Frentes de Trabalho Versus Direito Fundamental ao Trabalho Digno: Redimensio-namento (Urgente) das Políticas Públicas

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas285-314

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A exploração das energias fósseis e o progresso dos meios de comunicação haviam causado um primeiro divórcio entre o espaço-tempo das máquinas e o da vida humana. O Direito do Trabalho interveio então para reconstituir um espaço-tempo humanamente suportável. Tendo a iluminação a gás, depois a elétrica, emancipado o trabalho industrial dos ritmos da natureza (dia/noite; verão/inverno) e exposto os operários a um alongamento desmedido da duração do trabalho, o Direito veio limitar a jornada, depois o ano, depois a vida de trabalho. O impossível, o Direito substituiu pela proibição. Foram assim criados de alto a baixo os novos ritmos de vida que ordenam a vida do homem moderno e a organização de seu território: metrô, trabalho, sono, feriados. [...] O maquinismo industrial acarretara profundas subversões na organização do espaço. Sem mão nem cérebro, a máquina

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tinha necessidade de ser nutrida e guiada pelo homem. A fábrica industrial definiu-se, portanto, ao mesmo tempo pela concentração de um grande número de trabalhadores e pela separação com o habitat e a Cidade. Daí a profusão de problemas que o Direito teve de enfrentar: os da higiene e da segurança, da responsabilidade pelo uso das máquinas, da disciplina e das liberdades coletivas nos locais de trabalho, da organização dos serviços públicos de transporte e de saúde, etc. Nesse contexto histórico, a tipologia dos direitos tende a se indexar a uma tipologia dos locais: transpor a porta da empresa é passar de um universo jurídico para outro. [...]

Alain Supiot1

1. Introdução

Nos primórdios da civilização, o trabalho era a atividade ligada à pesca, à caça, à coleta de frutos e à plantação de alimentos destinados à garantia da subsistência e da vida em comunidade do homem. A partir da consolidação do capitalismo — que extrapola os limites econômicos e passa a significar um modelo de vida a ser adotado por todas as pessoas no cotidiano —, houve a divisão social e técnica do trabalho que transformou este ato tão natural numa engrenagem do processo de produção capitalista.

A Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX impôs novas formas de produção com o uso de forças motrizes que impulsionaram o crescimento fabril. O sistema capitalista de produção impunha aos trabalhadores extenuante jornada de trabalho sob precárias condições de higiene e segurança, pois o ritmo das atividades era determinado pelas máquinas, de modo que as habilidades individuais, tão necessárias na época do trabalho artesanal, não eram mais exigidas no trabalho fabril.

Ao ser humano não seria mais suficiente trabalhar para se manter vivo, uma vez que o trabalho passou a representar salário e o trabalhador a ser operário assalariado, ambos integrantes do sistema capitalista, assumindo a forma de mercadorias ou de custos de produção. Desse modo, houve a alienação do trabalhador que não mais se identificava com a atividade que desenvolvia, concomitantemente, com a própria alienação do trabalho que perdeu seu valor intrínseco para a vida do ser humano.

Nesse contexto, no mundo do trabalho assistiu-se ao processo crescente de precarização do trabalho humano e, atualmente, muitos preconizam a necessidade de flexibilização das relações de trabalho para que as empresas possam se manter competitivas no mercado internacional ante os efeitos da globalização2, além do uso indiscriminado de terceirizações, quarteirizações etc., de

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cooperativas ilícitas de trabalho que mascaram o vínculo empregatício, a adoção da “pejotização” do trabalhador, dentre outros subterfúgios para burlar a aplicação da legislação trabalhista vigente, promovendo a redução de direitos e garantias conquistados pelos trabalhadores ao longo dos séculos.

O próprio Direito do Trabalho também está sendo atacado por diversos discursos ditos “acadêmico-científicos” que apregoam sua obsolescência e a urgente “reformulação” de suas regras e princípios jurídicos em prol da manutenção dos postos de trabalho no âmbito da economia globalizada que devem ser adaptados às atuais necessidades dos mercados altamente competitivos o que, na realidade, não se justifica. Nesse sentido, destacam-se as assertivas de Jorge Luiz Souto Maior3:

A sociedade que deveria se basear pelo pacto de solidariedade, se caracteriza, então, pela luta de todos contra todos, pelo salve-se quem puder: e que vença o melhor e mais competente. [...] Todos esses argumentos são utilizados para se concluir, com autoridade, que se o mundo não é mais o mesmo, por consequência, também o Direito do Trabalho precisa mudar e essa mudança, segundo se conclui, mesmo sem manter qualquer relação lógica com as próprias retóricas apresentadas, deve ser a da diminuição dos direitos trabalhistas. Para implementar essa ‘reestruturação’ do Direito do Trabalho fala-se, então, eufemisticamente em flexibilização, que, no fundo, significa a redução de garantias do trabalhador [...].

Contrariamente aos discursos e propostas neoliberais e acompanhando o processo de constitucionalização4 do direito — principalmente dos direitos fundamentais, incluindo os direitos trabalhistas —, a Constituição brasileira de 1988 reconheceu a essencialidade do trabalho como um dos instrumentos mais importantes de afirmação da dignidade do trabalhador. A valorização do trabalho humano encontra-se enfatizada tanto no Preâmbulo, quanto no art. 1º, incisos III e IV e no art. 3º, inciso IV da Constituição, marcando o anúncio dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Essa valorização do trabalho deve direcionar a Ordem Econômica e Financeira prevista no Título VII da Constituição, estando dentre os princípios regentes da atividade econômica (art. 170, caput) e devendo nortear também a Ordem Social (Título VIII) que se funda no primado do trabalho, bem-estar e justiça sociais (art. 193).

Além disso, a dignidade da pessoa humana trabalhadora deve nortear e orientar as relações jurídicas de trabalho, pois se irradia pelos arts. 7º a 11 da Constituição que disciplinam os direitos sociais trabalhistas e deve se refletir na legislação trabalhista infraconstitucional, inclusive no âmbito das normas coletivas de trabalho. Portanto, a dignidade do trabalhador e o direito ao trabalho digno representam os pilares da ordem jurídica vigente, tanto no plano internacional (convenções da Organização Internacional do Trabalho e demais tratados internacionais de proteção aos direitos dos trabalhadores), quanto no plano interno (normas constitucionais e infraconstitucionais).

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Nesse contexto, foi analisada a realidade brasileira das frentes de trabalho, enquanto políticas públicas, sendo objeto do estudo o chamado “Programa Emergencial de Auxílio-desemprego (PEAD)” adotado no Estado de São Paulo e em diversos Municípios brasileiros. No âmbito dessas políticas, os trabalhadores desempregados são denominados “bolsistas ou frentistas” e recebem mensalmente bolsa-auxílio, cartão alimentação e auxílio-deslocamento. A lei prevê a inexistência de obrigações trabalhistas e previdenciárias, não havendo a concessão dos direitos trabalhistas mínimos resguardados pela Constituição.

A contratação de trabalhadores pelo Estado, mediante frentes de trabalho, é utilizada com base num discurso político-jurídico retórico que justificaria a implementação dessas políticas públicas como forma de conceder postos de trabalho às pessoas mais carentes, minimizando sua condição de fragilidade social, atendendo aos princípios constitucionais da busca do pleno emprego e da redução das desigualdades regionais e sociais que fundamentam a República Federativa do Brasil.

Esse argumento é deveras tentador, porém, ele esconde a violação aos princípios (constitucionais e peculiares) do Direito do Trabalho e ao sistema constitucional de proteção aos direitos fundamentais dos trabalhadores porque se impõe a precarização do trabalho humano pelo próprio Estado (Administração Pública), algo considerado inadmissível.

Além das frentes de trabalho, o Estado também está se utilizando amplamente de terceirizações, de cooperativas de trabalho, cuja licitude é duvidosa, para contratar trabalhadores nas áreas de segurança, de limpeza e de serviços mais gerais no intuito de “diminuir seus custos” ou, ainda, para atender a uma “provável” necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, inciso IX, da Constituição), mas que, de fato, não se justifica jurídica e socialmente.

Desse modo, o artigo realizou uma análise crítica das frentes de trabalho no Brasil, entendidas como políticas públicas, a partir de uma leitura sob as “lentes” do Direito Constitucional e do Direito do Trabalho, buscando produzir conhecimento em tempos de crise das ciências e de busca de novos paradigmas, numa tentativa de resgatar os valores ético-jurídicos que devem nortear a vida em comunidade. Buscou-se, também, não exaurir os questionamentos em relação ao tema abordado, mas contribuir para o enriquecimento dessas discussões tão imprescindíveis na contemporaneidade.

2. O valor do trabalho humano

Nos primórdios da civilização, o trabalho era a atividade ligada à pesca, à caça, à coleta de frutos e à plantação de alimentos destinados ao sustento do homem e acompanhou a evolução histórica do próprio ser humano. Ao longo dos séculos, o trabalho foi associado a uma atividade penosa que não traria felicidade e conhecimento ao homem, sendo relegado aos escravos no mundo antigo (sistema escravista), aos servos no medievo (sistema feudal) e ao proletariado na era moderna (sistema capitalista). Desse modo, são necessários alguns apontamentos acerca do significado do trabalho para o ser humano.

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