O fundamento das ações regressivas e a comparação entre seguro privado e seguro social

AutorSilvia Fernandes Chaves
Páginas99-114

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O seguro privado foi disciplinado, pela primeira vez em nossa legislação, no artigo 1.432 do Código Civil de 1916, que assim dispunha:

Art. 1.432. Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se obriga para com outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizar-lhe o prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato.

Clóvis Beviláqua, nos comentários ao referido Código, dizia que

A definição legal do contracto de seguro é satisfactoria. O fim desse contracto é proporcionar ao segurado indemnização pelos prejuízos provenientes do sinistro sofrido. Para esse efeito associam-se o segurado e o segurador. O primeiro contribue com os seus prêmios, e o segundo indemnizar-lhe-á os prejuízos resultantes dos riscos previstos no contracto.122

Ainda nas palavras do jurista, "risco é o perigo, que pode correr o objeto segurado, em consequência de um acontecimento futuro, estranho a vontade das partes".123 Assim, resta evidente que o risco assegurado deve constar expressamente da apólice.

É importante notar que o contrato de seguro privado configura-se como um contrato comercial, e, portanto, se diferencia do seguro social nesse aspecto.

A incerteza da ocorrência do sinistro se concretizar ou não é "eliminada no cálculo de probabilidades e não recai sobre a seguradora, ao lidar com vasto universo de contratantes. Ela é capaz de enxergar a problemática de um viés tal que a concretização do risco passa-lhe a ser certa".124

Por ser um contrato comercial, a seguradora inclui no prêmio os seus custos com administração e lucro, e tal motivo também diferencia o seguro privado do seguro social.

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No seguro privado, a atuação do segurado implica a contratação, uma vez que o seguro privado impõe a existência de boa-fé, de tal sorte que as informações prestadas na apólice devem ser verdadeiras e, sem dúvida, acarretarão o pagamento da indenização.

Já no seguro social, inexiste a figura da apólice, e, assim, o segurador só terá acesso às informações do segurado pouco antes do pagamento da indenização.

A questão atinente à boa-fé do segurado corrobora a Súmula 105 do Supremo Tribunal Federal, que determina: "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro".

No mesmo sentido, dispõe o parágrafo único do artigo 59 da Lei n. 8.213/91:

Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.

Parágrafo único. Não será devido auxílio-doença ao segurado que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social já portador da doença ou da lesão invocada como causa para o benefício, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão.

Desse modo, concluímos estar revestido da figura da boa-fé também o seguro social.

Voltando ao seguro privado, de forma similar, o artigo 768 do Código Civil em vigor preceitua: "O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato".

Nessa seara, Luís Rodrigues Kerbauy leciona que

Para que a caracterização da culpa se enquadre na previsão do art. 768 do CC é necessário que se dê em grau elevado a ponto de externar a consciência do agente no aumento do risco. A análise da majoração do risco deve ser feita com base na equidade, ademais, conforme constava no art. 1.456 do Código de 1916, pois é de sua essência e boa-fé. "Não se deve exigir do segurado que esteja, angustiosamente, atento a todo perigo para evitá-lo", pois ele contrata o seguro para enfrentar o perigo com maior tranquilidade.125

No entanto, no caso do seguro social, a existência ou não do dolo (intenção) no agravamento ou na progressão da doença para fins de obtenção de auxílio--doença não implica perda do direito à indenização como no seguro privado.

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Para alicerçar a questão da boa-fé, o Código Civil traz o artigo 762, que dispõe sobre a nulidade do contrato de seguro privado para a garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário ou de outrem.

Nesse aspecto, o seguro social difere do seguro privado, uma vez que não há nulidade de contrato, por não haver contrato escrito, e o ato doloso do segurado ou do beneficiário só teria previsão legal nos casos de dependente que mata o segurado para fins de recebimento de pensão por morte conforme dispõe o § 1º do artigo 74 da Lei n. 8.213/91. No caso do seguro social, o homicídio praticado pelo dependente, em desfavor do segurado, implica a impossibilidade de recebimento de pensão por morte.

Cabe observar que a culpa leve não é considerada nos seguros privados atuais, pois, ainda que o homem diligente, por um pequeno descuido, venha a cometer ato ilícito, cuja culpa tenha sido leve, o seguro privado cobrirá o infortúnio. Como exemplo, em um acidente automobilístico, se, ao dirigir seu veículo, o motorista desatento vem a colidir levemente na traseira do veículo à sua frente, este pode solicitar a cobertura do seguro contra terceiros, e terá o seu pedido atendido, pois se trata de culpa leve, sendo objeto de pagamento da indenização securitária.

Já no âmbito do seguro social, em sendo a culpa do empregador leve ou gravíssima, este estará sujeito a reparar os danos causados à Previdência Social por meio da ação regressiva. Aliás, até o presente momento, não se viu ação regressiva julgada improcedente em razão de culpa leve. A negligência mais simples cometida pelo empregador será objeto de ação regressiva.

Cabe salientar que o seguro privado geralmente traz a figura da responsabilidade contratual, existente entre segurado e segurador, e da responsabilidade extracontratual, existente entre causador do dano e vítima. No âmbito do seguro social, temos uma relação extracontratual, vinculada a um seguro obrigatório, mas que também reflete direitos e deveres ao causador do dano e à vítima. A vítima exerce seu direito por meio da concessão de benefício previdenciário, e o causador do dano (a empresa empregadora) deve exercer seu dever por meio de ação regressiva.

No que tange ao valor da indenização, cumpre esclarecer que, no seguro privado, o dever de indenizar decorre da vontade das partes, que estabeleceram um determinado valor, o qual será contabilizado no montante do prêmio; no seguro social, a indenização decorre de lei, sendo o valor calculado de acordo com os salários de contribuição do segurado, e pago mensalmente, em forma de benefício previdenciário.

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Quanto ao direito de sub-rogação no seguro privado, ele está previsto no artigo 786 do Código Civil, que dispõe:

Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

§ 1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cónjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins.

§ 2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.

Embora esse instituto da sub-rogação no âmbito do seguro privado pareça similar à ação regressiva, prevista no artigo 120 da Lei n. 8.213/91, é importante esclarecer que não há similaridade entre os institutos, visto que o direito de regresso no seguro privado, consubstanciado no artigo acima citado, difere em muito da ação regressiva proposta pela Previdência Social em desfavor do empregador, pois, no caso da ação regressiva, não há sub-rogação de direitos, já que o empregado também poderá buscar a sua indenização no âmbito da Justiça do Trabalho. No seguro social, o empregado sofre o acidente do trabalho e busca o seu benefício junto à Previdência Social porque contribuiu e é segurado (por isso a lei lhe garante esse benefício), e ainda pode ajuizar ação de indenização em desfavor do empregador pelos danos que sofreu, nos termos do artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição Federal.

A inexistência da sub-rogação de direitos no seguro social configura a diferença entre a natureza dos institutos da ação regressiva do seguro social e a ação regressiva do seguro privado.

Há recorrente confusão de institutos por parte dos operadores do Direito, razão pela qual não poderia passar despercebida, nesta pesquisa, a principal diferença entre a ação regressiva no seguro social e a ação regressiva no seguro privado: a sub-rogação de direitos, embora existam outras diferenças, como já apontado, as quais, no entanto, não se tratam da principal.

A Previdência Social vista enquanto seguro

Nas linhas acima, tentamos traçar as principais diferenças e semelhanças entre o seguro privado e o seguro social. Considerando que estamos tratando de seguro social, tentaremos, nesta subseção, traçar todas as suas nuanças, para melhor compreensão do tema desta tese, as ações regressivas.

Com propriedade, Wagner Balera traz o conceito de seguro social como se fosse um ">condomínio social> que foi sendo aprontado com as contribuições sociais dos trabalhadores, dos empregados, de participantes e instituidores de fundos de pensão".126

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Tal definição de "condomínio social" parece-nos muito acertada, uma vez que o seguro social muito pouco se assemelha ao seguro privado, e a similaridade na nomenclatura nos induz ao equívoco de acreditar que ambos são seguros com modalidades distintas, mas, se assim fosse, estaríamos falando de uma única definição para a palavra seguro.

A técnica do seguro social, como "condomínio social", usa como paradigma a figura do mutualismo e do seguro privado. Nas palavras de Balera,

O mutualismo é princípio solidário que aceita e exorta a realização de série de esforços coordenados para superar as crises de infortúnio e contingências da vida...

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