Funcionalidade parlamentar nas experiências europeia e andina: quais perspectivas para o Mercosul?

AutorClarissa Franzoi Dri
Páginas170-181

Page 170

1 Introdução

É corrente, nos debates populares e acadêmicos atuais, a menção à crise de representatividade dos parlamentos e o questionamento sobre sua capacidade de acompanhar as transformações da democracia.1 Se essas inquietações fazem parte do cotidiano dos países de democracia consolidada, como as nações norte-americanas ou europeias, atingem com mais severidade as democracias incipientes, como é o caso da América do Sul. Nesses Estados, a falta de estabilidade das instituições democráticas deixa a população reticente quanto às vantagens de mantê-las à custa de consideráveis recursos públicos. No entanto, as instituições parlamentares demonstram uma considerável capacidade de adaptação e historicamente têm desmentido previsões de obsoletismo. Do Senado romano às assembleias parlamentares da Idade Média, dos parlamentos do Estado moderno centralizado aos parlamentos transnacionais do século XXI, o órgão ganhou os mais variados contornos e desempenhou os mais diversos papéis. Os indícios do presente, portanto, não apontam para um desaparecimento parlamentar, mas indicam, mais fortemente, a tendência a uma adequação às necessidades de um porvir cada vez mais próximo.

Se a democraticidade dos sistemas institucionais ainda depende, em grande medida, da presença de instituições parlamentares efetivas2, a criação de parlamentos nos blocos de integração que se pretendem democráticos é fundamental. Mesmo que as iniciativas de integração sejam aparentemente motivadas, em geral, pelo desenvolvimento econômico que derivaria do aumento do comércio e de políticas comerciais comuns, sua adstrição prolongada à economia limita as próprias oportunidades de desenvolvimento geradas. Os avanços econômicos estão condicionados, em certa medida, à evolução política da integração. Trocas comerciais e acordos tarifários dificilmente se mantêm sem estruturas jurídico-políticas à altura dos desafios que colocam, porque a base econômica influencia as formas políticas e jurídicas tanto quanto essas condicionam a economia3. Os parlamentos regionais surgem, portanto, para democratizar as ações derivadas do processo de integração nos mais diversos setores.

No MERCOSUL, contudo, além da fragilidade da própria integração econômica, que comporta inúmeras exceções ao livre comércio e à tarifa externa comum, são incipientes as atividades comuns em outras áreas. Nesse caso, o papel democratizador do Parlamento poderia se realizar no sentido de estimular ações sociais, educacionais, culturais, jurídicas e políticas no âmbito da integração, o que acabaria por influenciar o próprio comércio. Um comportamento desse tipo deveria englobar uma aproximação com os movimentos e as organizações sociais e outras entidades que já atuam em rede no plano regional e centralizam seu trabalho nas questões ligadas à integração.

Tal postura, tipicamente antiformalista, depende, entre outros fatores, da funcionalidade do Parlamento. O termo é utilizado aqui como sinônimo de eficiência, e designa a possibilidade de participação significativa no processo político4. Ou seja, para que os parlamentos de integração sejam capazes de influenciar, em alguma medida, os rumos dos blocos, inclusive por meio da adoção de uma perspectiva antiformalista no trato das questões regionais, é preciso que eles cumpram com eficiência seus fins. A funcionalidade parlamentar, no entanto, não corresponde integralmente à tradição política dos países da América do Sul. Os parlamentos nacionais desempenham funções limitadas e ocupam um lugar secundário com relação ao Poder Executivo. Essa situação repete-se no domínio da política externa, em que se supõem inseridas as questões relativas à integração. Parece haver um consenso, entre a classe política, de que o Executivo é "naturalmente" o representante internacional do Estado para negociar e concluir acordos, que devem posteriormente passar por um referendo formal do congresso.

O artigo propõe uma análise dos níveis de funcionalidade do Parlamento Europeu (PE) e do Parlamento Andino (PA) sob a ótica antiformalista do direito internacional5, com o objetivo de fundamentar discussões sobre as perspectivas de atuação da nova assembleia do MERCOSUL. Poderiam os parlamentos regionais contribuir para a criação de sistemas democráticos para além dos Estados capazes de oferecer respostas à globalização econômica e que expressem, efetivamente, os anseios de seus povos? Em caso negativo, eles não passarão de "velhos atores" reprodutores das debilidades da lógica parlamentar nacional na cena regional. Em caso afirmativo, eles poderão transformar-se em renovados e promissores atores políticos em um espaço integrado com diversos níveis de governança.

2 Parlamento Europeu: reforço de poderes versus debilidade representativa

"O Parlamento Europeu, uma criança destemperada em 1979, passou por uma adolescência incerta até chegar à maturidade, com a queda da Comissão Santer, em janeiro de 1999".6 Se Page 171 complementada com a iniciante Assembleia Comum de 1952 e com a sexta eleição, em junho de 2004, incluindo deputados de dez novas nacionalidades, a afirmação enfatiza as principais fases deste que é o primeiro parlamento internacional eleito diretamente na história. A cada fase corresponderam novas atividades ou o reforço das já existentes, definindo-se, assim, os contornos e os limites da funcionalidade do Parlamento.

Em 1950, Robert Schuman, ministro francês dos Negócios Estrangeiros, inspirado em Jean Monnet, então comissário francês do Plano de Modernização de Charles de Gaulle, propôs a gestão conjunta dos recursos do carvão e do aço da França e da Alemanha por uma organização aberta a outros países europeus. Dentre as finalidades de tal proposta, estavam tornar "impensáveis e materialmente impossíveis" futuras guerras franco-alemãs e o "estabelecimento de bases comuns de desenvolvimento econômico, primeira etapa da federação europeia".7 Assim, por meio da assinatura do Tratado de Paris por França, Alemanha, Bélgica, Itália, Luxemburgo e Países Baixos, criou-se a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA)8. Suas primeiras instituições foram a Alta Autoridade, órgão executivo, a Corte de Justiça e a Assembleia Comum, encarregada de controlar a Alta Autoridade, podendo inclusive provocar a demissão de seus membros. Sendo formada por 78 delegados dos parlamentos nacionais, também era seu intuito representar o povo europeu9. Longe de se conformarem em compor uma assembleia meramente formal, os deputados tiveram uma atuação destacada no sucessivo fortalecimento de seus poderes. Buscando aprofundar a integração europeia, em 1953 eles organizaram-se ineditamente em partidos - não mais segundo suas nacionalidades - e passaram a desenvolver relações construtivas com a Alta Autoridade, no afã de torná-la verdadeiramente supranacional10.

Apesar do fracasso, em 1954, das tentativas de formação de uma Comunidade Europeia de Defesa (CED) com contornos de união política, os esforços pela integração continuaram. Em 1957, foi assinado o Tratado de Roma, instituindo a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM). Ao mesmo tempo em que apresentou ambições majoritariamente econômicas e comerciais - mais restritas que as da CED -, a CEE alargou o campo de cooperação supranacional em relação ao Tratado de Paris. Nasceram com ela a Comissão Europeia, órgão executivo independente dos governos nacionais; o Conselho, órgão decisório composto por representantes dos Estados; e a Assembleia Parlamentar Europeia, composta por 142 deputados. À competência de controle - resumida agora aos atos da Comissão - adicionaram-se pequenos poderes orçamentários e consultivos. A função representativa também se manteve, mas ainda não através de sufrágio universal. A esse novo órgão deliberativo, portanto, foi conferido um poder de influência extremamente limitado. Contudo, só o fato de existirem atribuições mínimas foi o suficiente para ancorar as reivindicações dos deputados por mais poderes.

De fato, o peso do Parlamento parece sempre ter sido inversamente proporcional ao papel institucional que lhe era conferido pelos tratados11. Isso se deve, em parte, a três espécies de atitudes que caracterizaram, em geral, o comportamento dos deputados: de colaboração, reivindicativa e contestativa12. Procurando a máxima eficácia dos tratados, pressionando as demais instituições e os Estados-membros em nome de sua "legitimidade" e primando por sua independência - não raras vezes através da maximização de suas possibilidades de atuação jurídica -, os membros do Parlamento forjaram uma construção orgânica própria e determinante em certas fases comunitárias. Os pequenos poderes do Parlamento e o seu baixo grau de reconhecimento pelos cidadãos estão nas raízes das características citadas. Ao invés de aceitarem passivamente um papel coadjuvante no cenário europeu, os deputados procuravam otimizar suas possibilidades de ação. É provável que a edificação do status de "impulsionadores da Europa" tenha sido um dos poucos meios encontrados de conquistar algum espaço no cenário regional. Além disso, a história parlamentarista das nações europeias exerce uma influência considerável no perfil dos deputados.

Em 1962, os parlamentares aprovaram uma resolução instituindo a denominação Parlamento Europeu, com o fito de evitar confusões com outras assembleias internacionais e de preconizar o exercício de novos poderes, à luz dos parlamentos nacionais13. No entanto, com isso, criou-se a ilusão da existência de um parlamento na acepção tradicional do termo, desagradando tanto a adversários como a partidários da integração. Os primeiros, por serem contrários ao aprimoramento das atividades parlamentares; os...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT