From Rubens Paiva to Amarildo. And "Nego-Sete"? Military regime and human rights violations in Brazil/De Rubens Paiva a Amarildo. E "Nego Sete"? O regime militar e as violacoes de direitos humanos no Brasil.

AutorOliveira, Luciano
CargoResena de libro

... sua primeira tarefa e [...] reconhecer os fatos incomodos, ou seja, aqueles fatos que sao incomodos para a sua opiniao partidaria; e para todas as opinioes partidarias--inclusive a minha--ha fatos extremamente incomodos.

Max Weber, A Ciencia como Vocacao

Comeco com "Nego Sete",* um nome desconhecido das "nossas novas geracoes", como dizia Chico Buarque num inesquecivel sucesso do ano de 1985, Vai Passar, um samba flamejante comemorando o fim da ditadura militar e o comeco de um novo tempo. Mas isso foi bem depois da morte de "Nego Sete", alcunha de Antonio de Souza Campos, delinquente da periferia de Sao Paulo assassinado em novembro de 1968 pelo delegado Sergio Paranhos Fleury e sua equipe na porta de sua casa, numa missao de vinganca pela morte de um policial assassinado num confronto com uma quadrilha da qual ele supostamente fazia parte. "Nego Sete" foi sumariamente executado por "uma chuva de balas". Seu cadaver, "enrolado num cobertor e carregado [...], foi encontrado no dia seguinte na estrada [...] que vai para Mogi das Cruzes, nas imediacoes da cidade de Sao Paulo". Sua companheira, que a linguagem da epoca chamava de "amasia", foi tambem levada pelos policiais que tinham acabado de executar seu amasio--"e dela jamais teve alguem noticia ou rastro do seu destino", como informa um bravo promotor publico paulista de entao, Helio Bicudo, que, designado em julho de 1970 para se ocupar das denuncias envolvendo o "denominado Esquadrao da Morte" em Sao Paulo, levou a serio uma missao que seus superiores preferiam cobrir rapidamente com panos quentes (Bicudo, 1977, pp. 45-48). As vezes, as pressoes extravasavam os corredores aveludados dos palacios. Seis meses depois da sua designacao, em dezembro de 1970, num programa de televisao, ninguem menos que o proprio governador de Sao Paulo, Abreu Sodre, desancou Helio Bicudo negando pura e simplesmente a existencia do Esquadrao paulista:

Isso e sensacionalismo: o que existe e como existe em qualquer parte do mundo: a policia precisa se defender em termos de nao morrer para que nos nao morramos nas maos dos marginais. [...] Entao quando [...] vai um grupo de policiais, quer da militar ou da civil, para prender um homem perigoso como esse, e evidente que e um tiroteio ferrado em cima [...] do criminoso. E dai aparecer com muitos tiros. Entao, ai inventam que fazem aquilo em termos de presunto, essas coisas (idem, p. 126).

Naquele momento, ja estavamos sob a vigencia do Ato Institucional n.5 e o delegado Fleury, que tinha um reconhecido know-how no assunto, foi "chamado pelos orgaos de seguranca para a luta contra o terrorismo". E saiu-se bem: "chegou a ser considerado, pelas Forcas Armadas, como heroi nacional, condecorado, dentre outros, pelo Ministerio da Marinha, com a medalha 'Amigo da Marinha'" (idem, p. 51). Quando morreu, em 1[degrees] de maio de 1979, num mal explicado acidente no mar do litoral norte de Sao Paulo, seu desaparecimento foi diversamente recebido: de um lado, velorio com pompas oficiais; de outro, em Sao Bernardo do Campo, regozijo numa celebracao pelo dia do trabalho: "Estamos comemorando tambem a morte do maior torturador do pais", vibrava o orador no palanque (Souza, 2000, p. 15). A trajetoria de Sergio Paranhos Fleury--o mais notorio e emblematico torturador da epoca do regime militar, mas sempre oficiando na policia civil de Sao Paulo--serve de ilustracao para o argumento que quero desenvolver nesse texto: a de que as brutais violacoes de direitos humanos perpetradas ainda hoje pela policia brasileira (torturas, execucoes e mesmo "desaparecimentos") nao sao, como quer uma versao corrente no Brasil, uma "heranca maldita" daqueles tempos. A questao, que nao e recente, retornou ao debate publico quando, em 2013, ocorreu o famoso "caso Amarildo".

Foi num 14 de julho, uma data emblematica. Na Franca, ela e patrioticamente comemorada e, no resto do mundo, lembrada por ter sido nesse dia que, no longinquo ano de 1789, revoltosos parisienses promoveram o assalto a uma velha prisao transformada em fortaleza, num episodio que ficou conhecido como a Queda da Bastilha. Foi o inicio da Revolucao Francesa, especie de marco inaugural dos tempos modernos. Logo depois, a Assembleia Nacional francesa iria produzir a Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadao, em cujo artigo 7[degrees] se le: "Nenhum homem pode ser indiciado, preso ou detido exceto em casos determinados pela lei e segundo as formas que a lei prescreve". O Brasil, desde a Carta Politica do Imperio de 1824, repete dispositivos desse jaez em todas as suas constituicoes. Mas exatos duzentos e vinte quatro anos depois da tomada da Bastilha, a policia do Rio de Janeiro, no dia 14 de julho de 2013, prendeu, torturou, matou e fez desaparecer o corpo de Amarildo, um pobre trabalhador brasileiro que tinha nome de bicampeao mundial de futebol. Os novos tempos, anunciados pelo espetacular Vai Passar, sem tortura e sem "desaparecimentos", vieram. Mas nao para todos.

Amarildo foi mais um "desaparecido" nas maos da policia brasileira. Diferentemente daqueles sumidos durante os anos mais duros da ditadura militar, esses outros sao de todos os tempos e regimes, formam incontavel legiao e sao obscuros. Deles, geralmente nem o nome fica. Desse, ficou: Amarildo de Souza, 47 anos, mulato, morador da Rocinha, ajudante de pedreiro. Um tipico trabalhador brasileiro. Preso, foi levado a uma Unidade de Policia dita Pacificadora. Suspeito de esconder armas do trafico de drogas, foi interrogado com os metodos reservados para a classe social a que pertencia: levou socos e pontapes, e passou por sessoes de asfixia com saco plastico. (1) O "interrogatorio" de Amarildo--como provavelmente aconteceu com o ex-deputado Rubens Paiva em 1971, e o jornalista Vladimir Herzog em 1975--desandou e o ajudante de pedreiro morreu. Foi mais um "acidente de trabalho". No contexto do caso Amarildo, uma pergunta foi recorrentemente colocada: o que ele podia nos ensinar sobre os anos de chumbo? Ou, de forma inversa: o que as brutais violacoes de direitos humanos daqueles anos tem a ver com o caso Amarildo?

Uma resposta que tem sido dada e a de que tem tudo a ver. Marcelo Rubens Paiva, filho do "desaparecido" Rubens Paiva, em entrevista ao jornal El Pais (03/04/14), defrontou-se com a pergunta: "A morte, ou desaparecimento de pessoas comuns como Amarildo e uma das herancas da ditadura?" Ele nao titubeou na resposta: "E". Noutro registro, identica opiniao pode ser encontrada nos meios academicos, dos quais destaco, a titulo de exemplo, uma publicacao coletiva de alguns anos atras sobre "o que resta da ditadura" (Teles e Safatle, 2010). Uma hipotese perpassa toda a coletanea: a ausencia de uma autentica "justica de transicao" entre nos--ja que os torturadores que fizeram o "trabalho sujo" na epoca do regime militar foram acobertados pela Lei de Anistia--e responsavel pela continuidade das praticas daquela epoca depois do processo de redemocratizacao. Para os organizadores da coletanea, "a incapacidade de reconhecer e julgar os crimes de Estado transforma-se em uma especie de referencia inconsciente para acoes criminosas perpetradas por nossa policia, pelo aparato judiciario, por setores do Estado" (pp. 10-11--italicos meus).

Este artigo investe numa hipotese divergente. Considero que e hora de assumir, talvez com um grao de sal e outro de ousadia, a hipotese de que a versao da "heranca maldita" repousa mais na retorica do que na analise cuidadosa dos fatos; de que o caso Amarildo praticamente nada nos ensina sobre o regime militar, e que este e sua ferocidade, na via inversa, nao servem para iluminar o evento na Rocinha. Minha hipotese e a de que as torturas, as execucoes e os desaparecimentos perpetrados pelo regime dos generais nao antecipam o que aconteceu no Rio de Janeiro em 14 de julho do ano da graca de 2013, porque o que ai aconteceu acontecia antes e durante, e continuou acontecendo depois que o general Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palacio do Planalto em 1985. Como veremos, ja havia ferocidade bastante na sociedade brasileira dos dourados anos 50 e comeco dos anos 60 para, com ou sem ditadura militar, produzir maquinas mortiferas estatais como a ROTA de Sao Paulo e o BOPE do Rio de Janeiro; semiestatais, como os esquadroes da morte; e civis como os "justiceiros". Se a ditadura reforcou essa ferocidade, trata-se, evidentemente, de uma hipotese razoavel. Mas se a ditadura acabou ha mais de trinta anos, por que essa ferocidade lhe sobreviveu? Em minha opiniao, porque lhe antecedeu e, indiferente a redemocratizacao dos anos 1980, lhe sobreviveu.

Trata-se de uma hipotese, e verdade, a exigir validacao um tanto dificil de ser obtida--para falar no jargao positivista. Mas a tese contraria, a da "heranca maldita", tambem nao e facil de ser validada. Ela beneficia-se, a meu ver, de uma adesao quase espontanea, facilitada por nossa aversao ao regime dos generais. Ela e, alem disso, reconfortante. Afinal, se a violencia policial brasileira deita raizes no regime de 1964, a democracia brasileira, por que tanto lutamos, nao e responsavel por ela. Mas se desde o inesquecivel ano de 1984--o das "Diretas, Ja ! " e da eleicao de Tancredo Neves para a presidencia da republica--vivemos, sem solucao de continuidade, mais de trinta anos de democracia, ja nao seria tempo, se a tese da "heranca maldita" fosse correta, de termos dela nos livrado? Minha tese, sem duvida, minimiza a possivel influencia que a impunidade dos torturadores do regime teve sobre a sequencia da historia. Mas, de novo, enfatizo: a pratica de torturar e de executar sumariamente (e eventualmente fazer desaparecer) delinquentes, no Brasil, antecede de muito o regime militar.

Resta, e claro, a questao de saber se, e em que medida, a impunidade dos torturadores do regime alimentou e incrementou essas praticas. Mas, como quer que seja, dificilmente alguem discordara da tese de que as violacoes de direitos humanos durante o regime militar seriam, para usar...

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