do que é útil ou danoso à sociedade.2
Esta distinção entre racionalidade religiosa e político-
jurídica é trabalhada, pois, não por exclusão da primeira, mas
através de uma espécie de hierarquia entre as racionalidades
operantes. Negar a racionalidade religiosa é uma coisa; depu-
rar os limites de atuação de cada racionalidade, conforme fez
Beccaria, é outra. Esta hierarquia estabelecida entre as racio-
nalidades pode ser apreendida através de fragmentos esparsos
no texto-referência de Beccaria:
Há, pois, três classes distintas de virtude e vício: a religiosa, a
natural e a política. Estas três classes não devem nunca estar
em contradição entre si, mas nem todas as conseqüências e de-
veres resultantes de uma resultam das outras.
Nem tudo o que exige a revelação é exigido pela lei natural;
nem tudo o que esta exige é exigido pela pura lei social.
(...)
A ideia de virtude política pode, pois, sem desmerecimento, ser
chamada de variável; a da virtude natural seria sempre límpida
e manifesta se a imbecilidade ou as paixões dos homens não a
obscurecessem; a da virtude religiosa é sempre uma constante,
porque diretamente revelada por Deus e por Ele conservada.
(...)
2 BECCARIA. Dei delitti e delle pene, 2008, p. 06.
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Seria, pois, errôneo atribuir a que m fala de convenções sociais
e de suas conseqüências princípios contrários à lei natural ou à
revelação, porque não é delas que fala.3
Faz-se necessário, então, explicitar o fundamento do
direito de punir em uma racionalidade específica, pois, con-
forme aduziu o próprio Beccaria, “tão logo esses princípios
essencialmente distintos venham a ser confundidos, deixará
de existir a esperança de raciocinar corretamente em matéria
pública.”4
1 O fundamento político do direito de punir
Conforme exposto no capítulo terceiro deste trabalho,
o Estado foi inventado para instrumentalizar as relações soci-
ais de modo a evitar que os indivíduos terminassem em uma
situação caótica, degradante, que Beccaria, assim como ou-
tros filósofos, entende ser o estado de natureza:
Seria um erro acreditar que aquele que, falando do estado de
guerra antes do estado de sociedade, o tomasse no sentido ho b-
besiano, ou seja, o de nenhum dever e nenhuma obrigação an-
terior, em vez d e tomá-lo como fato nascido da corrupção da
natureza humana e da ausê ncia de uma sanção expressa. Seria
um er ro acusar um escritor que considere os efeitos do pacto
social, do delito de não admitir esses efeitos a ntes do pacto em
si.5
O estado de natureza (ou de guerra, como escreveu
Beccaria) é uma constante ameaça à organização social, visto
que, neste contexto, o homem seria inclinado ao egoísmo,
devido ao seu “espírito despótico”6. Este homem egoísta en-
tende a liberdade de maneira errônea, já que acredita ser pos-
3 BECCARIA. Dei delitti e delle pene, 2008, pp. 04-05.
4 Idem, p. 06.
5 Idem, p. 05.
6 Idem, p. 11.

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