Fraude contra credores: efeitos da sentença na ação Pauliana

AutorJosé Eli Salamacha
Páginas192-201

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1. Introdução

Como regra geral prevista do art. 591 do Código de Processo Civil, vige em nosso sistema jurídico o princípio da responsabilidade patrimonial, que significa que, todo o património do devedor, pouco importando se os bens ou direitos que o compõem existiam quando a dívida foi contraída, responde por esta, no caso de inadim-plemento voluntário, garantindo ao credor o exato cumprimento da obrigação através da tutela coativa do Estado.

O não cumprimento espontâneo da obrigação assumida pelo devedor permite o ajuizamento da ação de execução, que tem a finalidade de fazer com que o credor obtenha a satisfação de seu crédito, exigindo do Estado que retire do património do devedor tantos bens quantos bastem à satisfação do referido crédito. Enquanto não ocorrer inadimplemento, não há que se falar em sujeição dos bens do obrigado para com o credor, eis que não existe a execução para tanto, ou seja, até que exista inadimplemento, o património do obrigado estará a salvo da investida do credor.

A essa regra geral da responsabilidade patrimonial do devedor, existem poucas restrições permitindo que, em determinadas situações, alguns bens do património do devedor não respondam para o cumprimento de suas obrigações.1 Entre as hipóteses previstas estão, entre outros, aqueles bens considerados absolutamente impe-nhoráveis (art. 649 do CPC) e os considerados relativamente penhoráveis (art. 650 do CPC), juntamente com algumas situações em que apenas bens de terceiros respondem por obrigações do devedor.

Os bens nos quais incidem a impe-nhorabilidade absoluta são aqueles que não podem ser penhorados em nenhuma hipótese, embora a própria lei traga algumas exceções, enquanto os bens relativamente penhoráveis são os que, em razão de determinadas situações, podem ser objeto de penhora.2

Por disposição da lei, que não permite seja atingido uma parte do património do devedor, em razão de atribuir a certos bens a condição de inalienáveis e impenho-

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ráveis, forma-se nas mãos do devedor um património separado daquele que pode ser atingido pela execução do credor.3

Ocorre que, muitas vezes, o devedor subtrai de seu património os bens que, por força do princípio da responsabilidade patrimonial, eram garantia geral do cumprimento de sua obrigação, com o propósito de levar prejuízo aos seus credores, praticando fraude em relação a estes.

Visando a coibir esses atos fraudulentos, neutralizando perante o credor a oneração ou alienação dos bens realizada pelo devedor, nosso ordenamento jurídico4 disciplinou a proteção ao credor através dos seguintes institutos: (1) fraude contra credores, que é instituto de direito material,5 previsto no capítulo dos defeitos dos negócios jurídicos (arts. 158 a 165 do CC),6 e que consiste em causa para a desconsti-tuição dos atos praticados pelo devedor, após ter contraído dívidas, mesmo antes do início do processo, e (2) da fraude à execução, que é de direito processual, previsto no CPC, arts. 592 e 593, e se configura ante a existência de um processo judicial.

A doutrina, na esteira da lei, segue dividindo o sistema de fraudes, em relação aos direitos de crédito, em fraude contra credores e fraude à execução. Tanto em uma como em outra, em termos gerais, pode-se afirmar que há uma diminuição do património do devedor, tornando-o insuficiente para a satisfação de seus credores.7

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Desta forma, a fraude contra credores e a fraude à execução estão estreitamente ligadas, pois, aliás, têm a mesma origem histórica, e para que se possa entender uma, faz-se necessário estudar também a outra.8

2. Definição

Para Caio Mário da Silva Pereira, constitui fraude contra credores "toda diminuição maliciosa levada a efeito pelo devedor, com o propósito de desfalcar aquela garantia, em detrimento dos direitos creditórios alheios. Não constitui fraude, portanto, o fato em si de reduzir o devedor seu ativo patrimonial, seja pela alienação de um bem, seja pela constituição de garantia em benefício de certo credor, seja pela solução de débito preexistente. O devedor, pelo fato de o ser, não perde a liberdade de disposição de seus bens. O que se caracteriza como defeito, e sofre a repressão da ordem legal, é a diminuição maliciosa do património, empreendida pelo devedor com ânimo de prejudicar os demais credores ou com a consciência de causar dano".9

Sílvio de Salvo Venosa entende que "é fraude contra credores qualquer ato pra-ticado pelo devedor já insolvente, ou por esse ato levado à insolvência, em prejuízo de seus credores",10 enquanto que para Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini "consiste em ato de disposição de bens orientado pela vontade e consciência de prejudicar credores, na medida em que provoca a insolvência do disponente, diminuindo seu património de forma a impedir a satisfação do crédito".11

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Sílvio Rodrigues diz haver fraude contra credores quando o devedor, já insolvente ou na iminência de tornar-se tal, pratica atos suscetíveis de diminuir seu património, reduzindo a garantia que este representa para seus credores,12 enquanto que Washington de Barros Monteiro, num sentido amplo, define fraude a credores como o artifício malicioso empregado para prejudicar terceiro.13

3. Ação pauliana

Uma vez caracterizada a fraude contra credores, poderá o legitimado propor a ação pauliana, que é o meio através do qual o credor busca conservar no património do devedor determinados bens que são a garantia do cumprimento das obrigações assumidas por este. É ação pela qual os credores impugnam os atos praticados em fraude pelo devedor.

A lei, com o objetivo de proteger os credores e mediante determinados pressupostos, confere através da ação pauliana a prerrogativa de desfazer os atos praticados pelo devedor, restabelecendo a garantia dos credores. Disso resulta a possibilidade de se promover a execução sobre os bens alienados ou onerados em fraude contra credores, pois a ação pauliana não visa à sa-

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tisfação do crédito por via direta da própria ação.

A fraude contra credores, também chamada de fraude pauliana, ocorre quando há a frustração do princípio da responsabilidade patrimonial, segundo o qual são os bens do devedor que respondem por suas dívidas.

Têm legitimidade para propor a ação pauliana somente os credores que já o eram ao tempo daqueles atos considerados fraudulentos.14 Basta, assim, a existência do crédito, não havendo necessidade de que a dívida esteja vencida.

No entanto, além da existência do crédito, este deverá ser quirografário, conforme preceitua o caput do art. 158 do CC, ou seja, fica defeso aos credores com garantia real intentar a ação pauliana. Entretanto, no mesmo dispositivo legal, em seu § P, é admitida a propositura da ação pauliana pelo credor com garantia real, desde que a garantia se torne insuficiente para satisfação de seu crédito, e presentes os demais requisitos previstos em lei.

Em relação à legitimidade passiva, a ação pauliana poderá ser proposta contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé (art. 161 do CC). Embora a lei utilize a expressão "poderá", o entendimento da doutrina15 é de que a ação necessariamente "deve" ser proposta contra o devedor insolvente e contra quem se encontra na posse e propriedade da coisa que se quer reaver, ou contra o devedor insolvente e aquele que foi beneficiado, quando se tratar de remissão de dívida ou quando for dada garantia (penhor ou hipoteca) para algum credor, em detrimento de outros. Trata-se de litisconsórcio necessário.

Para configuração da fraude contra credores, são necessários três elementos: (a) um crédito anterior ao ato tido como em fraude contra credores; (b) o eventus damni, que é o ato que prejudica o credor, seja pela insolvência do devedor ao tempo da prática do ato tido como fraudulento, ou porque a prática deste ato o tenha levado à insolvência, e, (c) o consilium fraudis, que é a má-fé, a intenção de prejudicar terceiros.

3. 1 Anterioridade do crédito

A existência do crédito ao tempo em que ocorreu o ato fraudulento é requisito que vem previsto no art. 158, § 2°, do CC, que dispõe que somente os credores que já o eram ao tempo em que se praticou o ato em fraude, podem pleitear sua anulação. Não sendo credor naquela oportunidade, não terá o autor da ação pauliana legitimidade, eis que ela é própria para tutelar direito de crédito existente quando ocorreu a fraude.16

Assim, não basta gue o autor da ação pauliana seja credor. E necessário que o crédito seja anterior ao ato que se pretende tornar ineficaz.17 Quem realiza negócio com pessoa já insolvente no momento da contratação, não encontra património que

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garanta seu crédito, e, portanto, não tem legitimidade para propor a ação pauliana. Entretanto, embora seja essa a regra geral, Yussef Said Cahali afirma que a jurisprudência e parte da doutrina reconhecem que, em situações excepcionais, é afasta vel esse elemento dâ anterioridade do crédito, principalmente quando ocorre a fraude predeterminada para atingir credores futuros. Exemplo de fraude predeterminada é aquela em que o devedor induz em erro o mutuante, preenchendo ficha cadastral aparentemente correta, com indicação de propriedade de diversos bens imóveis, e, logo após, antes da assinatura do contrato e às vésperas de receber o empréstimo, doa seus bens aos filhos, restando insolvente.18

3. 2 "Eventus darnni"

O segundo requisito para que exista a fraude contra credores é o eventus damni, ou seja, a prática de ato que diminui o património do devedor, prejudicando o credor, seja porque o...

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