Frio. Novos Contornos para um Antigo Problema

AutorHeiler Ivens de Souza Natali
Páginas95-104

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1. Introdução

Há décadas as condições de trabalho em frigoríficos vêm expondo uma verdadeira legião de trabalhadores a uma série quase interminável de agentes ostensivos de risco de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. Dentre esses riscos, classicamente se encontram o ritmo intenso, a insuficiência de pausas para descanso, o frio, as máquinas e equipamentos sem proteção, as exigências de adoção de posturas inadequadas, o emprego de força excessiva, o ruído, as vibrações geradas pelas ferramentas, as jornadas de trabalho medievais, o trabalho permanentemente em pé, a umidade excessiva, a adoção de condutas médicas manifestamente inadequadas (quase criminosas), a sujeição a riscos biológicos diversos, as atividades repetitivas, a monotonia do trabalho etc.

O preço cobrado pela atuação negligente dos frigoríficos de um modo geral historicamente vem sendo pago por empregados que, quando não perdem a própria vida ou têm partes do corpo amputadas, padecem de distúrbios osteomusculares (tendinites, tenossinovites, bursites, problemas de coluna) ou são acometidos de transtornos mentais.

Em que pese a subsistência, ainda nos dias de hoje, desse cenário macabro, os anos de 2012 e 2013 marcam conquistas históricas para as mais de 850 mil pessoas que trabalham em frigoríficos. Essas conquistas não estão situadas no campo econômico. Afinal, os empregados em frigorífi- cos brasileiros ainda continuam ganhando menos que um trabalhador americano recebia oitenta anos atrás1. Referidos avanços dizem respeito à edição, em 2012, da Súmula n. 438 do TST (que pacifica no meio jurídico a controvérsia em torno da aplicação das pausas para recuperação térmica prevista no art. 253 da CLT) e a publicação, nesse ano de 2013, da NR-36 do MTE (que estabelece os parâmetros mínimos de saúde e segurança do trabalho nas indústrias de abate e processamento de carnes).

Tanto a Súmula n. 438 do TST, quanto, em diversas disposições, a NR-36, estabelecem mecanismos de tutela à saúde dos empregados expostos ao frio no interior dos frigoríficos.

Diante desse conjunto, seria razoável presumir que o tema, na medida da pacificação jurídica em torno da sua aplicabilidade em ambientes artificialmente frios e do seu disciplinamento em

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Norma Regulamentar, discutida e aprovada em modelo tripartite, com intensa participação das empresas do setor, estivesse definitivamente equacionado. Todavia, não é assim.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 2.363/20112, de autoria do Deputado Silvio Costa, que pretende, segundo suas próprias palavras, "acabar com a Súmula n. 438 do TST".

Referida manifestação se deu no âmbito de audiência pública convocada pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados realizada no dia 22 de maio de 2013 e reascendeu a polêmica em torno dos males causados pela exposição ao frio.

Este artigo tem por objetivo expor tecnicamente as razões pelas quais a sujeição ao frio em decorrência do trabalho demanda a fruição de pausas de recuperação térmica.

2. Tutela jurídica da saúde em razão da exposição ao frio

As principais normas brasileiras de tutela da saúde em locais de trabalho com exposição ao frio estão situadas na CLT, em Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, as chamadas NRS, e em Instrução Normativa do INSS.

A Instrução Normativa n. 98/2003 do INSS3, a rigor, não objetiva propriamente a tutela da saúde em decorrência da exposição ao frio, uma vez que é voltada para a prevenção de acometimento de LER/DORT, mas, transversalmente, acaba por assim fazê-lo, ao reconhecer expressamente o frio como um agente de risco para o surgimento de transtornos osteomusculares e orientar para adoção de mecanismos de controle desses agentes como mecanismo de prevenção ao adoecimento.

No âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, são duas as Normas Regulamentadoras que dispõem acerca do Frio. São elas as NRS 29 e 36.

A NR-29, que trata de Segurança e Saúde no Trabalho Portuário, estabelece, em seu item 29.3.16.2, os seguintes mecanismos de pausas para recuperação térmica:

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A NR-36, que versa acerca do trabalho em frigoríficos, contém uma série de disposições pertinentes ao tema, sendo relevente destacar, desde logo, os itens 36.13.1 e 36.13.1.1 desta norma, abaixo transcritos in verbis:

36.13.1 Para os trabalhadores que exercem suas atividades em ambientes artificialmente frios e para os que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa, depois de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, será assegurado um período mínimo de vinte minutos de repouso, nos termos do art. 253 da CLT.

36.13.1.1 Considera-se artificialmente frio, o que for inferior, na primeira, segunda e terceira zonas climáticas a 15ºC, na quarta zona a 12ºC, e nas zonas quinta, sexta e sétima, a 10ºC, conforme mapa oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

Registre-se, por oportuno, que o conceito de frio, para fins de aplicação da NR-36, estabelecido no item 36.13.1.1, ganha contorno de norma específica cujos efeitos se irradiam sobre as demais medidas previstas na norma para atenuar a percepção dos efeitos da exposição ao frio, como a disponibilização de sistema de aquecimento das mãos (item 36.9.5.2), o fornecimento obrigatório de meias limpas (item 36.10.1.2) e a alternância de tarefas (rodízio) com ambientes quentes (item 36.14.7.1 "f").

O art. 253 da CLT, de redação equivalente, e que serviu de base para os itens em destaque da NR-364, possui, a par disso, aplicação bem mais ampla.

Isso porque, diversamente do que estabelece o artigo da CLT, que incide sobre qualquer ambiente artificialmente frio onde ocorra movimentação de mercadorias para dentro e fora destes locais, como aqueles normalmente encontrados em supermercados, açougues, terminais portuários, indústrias e distribuidoras de alimentos perecíveis, dentre outros, os itens 36.13.1 e 36.13.1.1 da NR-36 têm aplicação direcionada ao trabalho em frigoríficos.

No campo da jurisprudência, a SÚMULA n. 438 do TST pacificou, para todas as situações acima, a aplicação dos intervalos previstos no caput do art. 253 da CLT não apenas em câmaras frigoríficas, mas em ambientes artificialmente frios, assim considerados aqueles situados em ambientes com temperaturas inferiores a 15ºC, 12ºC ou 10ºC, conforme a zona climática em que estejam situados.

É o que se extrai do texto abaixo reproduzido:

SÚM-438. INTERVALO PARA RECUPERAÇÃO TÉRMICA DO EMPREGADO. AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. HORAS EXTRAS. ART. 253 DA CLT. APLICAÇÃO ANALÓGICA - Res. n. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.9.2012.

O empregado submetido a trabalho contínuo em ambiente artificialmente frio, nos termos do parágrafo único do art. 253 da CLT, ainda que não labore em câmara frigorífica, tem direito ao intervalo intrajornada previsto no caput do art. 253 da CLT.

A Súmula n. 438 do TST, ao pacificar a interpretação em torno do sentido e aplicabilidade do art. 253 da CLT não apenas ao labor intermitente em câmaras frigoríficas, mas ao trabalho contínuo em ambientes artificialmente frios abaixo de 15ºC, 12ºC ou 10ºC, conforme estabelecido no MAPA CLIMA do IBGE, também não se limitou ao labor em frigoríficos.

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Por essa razão, é possível concluir que a tentativa de limitar o direito de fruição de pausa para recuperação térmica estabelecido no referido Projeto de Lei, ainda que bem sucedida, não repercutiria sobre a esfera jurídica das centenas de milhares de empregados abrangidos pela Súmula n. 438 do TST que, acertadamente, reconheceu, a partir da semelhança entre a exposição a trabalho intermitente em ambiente de frio intenso e a exposição contínua a trabalho em ambiente de frio moderado, a necessidade do uso da analogia como ferramenta jurídica de equiparação de direitos.

O acerto desta decisão da mais alta corte trabalhista do país não está, de modo algum, desacompanhado de respaldo técnico e científico.

3. O frio como agente de risco

Quando se propõe a...

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