A teoria da respublica (fundada sobre a "sociedade" e não sobre a "pessoa jurídica") no Corpus Juris Civilis de Justiniano

AutorGiovanni Lobrano
CargoProfessor de Direito Romano da Facultà di Giurisprudenza dell'Università degli Studi di Sassari (Itália).
Páginas13-41

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Introdução

Meu texto1 exercita uma - primeira - reconstrução da 'teoria da república' no Corpus Juris Civilis do imperador Justiniano.

Especifico «primeira», porque, se ninguém pode negar a evidência de uma 'teoria da república' em Cícero,3 a doutrina romanista correntePage 14não reconhece a possibilidade de tal teoria no CJC, por duas razões/ postulados (ambos falsos e que começam a se revelar como tais), a saber: a) a oposição substancial entre república e império; e b) a matéria essencialmente privada do CJC.4

Antes de empreender a reconstrução da teoria da república junto aos Romanos, parece-me, todavia útil «centrar o foco» (ainda que de modo incidental) sobre o estado atual da «questão republicana», através de algumas observações rápidas em torno da relação entre as noções de «pessoa» e de «sociedade».

1 As repúblicas segundo Kant
1. 1 A oposição entre a «verdadeira» república «representativa» dos Modernos e a «alegada» república «democrática» dos Antigos

Minhas observações tiveram, como ponto de partida, a formulação de Emmanuel Kant para o tema da república em seu famoso tratado «sobre a paz» (Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf) escrito em 1795, no alvorecer da época contemporânea.

Kant considera a república não somente algo importante, mas absolutamente necessário para atender ao objetivo fundamental da paz durável entre os homens.

Ele especifica, portanto, que não há somente um, mas dois tipos de república, antagônicos e incompatíveis entre si.

A oposição vislumbrada por Kant se apoia sobre: a) a república «verdadeira» dos Modernos, cuja característica é ser «representativa» (e,Page 15por tanto, não democrática); e b) a alegada república (=«so genannte») dos Antigos, cuja característica é ser, ao contrário, «democrática» (e, assim, não representativa).

Como pano de fundo dessa oposição, encontramos o contraste entre instituição da pessoa jurídica e instituição do contrato de sociedade, e também entre dois tipos de «pessoa»: a «pessoa jurídica» Leviatã-Estado; e as «pessoas físicas» (os homens), «todos os cidadãos» que, por meio do contrato de sociedade, constituem o povo.

1. 2 O fundamento da república representativa (o pactum unionis [com efeito de pactum subiectionis] constitutivo da pessoa jurídica Leviatã-Estado) e o fundamento da república democrática (o contrato de sociedade constitutivo do povo de cidadãos)

A partir da contribuição de um jurista italiano do século XIII (Sinibaldo de' Fieschi, sagrado Papa sob o nome de Inocêncio IV [f 1254]), a ideia de representação da vontade se funda sobre a ideia de «persona ficta» (segundo a fórmula «collegium in causa universitatis fingatur una persona» [Super libros quinque Decretalium commentaria, Frankfut am Main, 1570, c.57 X.2.20] que, através de Belleperche, Bartolo di Sassoferrato e Giovanni d'Andrea, torna-se a «persona ficta vel repraesentata»). Essa ideia, avançada em seu contexto pelas exigências do direito canônico, é, todavia, desenvolvida de modo anormal no contexto do direito parlamentar inglês, que estava iniciando à época,5 por exigências totalmente diferentes, em razão da natureza aristocrática. A «persona ficta vel repraesentata» dos canonistas tornar-se-á assim a «persona artificialis» do Leviatã de Hobbes e, enfim, a «pessoa jurídica» ou «moral» do Estado de Hegel.

Quanto ao fundamento societário da «república democrática», é o próprio Cícero que o afirma em seu tratado «sobre a república»: res publica id est res populi, populus autem non omnis hominum coetusPage 16quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus [rep. 1.25.39].

Antes de considerar os desenvolvimentos - contemporâneos e atuais - da oposição entre as repúblicas formulada por Kant, é necessário fazer uma digressão, mesmo rápida, sobre a oposição de fundo/fundamental entre a «pessoa jurídica» e o «contrato de sociedade».

O que está em questão, na minha opinião, são dois meios complexos («inventados» em épocas diferentes e por culturas jurídicas distintas) destinados a resolver o mesmo problema: o problema maior da consideração e do regime jurídico unitário da atividade de uma pluralidade de pessoas.6

O 'meio' da «pessoa jurídica» (como Kant - mas não somente ele! - nos ensina ou relembra) é - precisamente - a solução não (ou anti-) democrática do problema, enquanto, por 'meio' do contrato social, está a solução democrática (isto é, o meio principal pelo qual os Romanos [ver infra, § 3.3] chegam a controlar, canalizar e impor, de modo estável, a 'energia' democrática).

No âmbito do direito público, a pessoa jurídica (medieval-moderna: o Leviatã - Estado) substitui o povo dos cidadãos, ora na titularidade, ora no exercício (confiado aos representantes - necessários - da mesma pessoa jurídica) do direito/poder de expressar a vontade 'pública'; sempre de forma contrária, o contrato de sociedade (antigo e retomado à época moderna por Althusius e Rousseau) permite a/'obriga' todos os cidadãos membros da sociedade-povo a se engajar pessoalmente no exercício do direito/poder 'soberano' de definir e perseguir a «utilidade comum».7

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1. 3 Da crise (letal) da república representativa dos Modernos (com sua contradição fundamental) à oportunidade de superá-la pela república democrática dos Antigos

A república representativa, preferida por Kant, impôs-se amplamente ao longo de toda a época contemporânea, a ponto de ocasionar um verdadeiro esquecimento científico (um tipo de «damnatio memoriae» duplamente «científica»: pela matéria e pela determinação dos autores) da república democrática.

Mas, ao longo dos últimos anos, a república (isto é: a república representativa dos Modernos) entrou em uma crise letal, que atingiu seu elemento constitutivo e característico, a instituição da representação política, e seu fundamento, a pessoa jurídica-Estado.

Estamos, desse modo, diante (esta é a situação atual) de um impasse grave que consiste em continuar declarando, à maneira de Kant, a necessidade da república (penso, de modo exemplar, na 'declaração' pela qual essa exigência está formulada na Constituição italiana em seu princípio e em seu final [art. 1o. e art. 139]), mas, ao mesmo tempo (esta é a novidade), não se sabe o que ela é.8

Afortunadamente, ao mesmo tempo, assistiu-se e se assiste sempre a um verdadeiro 'ressurgimento' da república democrática dos Antigos, a qual vem, assim, ao nosso socorro e nos permite sair do impasse diante do qual nos encontramos.

Este ressurgimento conhece um grande número de sintomas mais ou menos evidentes; eu me limitarei aqui a mencioná-los: a nova importância política das municipalidades (as 'comunas' medievais-modernas, que provêm dos municipia romanos);9 a difusão do instituto de defesa do povo (o «ombudsman», pelo qual se fala de reproposição do tribunatoPage 18romano);10 a aparição de correntes científico-políticas, ligadas entre si, do «republicanismo» (que retomam a linha de pensamento de Maquiavel e de Rousseau); e a «democracia deliberativa» (que se opõe e busca ultrapassar a fórmula 'republicana' corrente do «votar e pagar» como síntese contemporânea dos poderes-deveres dos «cidadãos» para retornar ao modelo antigo da «cidade democrática»). A tudo isso, é necessário juntar a redescoberta (ao menos dentro do domínio da tutela eficaz do meio natural [o ambiente]) do Estado-comunidade «concreto» de «todos os cidadãos» contra o poder exorbitante do Estado-pessoa jurídica com o aparato que lhe representa.11

Resta-nos o problema grave de haver esquecido/perdido o conhecimento científico (a teoria jurídica) da república democrática e, assim, a capacidade de interpretar, de modo sistemático, esses 'sintomas'. Trata-se, todavia, de um problema cuja solução é - em princípio - fácil. «Si onpeut la voir où elle est, si on l'a trouvée, pourquoi la chercher?».12 Falta 'pura e simplesmente' estudar os textos em que ela se encontra, a saber, na obra do cônsul (bem como advogado e sacerdote [augure]) Cícero (particularmente os textos 'constitucionais' da República, das Leis e dos Deveres), mas também o CJC do lmperador Justiniano (a começar pelos primeiros títulos do livro primeiro do Digesto).

Na realidade, o livro...

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