Função social do contrato: primeiras anotações

AutorCalixto Salomão Filho
Páginas7-24

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A função social, presente como princípio jurídico em muitas constituições ocidentais desde a célebre previsão da Constituição de Weimar, sofre uma notável evolução no século XX que influencia profundamente sua aplicação atual. Deve necessariamente ser lembrada no momento em que o novo Código Civil propõe uma nova e interessante extensão do conceito.

I- O caminho da função social: dos bens às relações

Como mencionado, a função social da empresa tem origens históricas muito interessantes. A referência mais influente à expressão função social diz respeito à propriedade. Trata-se da famosa fórmula do art. 153 da Constituição de Weimar — Eigen-tum verpflichtet (a propriedade obriga).

Aplicada durante muitos anos em sociedades ainda fortemente agrárias (como a brasileira), em que a propriedade dos bens de raiz era sinónimo de poder económico, e por outro lado a propriedade dos bens de consumo era relação de grande relevância social, influenciou fortemente interpreta-ções restritivas do direito de propriedade, capazes de, em certas ocasiões, submetê-lo ao interesse púbico (como no caso das desapropriações). A ligação da função social ao interesse estatal nessas hipóteses fazia com que sua aplicação ocorresse exclusivamente em presença de previsão legal expressa — o que, evidentemente, reduzia em muito sua influência.

Cedo fica evidente, na própria teoria constitucional, que a abrangência do termo tinha de ser ampliada. Passando a empresa a representar o principal motor do sistema económico, influencia de forma crescente as relações sociais. De início, em vários ordenamentos, inexistindo a previsão legal expressa sobre a função social da empresa, fez-se necessarioqueadoutrinadistinguis.se entre formas diversas de propriedade (bens de consumo e bens de produção), identificando os últimos ao controle da empresa,1 para atribuir-lhe força aplicativa.

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De outro lado, é interessante notar que, especialmente na teoria constitucional, a função social, uma vez admitida sua extensão para a empresa, passa a justificar a própria atribuição de direitos fundamentais às pessoas jurídicas. Assim é que, por exemplo, no direito alemão o reconhecimento e atribuição da liberdade de associação à pessoa jurídica (como forma de proteção contra a dissolução imotivada) tem historicamente como contrapartida o reconhecimento de sua função social.2 O ponto alto e efeito mais significativo dessa evolução está, sem dúvida, no famoso Milbestitnmung-surteil, em que o Tribunal Constitucional alemão reconheceu a constitucionalidade das leis de participação operária nas grandes empresas alemãs.3

No Brasil, a ideia da função social da empresa também deriva da previsão constitucional sobre a função social da propriedade (art. 170, III). Estendida à empresa, a ideia de função social da empresa é uma das noções de talvez mais relevante influencia prática na transformação do direito empresarial brasileiro. É o princípio nortea-dor da "regulamentação externa" dos interesses envolvidos pela grande empresa. Sua influência pode ser sentida em campos tão díspares como direito antitruste, direito do consumidor e direito ambiental.

Em todos eles é da convicção da influência da grande empresa sobre o meio em que atua que deriva o reconhecimento da necessidade de impor obrigações positivas à empresa. Exatamcnte na imposição de deveres positivos está o seu traço característico, a distingui-la da aplicação do princípio geral neminem laedere. Aí está a concepção social intervencionista, de influência reequilibradora de relações sociais desiguais.

Os exemplos se multiplicam. Não é este o local adequado para descrevê-los em detalhes, mas apenas na medida suficiente para demonstrar a ligação com a ideia central da função social. Assim é que no direito antilruste a ideia de repressão ao abuso de preços (art. 21 da Lei 8.884/1994) transformou-se cm verdadeira obrigação positiva do monopolista de praticar preços com- . petitivos,4 No direito do consumidor a verdadeira revolução causada pela nova disciplina de responsabilidade pelos vícios do produto (art. 18 da Lei 8.078/1990) significa nada mais nada menos que estabelecer garantia legal adicional à garantia contratual em benefício do consumidor.

Finalmente, no direito ambiental, a ideia cappellettiana de recuperação dos prejuízos causados ainda que não haja dano sofrido (art. 225, § 2°, da Constituição Federal) é corolário da concepção da função social como deveres positivos e não mera obrigação de abstenção. Na prática, levou ao estabelecimento de diversas obrigações pontuais para as empresas, como obrigação de tratamento de resíduos sólidos, reciclagem de pilhas e pneumáticos etc. (Resoluções CONAMA 283, 257 e 258).

Essa influência legislativa ampla da função social da empresa revela que ao se desprender da propriedade e passar a se referir à empresa, sua disciplina transforma-se de algo fortemente ligado ao inte- . resse estatal em uma disciplina ligada ao interesse de grupos afetados pelas ativida-des da empresa. Daí a possibilidade de influenciar a adoção de diversas disciplinas jurídicas externas à empresa, visando exa-tameníe a proteção de grupos de interesses por ela afetados. De forma concentrada de extensão do intervencionismo estatal passa a influenciar disciplina difusa, voltada a proteger interesses de grupos sociais específicos.

Essa mudança não c ocasional. Decorre exatamente do fato de a função social

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passar de uma limitação a uma situação estática de propriedade para um instrumento de controle das relações sociais — no caso da empresadas relações de dependência e hierarquia por ela geradas. A aplicação a relações jurídicas (interpessoais) e não mais apenas a situações estáticas de propriedade segue de resto a própria marcha do capitalismo, de progressiva e crescente divisão do trabalho e, portanto, de progressiva importância económica das relações entre indivíduos e entre grupos sociais, É então a influência do comportamento individual sobre os interesses desses grupos sociais que passa a se referir o princípio da função social.

Afirmado esse princípio, aberto está o caminho para aplicação do princípio da função social não mais apenas às relações empresariais, mas a toda e qualquer relação da vida civil.5 É o que se fez ao prever no art. 421 do novo Código Civil a ideia de função social do contrato. Evidentemente que então faz-se necessário preencher de conteúdo esse princípio geral, exatamente como feito algumas décadas atrás para a função sociai da empresa, É o que se procurará fazer de ora em diante.

II- A essência da função social

De há muito foi-se o tempo cm que se pesquisavam e distinguiam essências pré-jurídicas. À exceção tio ser humano e dos institutos jurídicos a ele ligados, poucos são os institutos que não tem sua gestação e nascimento na própria realidade social. Nada diverso ocorre com o princípio da função social.

Sua essência decorre da evolução de sua utilização na realidade histórica. É essa utilização que releva o valor nele embutido, com interpretado e formatado pela própria sociedade.

O caminho percorrido pela função social é muito revelador de sua essência. Ressaltam dois traços marcantes.

Em primeiro lugar, é bastante evidente que a estrutura de direito função imprime caráter bastante peculiar ao instituto. Introduz a obrigação na estrutura do direito subjetivo6. Essa característica essencial é demonstrada pelo fato que sua primeira, mais célebre e talvez mais fiel tradução jurídica tenha se dado em termos de obrigação pura e simples (o famoso "a propriedade obriga" da Constituição de Weimar).

G óbvio que essa atribuição de obrigação varia ao longo do tempo, e não poderia ser de outra forma. À crescente complexidade das relações jurídicas corresponde também uma montante necessidade de distinguir e destacar as obrigações que geram essas relações.

Em um primeiro momento, na relação estática de propriedade, pareceu possível que, (como se procurou demonstrar retro ao discorrer sobre a evolução do princípio

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da função social) o próprio Estado estabelecesse as limitações ao direito de propriedade de maneira casuística. O princípio da função social da propriedade requereria, portanto, tradução legislativa específica. Essa característica da. função social está bastante em linha com as características do direito a que se refere. Também o direito de propriedade decorre de uma definição legislativa específica que dá pouco ou nenhuma margem de manobra aos particulares (em relação aos poderes e direitos dela decorrentes).

Na medida em que essa realidade se transforma e a acumulação de capital deixar de ter por base a exploração dos bens de raiz (sociedade agrárias), passando a se fundar em relações comerciais e industriais mais complexas, a essência da obrigação contida no princípio da função social tem de se modificar. Pela boa e simples razão de que também se modifica o direito que esta limita. Do direito de propriedade passa-se a relações jurídicas. Em um primeiro momento aquelas envolvidas pela empresa e, em seguida, pelos contratos em geral.

Ora, nesse dois últimos casos não mais se trata de uma situação jurídica específica, com precisa previsão em lei. Existem, ao contrário, uma série de relações económicas e sociais livremente (ou quase) estruturadas em torno de princípios jurídicos bastante gerais como livre iniciativa (empresa) e liberdade de contratação (contratos). Há, dentro desses parâmetros genéricos, bastante...

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