Fraude contra credores: Efeitos da sentença na ação pauliana

AutorJosé Eli Salamacha
CargoAdvogado /PR Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC/PR
Páginas9-15

Page 9

1. Introdução

Como regra geral prevista do artigo 591 do Código de Processo Civil, vige em nosso sistema jurídico o princípio da responsabilidade patrimonial, que significa que todo o patrimônio do devedor, pouco importando se os bens ou direitos que o compõem existiam quando a dívida foi contraída, responde por esta, no caso de inadimplemento voluntário, garantindo ao credor o exato cumprimento da obrigação através da tutela coativa do Estado.

O não-cumprimento espontâneo da obrigação assumida pelo devedor permite o ajuizamento da ação de execução, que tem a finalidade de fazer com que o credor obtenha a satisfação de seu crédito, exigindo do Estado que retire do patrimônio do devedor tantos bens quantos bastem à satisfação do referido crédito. Enquanto não ocorrer inadimplemento, não há que se falar em sujeição dos bens do obrigado para com o credor, eis que não existe a execução para tanto, ou seja, até que exista inadimplemento, o patrimônio do obrigado estará a salvo da investida do credor.

A essa regra geral da responsabilidade patrimonial do devedor, existem poucas restrições permitindo que, em determinadas situações, alguns bens do patrimônio do devedor não respondam para o cumprimento de suas obrigações1. Entre as hipóteses previstas estão, entre outros, aqueles bens considerados absolutamente impenhoráveis (art. 649 do CPC) e os considerados relativamente penhoráveis (art. 650 do CPC), juntamente com algumas situações em que apenas bens de terceiros respondem por obrigações do devedor.

Os bens nos quais incide a impenhorabilidade absoluta são aqueles que não podem ser penhorados em nenhuma hipótese, embora a própria lei traga algumas exceções, enquanto os bens relativamente penhoráveis são os que, em razão de determinadas situações, podem ser objeto de penhora2.

Por disposição da lei, que não permite seja atingida uma parte do patrimônio do devedor em razão de atribuir a certos bens a condição de inalienáveis e impenhoráveis, forma-se nas mãos do devedor um patrimônio separado daquele que pode ser atingido pela execução do credor3.

Ocorre que, muitas vezes, o devedor subtrai de seu patrimônio os bens que, por força do princípio da responsabilidade patrimonial, eram garantia geral do cumprimento de sua obrigação, com o propósito de levar prejuízo aos seus credores, praticando fraude em relação a estes.

Visando a coibir esses atos fraudulentos, neutralizando perante o credor a oneração ou alienação dos bens realizada pelo devedor, nosso ordenamento jurídico4 disciplinou a proteção ao credor através dos seguintes institutos: (1) fraude contra credores, que é instituto de direito material5, previsto no capítulo dos defeitos dos negócios jurídicos (arts. 158 a 165 do CC)6, e que consiste em causa para a desconstituição dos atos praticados pelo devedor, após ter contraído dívidas, mesmo antes do início do processo, e (2) da fraude à execução, que é de direito processual, previsto no CPC, artigos 592 e 593, e se configura ante a existência de um processo judicial.

A doutrina, na esteira da lei, segue dividindo o sistema de fraudes, em relação aos direitos de crédito, em fraude contra credores e fraude à execução. Tanto em uma como em outra, em termos gerais, pode-se afirmar que há uma diminuição do patrimônio do devedor, tornando-o insuficiente para a satisfação de seus credores7.

Desta forma, a fraude contra credores e a fraude à execução estão estreitamente ligadas, pois, aliás, têm a mesma origem histórica, e para que se possa entender uma, faz-se necessário estudar também a outra8.

Page 10

2. Definição

Para Caio Mário da Silva Pereira, constitui fraude contra credores "toda diminuição maliciosa levada a efeito pelo devedor, com o propósito de desfalcar aquela garantia, em detrimento dos direitos creditórios alheios. Não constitui fraude, portanto, o fato em si de reduzir o devedor seu ativo patrimonial, seja pela alienação de um bem, seja pela constituição de garantia em benefício de certo credor, seja pela solução de débito preexistente. O devedor, pelo fato de o ser, não perde a liberdade de disposição de seus bens. O que se caracteriza como defeito, e sofre a repressão da ordem legal, é a diminuição maliciosa do patrimônio, empreendida pelo devedor com ânimo de prejudicar os demais credores ou com a consciência de causar dano"9.

Sílvio de Salvo Venosa entende que "é fraude contra credores qualquer ato praticado pelo devedor já insolvente, ou por esse ato levado à insolvência, em prejuízo de seus credores"10, enquanto que para Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini "consiste em ato de disposição de bens orientado pela vontade e consciência de prejudicar credores, na medida em que provoca a insolvência do disponente, diminuindo seu patrimônio de forma a impedir a satisfação do crédito"11.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Sílvio Rodrigues diz haver fraude contra credores quando o devedor, já insolvente ou na iminência de tornar-se tal, pratica atos suscetíveis de diminuir seu patrimônio, reduzindo a garantia que este representa para seus credores12, enquanto que Washington de Barros Monteiro, num sentido amplo, define fraude a credores como o artifício malicioso empregado para prejudicar terceiro13.

3. Ação pauliana

Uma vez caracterizada a fraude contra credores, poderá o legitimado propor a ação pauliana, que é o meio através do qual o credor busca conservar no patrimônio do devedor determinados bens que são a garantia do cumprimento das obrigações assumidas por este. É ação pela qual os credores impugnam os atos praticados em fraude pelo devedor.

A lei, com o objetivo de proteger os credores e mediante determinados pressupostos, confere através da ação pauliana a prerrogativa de desfazer os atos praticados pelo devedor, restabelecendo a garantia dos credores. Disso resulta a possibilidade de se promover a execução sobre os bens alienados ou onerados em fraude contra credores, pois a ação pauliana não visa à satisfação do crédito por via direta da própria ação.

A fraude contra credores, também chamada de fraude pauliana, ocorre quando há a frustração do princípio da responsabilidade patrimonial, segundo o qual são os bens do devedor que respondem por suas dívidas.

Têm legitimidade para propor a ação pauliana somente os credores que já o eram ao tempo daqueles atos considerados fraudulentos14. Basta, assim, a existência do crédito, não havendo necessidade de que a dívida esteja vencida.

No entanto, além da existência do crédito, este deverá ser quirografário, conforme preceitua o caput do artigo 158 do CC, ou seja, fica defeso aos credores com garantia real intentar a ação pauliana. Entretanto, no mesmo dispositivo legal, em seu § 1º, é admitida a propositura da ação pauliana pelo credor com garantia real, desde que a garantia se torne insuficiente para satisfação de seu crédito, e presentes os demais requisitos previstos em lei.

Em relação à legitimidade passiva, a ação pauliana poderá ser proposta contra o devedor insolvente, contra a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou contra terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé (art. 161 do CC). Embora a lei utilize a expressão "poderá", o entendimento da doutrina15 é de que a ação necessariamente "deve" ser proposta contra o devedor insolvente e contra quem se encontra na posse e propriedade da coisa que se quer reaver, ou contra o devedor insolvente e aquele que foi beneficiado, quando se tratar de remissão de dívida ou quando for dada garantia (penhor ou hipoteca) para algum credor, em detrimento de outros. Trata-se de litisconsórcio necessário.

Para configuração da fraude contra credores, são necessários três elementos: (a) um crédito anterior ao ato tido como em fraude contra credores; (b) o eventus damni, que é o ato que prejudica o credor, seja pela insolvência do devedor ao tempo da prática do ato tido como fraudulento, ou porque a prática deste ato o tenha levado à insolvência, e (c) o consilium fraudis, que é a máfé, a intenção de prejudicar terceiros.

3.1. Anterioridade do crédito

A existência do crédito ao tempo em que ocorreu o ato fraudulento é requisito que vem previsto no artigo 158, § 2º do CC, que dispõe que somente os credores que já o eram ao tempo em que se praticou o ato em fraude podem pleitear sua anulação. Não sendo credor naquela oportunidade, não terá o autor da ação pauliana legitimidade, eis que ela é própria para tutelar direito de crédito existente quando ocorreu a fraude"16.

Assim, não basta que o autor da ação pauliana seja credor. É necessário que o crédito seja anterior ao ato que se pretende tornar ineficaz17. Quem realiza negócio com pessoa já insolvente no momento da contratação não encontra patrimônio que garanta seu crédito e, portanto, não tem legitimidade para propor a ação pauliana.

Entretanto, embora seja essa a regra geral, Yussef Said Cahali afirma que a jurisprudência e parte da doutrina reconhecem que, em situações excepcionais, é afastável esse elemento da anterioridade do crédito, principalmente quando ocorre a fraude predeterminada para atingir credores futuros. Exemplo de fraude predeterminada é aquela em que o devedor induz em erro o mutuante, preenchendo ficha cadastral aparentemente correta, com indicação de propriedade de diversos bens imóveis, e, logo após, antes da assinatura do contrato e às vésperas de receber o empréstimo, doa seus bens aos filhos, restando insolvente18.

3.2. Eventus damni

O segundo requisito para que exista a fraude contra credores é o eventus damni, ou seja, a prática de ato que diminui o patrimônio do devedor, prejudicando o credor, seja porque o ato o tornou insolvente ou porque praticado quando já estava em estado...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT