A função revisora dos tribunais: quid juris?

AutorFábio Rodrigues Gomes e Roberta Ferme Sivolella
CargoJuiz Titular da 41 a VT/RJ. Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ/Juiza Substituta do TRT da 1 a Região. Mestre e Doutora em Direitos Sociais pela UCLM-Universidad Castilla La Mancha
Páginas157-166

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1. Introdução

Instados a re?etir sobre a função revisora dos tribunais, a primeira ideia que nos ocorreu foi a daquele lugar-comum: error in procedendo ou error in judicando.

Dito de outro modo, enraizou-se na cultura jurídica brasileira o seguinte axioma: as sen-tenças proferidas pelo juiz monocrático devem submeter-se, real ou potencialmente, ao duplo grau de jurisdição. Isso deve ocorrer por um motivo bastante simples: a inexorabilidade do erro. Seja mediante erro procedimental, seja por meio do erro de conteúdo, o Poder Judiciário no Brasil erra. Mas o juiz singular, segundo opinião reinante, erra ainda mais1.

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De modo que não é outra a razão principal da sua inclusão em um sistema processual no qual o “controle” é a palavra-chave2. E tanto é assim, que muitos atribuem natureza constitucional à duplicidade obrigatória de instância3.

Dito isso, e não obstante a existência de sólidos argumentos contrários à constitucionalização do duplo grau de jurisdição4, o que pretendemos analisar nestas páginas é menos o seu patamar hierárquico-normativo e mais a sua signi?cação. A?nal de contas, qual deve ser a extensão hermenêutica da revisão recursal, especialmente no contexto de um Estado Democrático de Direito que prima pela “duração razoável do processo” e pela “efetividade da tutela judicial”?

No entanto, isso não é só. Ao discorrermos sobre a função revisora dos tribunais, também devemos levar em conta o seu aspecto pragmático ou consequencialista. Nos dias que correm, o índice de con?ança da população no Poder Judiciário não é dos melhores5. Entretanto, paradoxalmente, este mesmo Judiciário está abarrotado de antigos processos e submetido a avalanches de novos processos oriundos desta mesma população. Por que isso acontece? Será que a gigantesca quantidade de recursos e de possibilidade (quase certa) de modi?cação da decisão judicial de primeiro grau contribui para este fenômeno?

Estas são algumas questões que pretendemos abordar ao longo deste ensaio, na tentativa de construir algumas soluções e, quiçá, angariar alguns adeptos a elas, ou, ao menos, impelir os mais críticos a reverem suas opiniões.

2. O duplo grau de jurisdição segundo o STF e o TST

O acesso à justiça foi positivado como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro com o advento da CRFB/88. Mais precisamente, a Constituição de 1988 apresentou o seu art. 5º , XXXV, como resposta aos anseios por um Estado realmente democrático, diante de um contexto histórico de “inacesso” quase absoluto ao Poder Judiciário.

É necessário se ter em mente a realidade política e social brasileira para que se possa compreender porque este princípio foi consagrado e in?uenciou toda uma hermenêutica voltada à rati?cação da emancipação do Poder Judiciário. O mote agora seria a minoração das desigualdades sociais, ao menos no que tange à possibilidade de apreciação dos con?itos de interesses por uma autoridade supostamente legítima. E nem poderia ser diferente, em se considerando que a ciência jurídica é permeada de valores e modulada pelas experiências daqueles que o vivenciam. Fruto de uma atividade intersubjetiva ou discursiva, voltada para a solução racional dos problemas práticos que a?igem a sociedade, o direito oscila entre duas forças contrapostas: a necessidade de segurança/estabilidade/previsibilidade e a premência da aceitação/legitimidade/sentimento de justiça dos seus destinatários. Conforme bem salientou o jurista Miguel Reale:

A vida dos modelos jurídicos se desenvolve entre dois fatores operantes, um visando a sua preservação e permanência, outro reclamando a sua reforma ou substituição, o que assegura à experiência dos modelos jurídicos uma autocorreção, num processo de marcado feedback, isto é, de contínua regeneração ou realimentação, que se dá em função de mutações operadas no plano dos fatos, dos valores e do próprio ordenamento normativo global, repercutindo imediatamente nos domínios cambiantes da Hermenêutica jurídica.6

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Não há como negar que as decisões judiciais têm um importante papel neste processo evolutivo. E, justamente por isso, deve-se garantir que “erros” atribuíveis ao julgador primário não inviabilizem a garantia de efetivação do direito postulado pelo cidadão. Em tese, esta garantia se desdobraria no duplo grau de jurisdição (e no consequente poder revisional dos Tribunais) sob o aspecto material do princípio do acesso à justiça. Dito de outro modo: não só declarar o direito, mas satisfazê-lo, no sentido de desenvolver ferramentas para viabilizar tal satisfação de maneira mais justa.

No entanto, isso não é só. Aproximar a normatividade da efetividade, ou, em outras palavras, buscar a melhor adequação dos acontecimentos do mundo empírico às prescrições normativas o?ciais passa a ser a tônica do julgamento. Desta forma, o juiz não mais se apresenta como um ator “contemplativo”7 ou mero descobridor passivo da mens legislatoris, mas, sim, como um partícipe do mundo da vida, testemunha das mazelas sociais, um sujeito consciente do papel “garantista” de suas decisões8. Este novo paradigma “faz do Estado instrumento a serviço da proteção de direitos, que, derivados da dignidade da pessoa humana, surgem como valores exteriores à ordem jurídica, desempenhando em face dela uma permanente função crítica”9.

Portanto, o viés material do duplo grau de jurisdição (busca da melhor solução), somado à nova inserção do Judiciário dentro do chamado “constitucionalismo democrático” ou “neoconstitucionalismo”, transformou a possibilidade de revisão das decisões de primeiro grau em verdadeira exigência institucional. Indo além, ao privilegiar-se a suposição de ocorrência de “error in judicando” ou “error in procedendo”, acrescentou-se a previsão de uma terceira instância para veri?cação de ocorrência de violação de lei federal ou dispositivo consitucional, e de interpretação de lei federal, estadual ou norma coletiva diversa da “jurisprudência consolidada” (art. 896 da CLT).

E, para culminar, depois de ultrapassados todos os degraus da Justiça Federal especializada, temos, também, a possibilidade de submissão da demanda à análise do Supremo Tribunal Federal, por meio do recurso extra-ordinário, nas hipóteses de análise de violação à Constituição ou à Lei Federal (art. 102 da CRFB/88). Isso sem esquecer da previsão de outros recursos de diversas naturezas, inclusive de ordem regimental, hábeis a corrigir os “erros” da instância a quo, bem como da rotineira formalização de Súmulas como meio de conter o impulso criativo (e supostamente equivocado) dos juízes singulares.

A bem de ver, o Poder Legislativo seguiu este mesmo ideário ao trazer a previsão da Súmula vinculante, mediante inserção do art. 103-A na Constituição. Com a EC n. 45/2004, permitiu-se ao STF “de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa o?cial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. A mesma Emenda trouxe, ainda, a alteração do art. 102 da CRFB/8810, a?rmando que a existência da

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repercussão geral da questão constitucional suscitada é requisito necessário para o conhecimento de todos os recursos extraordinários, inclusive em matéria penal, sendo “preliminar formal” de admissibilidade recursal11.

Segundo o texto do diploma processual civil, haverá repercussão geral “sempre que o recurso impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal”, sendo que sua análise depende da “existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”12.

Sob raciocínio similar, e mesmo antes de uma reforma constitucional de tamanha envergadura, o art. 896-A da CLT já determinava o exame prévio e necessário ao conhecimento do recurso, a ?m de que fosse veri?cado “se a causa oferece transcendência com relação aos re?exos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”13. O conteúdo demasiadamente subjetivo trazido por este preceito represou a sua autoaplicabilidade e, assim, estimulou a visão de necessidade de regulamentação14. Logo, apesar de ter constituído uma resposta ao desmesurado número de recursos que tramitam nas Cortes superiores, a interpretação sedimentada pelo TST acabou por esvaziar o objetivo primário desta inovação: a efetividade e celeridade do provimento jurisdicional.

De fato, a construção desenvolvida pela jurisprudência acabou por confundir a discricionariedade judicial com a arbitrariedade. Decerto, determinado grau de discricionarie-dade faz-se ínsito a toda e qualquer atividade judicante, eis que a abertura semântica dos enunciados normativos acarreta uma escolha inexorável do magistrado. Uma deverá ser a sua opção, dentre as várias alternativas possíveis. Entretanto, esta liberdade de escolha não é absoluta. Longe disso, ela é altamente limitada, tanto pelos parâmetros linguísticos pré-?xados pelo ordenamento jurídico-processual, como também pelo imperativo constitucional de fundamentação, previsto no art. 93, IX da CF/88. O dever de justi?car sua decisão coloca um severo obstáculo às opções hermenêuticas movidas por idiossincrasias ou frivolidades do juiz desavisado.

Dito isso, caberia ao Judiciário dar o passo adiante e, de modo vanguardista, manusear o conceito de transcendência social, isto é, o da “existência de situação extraordinária de discriminação, de comprometimento do mercado de trabalho ou de perturbação notável à harmonia entre capital e trabalho, ...

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