O Direito Fundamental à Saúde do Trabalhador: uma Abordagem Constitucional para a sua Efetividade

AutorIleana Neiva Mousinho
Páginas105-121

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1. Introdução

O Ministério Público do Trabalho, na defesa do direito fundamental à saúde do trabalhador e ao meio ambiente de trabalho seguro, atua para a concretização do art. 7º, XXII, da Constituição Federal, que estabelece o direito dos trabalhadores à "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança".

O art. 7º, XXII, da Constituição Federal, na moderna interpretação constitucional, em que se conjuga a importância dos direitos fundamentais com a força normativa da Constituição, orienta a interpretação de todas as outras normas do ordenamento jurídico a respeito de saúde e segurança do trabalho, determina a compatibilização de diversos outros princípios espraiados no texto constitucional e na legislação infraconstitucional, e exige a revisão de conceitos arraigados na cultura jurídica e no estudo técnico-científico de saúde e segurança do trabalho.

A força e prevalência do princípio esculpido no art. 7º, XXII, da Constituição Federal, em face, inclusive, de outros princípios constitucionais, é explicada por ser expressão do princípio vetor do ordenamento jurídico, o princípio da dignidade humana, e do próprio direito à vida.

Assim, como o princípio da dignidade humana, o direito fundamental à saúde e segurança é inerente à própria condição humana, e, por isso, de estatura elevadíssima, a determinar que os outros princípios sejam harmonizados com ele.

Ao estabelecer o dever de reduzir os riscos inerentes ao trabalho, a Constituição Federal impõe que as empresas reconheçam o valor social do trabalho e valorizem o trabalho humano como fundamento da ordem econômica (inciso IV dos arts. 1º e 170 da Constituição Federal). E mais, tendo a Constituição Federal fixado que é finalidade do Estado brasileiro "assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 3º), não há campo, nem sob o ponto de vista jurídico nem moral, para invocar-se a autonomia privada e a falta de previsão legal expressa de determinada medida de saúde e segurança, em detrimento da realização do direito fundamental à saúde do trabalhador.

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Isso porque, a ordem econômico-constitucional vigente no Brasil, conquanto capitalista, está adstrita ao modelo de Estado definido na Constituição, que é o Democrático de Direito, no qual os princípios da ordem econômica devem ser interpretados em consonância com os direitos fundamentais diretamente decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana, eixo axiológico da Carta de 1988.

Por isso, o Estado capitalista contemporâneo não se funda na "livre-iniciativa", apenas, mas a conjuga com os "valores sociais do trabalho"; não sacraliza a "autonomia privada", mas garante o seu exercício desde que não importe em violação aos direitos fundamentais. Trata-se de um Estado que condiciona o exercício da propriedade privada ao cumprimento de sua função social (art. 5º, XXII e XXIII; art. 170, II e III, da Constituição Federal).

Nesse contexto, os direitos fundamentais dos trabalhadores que, no Estado liberal, eram relegados, sob a compreensão de que bastava assegurar autonomia/liberdade aos indivíduos que eles próprios regularizariam suas relações sociais, passam a ser vistos como direitos que precisam ser protegidos pelo Estado Democrático de Direito, como forma de realizar os objetivos a que se propõe no plano econômico ("construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" - art. 3º da Constituição Federal).

No Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais sociais e de solidariedade são realçados não apenas por razões humanitárias, mas pelo reconhecimento de que os objetivos da ordem econômica, para se realizarem, necessitam de uma racionalidade do sistema capitalista, que precisa coibir os abusos, para não se tornar autofágico.

A falta de efetividade do direito fundamental à saúde do trabalhador (art. 7º, inciso XXII, e art. 200, inciso VIII) tem gerado efeitos danosos para a economia do país, com a multiplicação de acidentes de trabalho, que diminuem ou eliminam a capacidade laborativa do trabalhador brasileiro, e com o dispêndio de recursos do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, para atender às despesas com auxílios-doença, auxílios-acidente, aposentadorias por incapacidade e reabilitação profissional de trabalhadores; e do Sistema Único de Saúde, para atender às despesas com internações hospitalares, cirurgias, exames e fornecimento de medicamentos de uso continuado.

Portanto, a correta interpretação dos princípios da livre-iniciativa e da função social da propriedade, sem distensão ideológica dos seus limites, é necessária para a concretização do direito fundamental à saúde e segurança do trabalhador, obrigando-se as empresas a implementar normas de saúde e segurança, que incluem a mudança na forma de organização do trabalho.

Somente com a implementação de medidas relativas à própria organização do trabalho, com alterações significativas nos ciclos de trabalho, na jornada de trabalho, nas máquinas e instrumentos de trabalho, é possível reduzir acidentes do trabalho e preservar a indenidade física e mental do trabalhador brasileiro.

Para qualquer país, ter um grande número de trabalhadores adoecidos e acidentados não é um bom cenário, sob o prisma social ou econômico.

Se, em um primeiro momento pode parecer às empresas que "o melhor dos mundos" seria aquele em que não fossem obrigadas a implementar normas de saúde e segurança do trabalho, pelos custos que essa implementação representa, a médio e longo prazo, a depender da atividade, verão que o pagamento da "fatura" pela falta de adoção daqueles normas sempre ocorrerá, uma vez que os altos custos previdenciários serão cobertos com a imposição de mais contribuições sociais; os altos custos para o sistema público de saúde constituirão argumento para o Estado não

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reduzir a carga tributária e até para justificar a criação de mais contribuições, como ocorreu, no passado, com a criação da CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira).

Além disso, as empresas que não previnem acidentes de trabalho e não implementam medidas que evitem o adoecimento de seus empregados perdem com o absenteísmo e terão grande contingente de trabalhadores reabilitados, sem espaço para todos e sem poder demiti-los, mormente quando sujeitas a completar uma quota de contratação de pessoas com deficiência ou reabilitadas (art. 93 da Lei n. 8.213/91).

Diante desse cenário, a correta interpretação, pelo Poder Judiciário, do art. 7º, XXII, da Constituição Federal, é atitude que beneficia a toda a sociedade, e cumpre o mandamento constitucional de aplicação imediata dos direitos fundamentais (§ 1º do art. 5º) e, também, realiza os objetivos e princípios insculpidos nos arts. 3º e 4º da Carta da República, propiciando o desenvolvimento nacional com justiça social, em decorrência da observância dos direitos fundamentais.

2. A saúde e segurança do trabalhador como direito fundamental as dimensões da eficácia desse direito fundamental

Os direitos fundamentais, positivados em princípios e regras jurídicas, têm o que se convencionou chamar de eficácias vertical e horizontal. A eficácia vertical impõe abstenções e tarefas ao Estado, enquanto a eficácia horizontal determina comportamentos comissivos ou omissivos aos particulares.

Identificam-se, também, duas perspectivas de análise desses direitos: a subjetiva e a objetiva. A subjetiva foi a primeira dimensão reconhecida aos direitos fundamentais, no Estado Liberal, e, nessa perspectiva subjetiva, cuida-se de identificar quais pretensões o cidadão pode exigir do Estado, em face de uma norma jurídica.

Já a dimensão objetiva dos direitos fundamentais veio a ser percebida na evolução do modelo de Estado Constitucional, com o surgimento do Estado Social de Direito, e, posterior evolução para o Estado Democrático de Direito.

Na dimensão objetiva, os direitos fundamentais passam a ser vistos não apenas como direitos exigíveis dos poderes estatais, mas direitos que consagram os valores mais importantes de uma sociedade, e, por isso, direitos exigíveis dos particulares, nas suas relações privadas.

Em acertada síntese, destaca Daniel Sarmento:

Reconhece-se então que tais direitos limitam a autonomia dos atores privados e protegem a pessoa humana da opressão exercida pelos poderes sociais não estatais, difusamente presentes na sociedade contemporânea.1

E prossegue o citado autor:

os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e...

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