From autopoiesis to legal system hypercycle/ Da autopoiese ao hiperciclo do sistema juridico.

Autorde Macedo Menna Barreto, Ricardo

"Penso na vida. Todos os sistemas que poderei edificar jamais igualarao os meus gritos de homem ocupado em refazer a sua vida ... Estas forcas informuladas que me assaltam deverao necessariamente ser um dia acolhidas pela minha razao, deverao instalar-se no lugar do elevado pensamento, essas forcas que do exterior tem a forma de um grito".

  1. Artaud (1)

Introducao

As palavras de Artaud encerram uma admiravel sintese poetica envolvendo a ideia de sistema. Nao obstante, na exposicao do pensamento dos autores escolhidos para o presente artigo (Niklas Luhmann e Gunther Teubner) nao encontraremos propriamente "gritos de homens ocupados em refazer suas vidas", mas sim de teoricos (pre)ocupados em edificar "sistemas", cujas concepcoes epistemologicas nos acompanham, debatem-se e se transformam ate os dias de hoje.

O termo sistema pressupoe, em sentido comum, certa ideia de "organizacao", de "ordem" ou, ate mesmo, de "totalidade". Para Menezes Cordeiro (2), a ideia de sistema e a base de qualquer discurso cientifico no Direito. A necessidade de um minimo de racionalidade na dogmatica (Werner Krawietz), de identificacao das instituicoes com "sistemas de acoes e interacoes" (Ota Weinberger, Talcott Parsons), ou mesmo do proprio Direito como "sistema de comunicacoes" (Luhmann), entre outros, sao aspectos que depoem a favor da ideia de sistema e da propria existencia do Direito (3).

Mario Losano, em sua celebre obra acerca das nocoes de sistema e estrutura no Direito, explica-nos como, tradicionalmente, no pensamento juridico, a nocao de "sistematicidade" de uma exposicao coincidia com sua cientificidade (4). Para este jurista italiano, a passagem do seculo XIX para o XX desvela oposicoes entre os sistemas tradicionais e os modernos. No primeiro modelo, denominado por Losano de sistema oitocentista classico, temos como objeto a estrutura do direito, movendo-se no ambito da teoria do direito e cujo interesse centra-se na ideia de completude; serve, assim, ao conhecimento do direito. Por conseguinte, tem-se o sistema novecentista, que possui por objeto a funcao do direito, movendo-se no ambito do direito positivo e tendo por interesse a lacuna, servindo, assim, a aplicacao do direito (5).

E geralmente bem conhecido o fato que o ideal de ciencia, referido por Losano, foi levado bastante a serio, no seculo XX, por Hans Kelsen (1881-1973) (6). Delineando perspectivas que vao alem da ideia de sistema normativo de Kelsen, apresentaremos, no presente artigo, aspectos dos pensamentos de Niklas Luhmann e Gunther Teubner. A metodologia utilizada para estruturar a presente reflexao foi a perspectiva construtivista elaborada pela Teoria dos Sistemas Sociais Autopoieticos, nomeadamente a partir de estimulos teoricos oriundos das reflexoes de Luhmann e Teubner. A tecnica/metodo de pesquisa utilizado na presente abordagem foi bibliografica. Entende-se que as observacoes sistemicas destes autores propoe uma alternativa viavel ao problema epistemologico do fechamento/abertura do sistema juridico a partir da concepcao de autopoiese (Luhmann) e, notadamente, de hiperciclo (Teubner), superando assim o ideal kelseniano de um sistema normativo fechado.

O presente artigo se divide em duas secoes. Na primeira, (1) "O Sistema Autopoietico de Niklas Luhmann", veremos como este jus-sociologo alemao estrutura seu pensamento a luz de estimulos construtivistas para conceber um sistema simultaneamente aberto e fechado (autopoietico). Por conseguinte, em (2) "O Sistema Juridico Hiperciclico de Gunther Teubner", veremos como Teubner dara continuidade as teorizacoes luhmannianas, forjando uma observacao sociologico-juridica propria que revisita categorias sistemicas (como hiperciclo e policontexturalidade), as quais nos possibilitam repensar sofisticadamente a autorreproducao do sistema juridico em um cenario de diferenciacao funcional e de crescente complexidade social.

  1. O sistema autopoietico de Niklas Luhmann

    Niklas Luhmann (1927-1998) e responsavel por uma das mais sofisticadas teorizacoes sociologico-juridicas contemporaneas. Foi com a incorporacao de Luhmann a Faculdade de Sociologia da Universidade de Bielefeld (Alemanha), em 1969, que teve inicio seu ambicioso projeto de pesquisa--que levaria praticamente tres decadas para ser concluido--em torno da elaboracao de uma teoria da sociedade (7).

    Influenciado, inicialmente, pelos estudos do sociologo americano Talcott Parsons (8), percebe-se, a partir de meados da decada de 1980, a conquista da autonomia das reflexoes de Luhmann em relacao ao pensamento de Parsons (9). A obra que marca definitivamente sua autonomia intitula-se "Sistemas Sociais" (Soziale Systeme, 1984) (10). Nessa obra, fortemente influenciado por dois biologos cognitivos chilenos--Maturana Romesin e Francisco Varela (11)--, Luhmann funda as bases de sua teoria social autopoietica, redefinindo certos aspectos anteriores de seu pensamento (12).

    Com efeito, a teoria dos sistemas sociais autopoieticos de Niklas Luhmann erige seu aparato conceitual a partir de uma diferenca diretriz: sistema/ambiente. Para Luhmann, "uma abordagem teorica que tem por referencia a diferenca e mais fecunda do que a que tem por referencia o objeto" (13). Por isso, a observacao de sistemas nao equivale, absolutamente, ao "estudo de objetos" (sociais, por exemplo), mas sim a observacao de diferencas. Para descrever-se a sociedade a partir de uma diferenca, precisa-se indica-la, isto e, partir-se de uma distincao. O conceito de distincao foi buscado por Luhmann no calculo matematico da forma de Spencer-Brown.

    Na logica das formas de Spencer-Brown, tres sao os valores que constituem uma operacao de reproducao: a indicacao (ou espaco marcado), o espaco nao marcado e a operacao de separacao do espaco marcado do nao marcado (14). A partir dai, a ideia de forma pode ser vista como fruto mesmo de uma operacao, na qual, simultaneamente, faz-se uma distincao e uma indicacao, de modo que "uma forma e sempre uma forma com dois lados" (15). Portanto, na observacao sociologica, teremos indicada, de um lado da forma, a sociedade, enquanto do outro lado (ou seja, no espaco nao marcado) teremos os sistemas psiquicos-organicos (16).

    Partindo dessa diferenca motriz Luhmann observa a sociedade como um sistema social autopoietico, que se reproduz comunicativamente em face de um ambiente altamente complexo e contingente. Por contingente podemos entender "aquilo que nao e nem necessario nem impossivel, senao meramente possivel" (17). Nao obstante, ante a crescente complexidade social, a contingencia simples se elevara a dupla contingencia.

    A dupla contingencia surge como um modo de explicar e incorporar o inesperado, o imprevisto, isto e, o diferente, nas relacoes sociais. Assim sendo, mesmo diante de estruturas aparentemente estabilizadas de expectativas sociais, o problema da contingencia continuara sempre existindo. Para Jean Clam, a pergunta pela contingencia social "e a pergunta pela capacidade flutuante que uma sociedade possui de integrar em determinado momento aquilo que ela ate entao havia excluido" (18).

    Nessa perspectiva, pode-se afirmar que e a sociedade que traca os limites da complexidade social, limitando o universo de suas proprias possibilidades e eventos. Vista como um sistema social autopoietico, a sociedade tem por elementos tao somente comunicacoes. Ou seja,

    "a materia-prima da sociedade, o que permite indicar e, ao mesmo tempo, distinguir a sociedade do ambiente que a envolve, a operacao que faz a sociedade funcionar, tudo isso responde pelo nome de comunicacao" (19).

    Para Luhmann, a comunicacao e a sintese entre informacao, ato de comunicacao e compreensao, sendo, portanto, o elemento basilar, ou celula, da sociedade (20).

    Em reflexao sobre a comunicacao sistemica, Celso Campilongo afirma que:

    "o pressuposto para a nova comunicacao e a comunicacao anterior. A comunicacao precedente [...] poderia ter sido diversa do que foi. A comunicacao sucessiva tambem. Trata-se de um processo contingente de conexao de eventos altamente improvaveis". (21)

    Nessas conexoes efetua-se a autopoiese social, a qual deve ser observada conjuntamente com os conceitos de comunicacao e producao, pois conforme Luhmann:

    "o conceito de producao (ou melhor de poiesis) sempre designa somente uma parte das causas que um observador pode identificar como necessarias; a saber, aquela parte que pode se obter mediante o entrelacamento interno de operacoes do sistema, aquela parte com a qual o sistema determina seu proprio estado" (22).

    Logo, reproducao significa determinacao de estados do sistema como ponto de partida de toda determinacao posterior de estados do sistema. A producao e a reproducao exigem, pois, que se distinga entre condicoes internas e externas, o que faz com que o sistema tambem reproduza sua unidade (ou, em outras palavras, seus proprios limites). Por isso, autopoiese significa: producao do sistema por si mesmo (23).

    Passadas tais consideracoes iniciais, vejamos, brevemente, alguns dos caracteres constitutivos do sistema juridico na perspectiva autopoietica de Luhmann. Com efeito, em tal perspectiva, nao vale a pena polemizar acerca da "natureza" ou do "ser" do Direito, pois aqui a pergunta decisiva e mesmo sobre os limites do Direito. Sistemicamente, o Direito aponta quais sao os seus limites, determinando o que e que pertence ao sistema e o que nao pertence (24). Ou, em outras palavras, e o proprio Direito que produz todas as distincoes e descricoes que utiliza. A unidade do Direito nao e mais que o fato de sua auto-producao (autopoiese), de modo que a sociedade deve ser tratada como o ambiente social que possibilita e suporta esta auto-producao (25).

    Conforme Juan Antonio Garcia Amado, a funcao do Direito, na perspectiva luhmanniana, e "'a estabilizacao contrafatica de expectativas de comportamento', de modo que as normas juridicas seriam 'expectativas de comportamento contrafaticamente estabilizadas' [...]. E para assegurar essas expectativas nao...

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