A função social da empresa como argumento de enfraquecimento das ações regressivas

AutorSilvia Fernandes Chaves
Páginas131-142

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Os incisos XXII e XXIII do artigo 5º da Constituição Federal garantem o direito à propriedade e à sua função social, e são repetidos como princípios da ordem económica no artigo 170, incisos II e III, também da Carta Magna. Assim, devemos entender que o legislador constituinte, ao inserir como direitos fundamentais a propriedade privada e a sua função social, ofereceu-lhes caráter de princípio geral, propagando-os por todo o ordenamento jurídico.

Nesse sentido, ensina José Afonso da Silva:

A instituição da função social da propriedade como princípio da ordem eco-nômica fez desse princípio um instrumento para a realização da finalidade dessa instância do direito, qual seja, assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.178

A partir dessa leitura, concluímos, nas palavras de Pietro Perlingieri, "que a produção, a empresa e seu incremento não representam os fins, mas os meios para realizar interesses não alienáveis patrimonialmente".179

Esses interesses não alienáveis patrimonialmente estão representados pela aplicação da justiça social.

Diante desse arcabouço da função social, entendemos que a função social da empresa engloba um conjunto de fenômenos indispensáveis para a coletivi-dade, assim como os reflexos das decisões empresariais para a sociedade e os direitos e interesses que se situam em torno da empresa, os quais diferem em muito da expectativa de lucro.

Sob a ótica das ações regressivas, torna-se importante traçar esse liame com a função social da empresa, como mecanismo de realização de justiça social, uma vez que é por meio dessa função social da empresa que empregados obtêm o mínimo de dignidade, exercendo o seu labor para a realização de seu sustento.

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E agora questionamos: todas as empresas são dotadas de função social? Evidentemente que sim. Ainda que tenham somente um único empregado.

Destacamos, aqui, a existência de microempresas e empresas de pequeno porte optantes do Simples Nacional, nos termos do artigo 1º da Lei Complementar n. 123/2006. A simplicidade na tributação não dispensa nenhuma empresa de pequeno porte ou microempresa do cumprimento dos direitos trabalhistas, uma vez que o artigo 50 da referida lei propõe a estimulação, por parte do Poder Público e dos serviços sociais, a formar consórcios para serviços especializados em segurança e medicina do trabalho, assim como o artigo 55 do mesmo diploma determina a fiscalização das empresas de pequeno porte e microempresas nos aspectos trabalhista, metrológico, sanitário, ambiental e de segurança, e regula, ainda, que, no caso de atividades que impliquem riscos, existe a necessidade do afastamento desse procedimento. Vejamos:

Art. 50. As microempresas e as empresas de pequeno porte serão estimuladas pelo poder público e pelos Serviços Sociais Autónomos a formar consórcios para acesso a serviços especializados em segurança e medicina do trabalho.

Art. 55. A fiscalização, no que se refere aos aspectos trabalhista, metrológico, sanitário, ambiental, de segurança e de uso e ocupação do solo das microempresas e empresas de pequeno porte deverá ter natureza prioritariamente orientadora, quando a atividade ou situação, por sua natureza, comportar grau de risco compatível com esse procedimento. (Redação dada pela Lei Complementar n. 147, de 2014)

§ 1º Será observado o critério de dupla visita para lavratura de autos de infração, salvo quando for constatada infração por falta de registro de empregado ou anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS, ou, ainda, na ocorrência de reincidência, fraude, resistência ou embaraço à fiscalização.

§ 2º (Vetado.)

§ 3º Os órgãos e entidades competentes definirão, em 12 (doze) meses, as atividades e situações cujo grau de risco seja considerado alto, as quais não se sujeitarão ao disposto neste artigo.

O artigo 3º da lei em questão dispõe sobre o conceito de empresa de pequeno porte e de microempresa, e, dada a sua condição de vulnerabilidade em relação às empresas em geral, ofereceu-lhes tratamento especial.

Álvaro Zocchio destaca que se o dono da empresa for seu único dirigente, ele assume as obrigações que correspondem a todos os níveis numa empresa de porte maior. Por que não? Mesmo que delegue a um empregado parte dessas obrigações, ele continua sendo o único e verdadeiro responsável pelo cumprimento das obrigações prevencionistas na sua empresa.180

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No entanto, partimos do pressuposto de que o Direito não pode fechar os olhos para a realidade, inclusive no âmbito das ações regressivas, vale notar que nenhuma ressalva há em relação às empresas de pequeno porte e às microem-presas. Ora, com um simples exemplo, demonstraremos a impossibilidade de condenação dessas empregadoras em ressarcir os cofres da Previdência Social. Um segurado com 25 anos de idade passa a receber benefício previdenciário decorrente de acidente do trabalho por invalidez no valor de R$ 1.000,00. Certamente, a Previdência Social tentaria obter o ressarcimento do empregador desse segurado, por meio de ação regressiva no valor aproximado de R$ 625.000,00, valor esse que não se coaduna com a capacidade financeira das empresas de pequeno porte, bem como com as microempresas, uma vez que, na maioria das vezes, ultrapassa até mesmo o faturamento bruto anual dessas corporações. Embora saibamos que a reparação está relacionada ao valor do dano e não à capacidade econômica da empresa, é preciso um olhar mais atento para o caso concreto na condenação dessas hipóteses de ação regressiva, um olhar de solidariedade social enquanto direito humano, buscando uma solução fraterna para o caso, conforme já citado na subseção 5.1, devendo, nas palavras de Ricardo Sayeg e Wagner Balera:

1) considerar todas as partes envolvidas, tendo em mente que são pessoas humanas, revestidas de dignidade;

2) buscar perceber a aflição em que se encontram, diante do caso concreto;

3) ouvir, com atenção, a versão e as razões de cada uma delas;

4) colocar-se na situação em que elas se encontram;

5) interagir com elas; e

6) aplicar a decisão mais fraterna, que será a que satisfaça a dignidade de todas as pessoas envolvidas, sendo misericordioso onde houver miséria.181

De que maneira resolveríamos a questão? Condenar essa empresa a ressarcir a Previdência Social implicaria, sem dúvida, o encerramento das suas atividades e a consequente demissão dos demais empregados, com a evidente frustração dos direitos trabalhistas. Há de se cumprir o verdadeiro objetivo das ações regressivas, oferecendo uma conotação pedagógica, ressaltando a sua política pública e, sobretudo, zelando pela tutela da saúde e da vida dos trabalhadores, por meio do estímulo à observância das normas de saúde e segurança laborais pelos mantenedores das condições ambientais de trabalho,

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condenando essas empresas de pequeno porte, bem como microempresas, em obrigação de fazer, ou seja, na adoção de medidas de proteção à saúde e segurança do trabalhador no meio ambiente laboral, além de um ressarcimento diferenciado, na medida de sua capacidade financeira, que deveria ser avaliada no caso concreto, ante o vácuo legislativo.

Não se trata de deixar que a vertente económica se sobreponha à vertente...

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