Função do Direito do Trabalho

AutorAmauri Mascaro Nascimento/Sônia Mascaro Nascimento
Páginas88-100

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1. O sistema de valores do direito do trabalho

Qual é o sistema de valores que o direito do trabalho pretende realizar? O tema, como observam os autores espanhóis Martín Valverde, Gutiérrez e Murcia, refere-se aos objetivos ou propósitos do ordenamento trabalhista, tratando, portanto, de saber qual é o papel que ele desempenha na sociedade, e que é, para os mesmos autores, intuitivo no seu início (a defesa da vida, da saúde, da integridade física e de outros bens jurídicos do trabalhador), compensatório diante da desigualdade econômica do operário, construtivo do sistema normativo pela atuação direta das associações sindicais na negociação coletiva, e uma finalidade produtiva de organização empresarial da força de trabalho para o desenvolvimento econômico.

Há várias respostas, independentes ou intercomunicantes, tudo dependendo da compreensão que o intérprete possa ter da nossa realidade.

Estamos num terreno cheio de dificuldades, polêmico e sobre o qual não há uniformidade de conclusões. Pesam diversos fatores de ordem ideológica ou corporativista e interesses de natureza econômica, política ou social.

A — FUNÇÃO TUTELAR. Para alguns, o direito do trabalho cumpre uma função tutelar do trabalhador, protegendo-o diante do poder econômico, para que não seja por este absorvido; tutela que se faz mediante leis que o Estado elabora ou poderes reconhecidos aos sindicatos restritivos da autonomia individual. Não há dúvida sobre isso, porque o direito do trabalho nasceu para dar proteção ao empregado perante o empregador. A CLT cumpriu, assim, importante missão educativa, a par de ter gerado o clima propício à industrialização do País, sem conflitos trabalhistas violentos (SÜSSEKIND, 2002).

B — FUNÇÃO CONSERVADORA OU OPRESSORA DO ESTADO. Outros sustentarão que o direito do trabalho é, ao contrário, expressão da vontade opressora do Estado, vendo nele nada mais que uma força de que o Estado sempre se utilizou, desde os tempos em que se falava em legislação industrial, para sufocar os movimentos operários. Nesse caso, as leis trabalhistas não teriam outra função senão a de aparentar a disciplina da liberdade; em verdade, a de restringir

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a autonomia privada coletiva e impedir as iniciativas que, embora legítimas, possam significar de algum modo a manifestação de um poder de organização e de reivindicação dos trabalhadores. Para comprovar opiniões divergentes, basta citar algumas: A CLT incorpora “dispositivos que expropriam do trabalhador a capacidade de decisão e controle sobre a sua vida”, pois “no seu espírito e no processo de seu implemento, carrega as marcas das lutas operárias, mas também as de sua derrota” (MUNAKATA, 1981). “Nessas condições, simultaneamente à legislação social promulgada no Governo Vargas, entra em gestação a ideologia do trabalhismo. O Estado, à sua moda, procuraria apropriar-se da palavra operária, reelaborando-a, tanto quanto possível, ao sabor dos interesses dominantes” (PARANHOS, 1999).

C — FUNÇÃO ECONÔMICA. Outros ainda dirão que o direito do trabalho visa à realização de valores econômicos, de modo que toda e qualquer vantagem atribuída ao trabalhador deve ser meticulosamente precedida de um suporte econômico, sem o qual nada lhe poderá ser atribuído.

Dentro dessa linha, estão aqueles que consideram o direito do trabalho parte do direito econômico. O direito econômico é matéria pluridisciplinar, analisando, dogmaticamente, as novas instituições jurídicas no campo das relações de direito privado (VARELLA, 1977).

D — FUNÇÃO SOCIAL. Outros pensarão no direito do trabalho como meio de realização de valores sociais e não de valores econômicos, em especial de preservação de um valor absoluto e universal, a dignidade do ser humano que trabalha. “Essa norma social de emprego, que alcança seu auge nos anos 1970, caracteriza-se por uma forte padronização: relação assalariada, estável, com jornada integral e com perspectiva de promoção profissional. Além disso, o emprego é protegido pela legislação social e está regulado basicamente por um contrato coletivo de trabalho — firmado, geralmente, por organizações sindicais e empresariais de caráter nacional — que define as condições de trabalho em cada ramo da indústria. A definição de regras de caráter relativamente homogêneo para o mercado de trabalho gerou grande estabilidade na regulação do emprego e criou condições para uma concorrência empresarial mais equilibrada” (SCHULTZ, 2001).

E — FUNÇÃO COORDENADORA. Reúne aqueles que entendem que o direito do trabalho destina-se a coordenar os interesses entre o capital e o trabalho.

Como expressão dessa diretriz, sustentam alguns autores que a função do direito do trabalho não é a proteção dos trabalhadores, mas a coordenação entre o capital e o trabalho, ainda que por meio de medidas nem sempre caracterizadas como protecionistas ou tutelares (Fonte: Lei Biagi, da Itália (2003) e sistema anglo-saxônico).

No mesmo sentido, põe-se a concepção dos doutrinadores que admitem um direito do trabalho de crise, restritivo, conquanto transitoriamente, das vantagens normalmente asseguradas aos trabalhadores, sempre que a situação da economia do país o exigir.

2. Flexibilização do direito do trabalho

Na Europa, com reflexos no Brasil, diante da crise do petróleo de 1973, a necessidade do desenvolvimento das comunidades econômicas internacionais, o avanço da tecnologia e o desemprego levaram à revisão de algumas leis trabalhistas que influíram na formação de propostas

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destinadas a reduzir a rigidez de algumas delas, para que não dificultassem a criação de novos tipos de contratos individuais de trabalho que permitissem o aproveitamento de trabalhadores desempregados, como o contrato a tempo parcial, o contrato de reciclagem profissional por prazo determinado e a ruptura dos contratos de trabalho motivada por causas econômicas, técnicas ou de reorganização das empresas.

Deu-se o nome a essas ideias de flexibilização do direito do trabalho e, segundo seus defensores, as leis trabalhistas, não devem dificultar o desenvolvimento econômico e devem compatibilizar-se com as exigências da economia de mercado e com a valorização das negociações coletivas.

A Organização Internacional do Trabalho — OIT, na obra Negociar la flexibilidad (OZAKI, 2000), conceitua emprego flexível como toda forma de trabalho que não seja a tempo completo e não tenha duração indefinida. Inclui o tempo parcial, o temporário — que corresponde ao nosso contrato a prazo determinado —, o eventual, o emprego para qualificação profissional, como a aprendizagem, o contrato estacional — que é o nosso contrato de trabalho sazonal ou para atividade transitória.

Há doutrinadores europeus, como Giuseppe Pera (Itália) e Couturier (França), que sustentam que é indispensável conjugar o máximo de justiça social possível com a garantia da eficiência e do desenvolvimento econômico. Admitiu-se, na Europa, um direito do trabalho de crise ou de emergência.

Que é flexibilização do direito do trabalho? É, portanto, o afastamento da rigidez de algumas leis para permitir, diante de situações que a exijam, maior dispositividade das partes para alterar ou reduzir as condições de trabalho. Mas a flexibilização desordenada do direito do trabalho faria dele mero apêndice da Economia e acabaria por transformar por completo a sua fisionomia originária, uma vez que deixaria de ser uma defesa do trabalhador contra a sua absorção pelo processo econômico, para ser preponderantemente um conjunto de normas destinadas à realização do progresso econômico, atritando-se com a sua finalidade, que é a proteção do trabalhador diante da sua inferioridade econômica no contrato de trabalho.

Em Portugal, Xavier (1993) mostra que o direito do trabalho passa por fases diferentes: a da conquista, a promocional e a de adaptação à realidade atual, com as convenções coletivas de trabalho estipulando cláusulas in melius e in pejus, na tentativa de dar atendimento às condições de cada época e de cada setor.

No Brasil, as leis foram flexibilizadas, inicialmente, em 1966, com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, que facilitou a dispensa dos empregados optantes para os quais foi extinta a indenização de dispensa, substituída pelos depósitos mensais que o empregador faz na conta do empregado no fundo e pela estabilidade no emprego que antes adquiriam ao completar dez anos no mesmo emprego; em 1974, a autorização legal para o trabalho temporário; em 1988, a Constituição permitiu a redução salarial por acordo ou convenção coletiva, a participação nos lucros ou resultados da empresa desvinculada dos salários e a lei criou o contrato por prazo deter-minado para admissão de pessoal acima do quadro fixo da empresa; em 1989, foram eliminadas proibições para o trabalho da mulher em horário noturno, extraordinário, em ambiente com insalubridade ou periculosidade, em subterrâneos, minas, subsolos e obras de construção civil; em

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1994, os reajustes salariais anuais coletivos, que eram indexados, foram transferidos para a livre negociação coletiva; no mesmo ano, a lei passou a dispor que não configura vínculo de emprego o trabalho de cooperados entre...

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