O fracasso das práticas estatais como sua justificativa: Projetos de Policiais-Professores na Cidade de Deus

AutorLuana Dias Motta
Páginas171-190
O FRACASSO DAS PRÁTICAS ESTATAIS COMO SUA JUSTIFICATIVA: Projetos de
Policiais-Professores na Cidade de Deus
Luana Dias Motta1
Resumo:
Este texto problematiza os esforços estatais de conter o conflito contemporâneo nas margens urbanas, a partir de um caso
empírico: pr ojetos conduzidos por policiais militares cedidos pela Unidade de Polícia Pacificadora da Cidade de Deus. A
partir de etnografia que acompanhou a rotina desses policiais-professores e em diálogo com uma perspectiva
desessencializada do Estado, ar gumento que as explicações para os problemas das favelas estão assentadas no que
seriam as características da comunidade. Essas caracte rísticas explicariam a manutenção dos problemas sociais e da
violência, a despeito dos projetos. Nessa narrativa, muito comum nas políticas para pobres, oblitera-se uma reflexão sobre a
concepção e a implementação da política. A ineficácia dos projetos emerge como um indicador de quão difícil é, à
comunidade, fazer do fracasso a justificativa para a manutenção dessas mesmas política s.
Palavras-chave: Projetos sociais. Policiais militares. Conflito urbano. Pobreza. Violência.
THE FAILURE OF THE STATE ACTIONS AS ITS JUSTIFICATION: police-teachers' projects in the cidade de deus slum
Abstract:
This paper discusses the state efforts to manage and contain the contemporary conflict on the urban m argins from a
empirical case: projects conducted by military police officers assigned by the Pacifying Police Unit in the Cidade de Deus
slum. From an ethnography of the routine of these state agents and in dialogue with a desessential perspective of the State,
I argue that the explanations for the problems of slums are based on the characteristics of the community. These
characteristics would explain the maintenance of social problems and the problem of violence. In this narrative, very common
for poor people, a reflection on the conception and the implementation of the politics itself is obliterated. The ineffectiveness
of projects in transforming r eality emerges as an indicator of how difficult the community is, turning the very failure into
justification for the need to maintain those same policies.
Keywords: Social projects. Military police officers. Urban conflict. Poverty. Violence.
Artigo recebido em: 21/01/2019 Aprovado em: 04/04/2019.
DOI: http://dx.doi.org/10.18764/2178-2865.v23n1p171-190
1 Graduada em Ciências Sociais. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora
Adjunta do Departamento de Sociologia da UFSCar. Endereço: Rodovia Washington Luiz, 235. São Carlos. São Paulo. E-
mail: luanadmotta@yahoo.com.br
Luana Dias Motta
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1 INTRODUÇÃO
A literatura sobre as periferias urbanas argumenta que, nas últimas três décadas, o
conflito urbano teve seu cerne radicalmente deslocado do problema da integração das classes
trabalhadoras das periferias urbanas para a questão da violência que emanaria desses espaços
(FELTRAN, 2011; 2014a; MACHADO DA SILVA, 2010; 2011; MISSE, 1993). A violência passa a figurar
como cerne do problema da pobreza urbana; o conflito social se traduz em conflito criminal. Tal
deslocamento tem implicado uma radicalização da alteridade, na medida em que a pobreza e os
pobres passam a ser entendidos e representados como sinônimo de marginalidade, criminalidade e
fonte da violência. (FELTRAN, 2014b).
Este texto1 problematiza os esforços estatais de gerir e conter o conflito urbano
contemporâneo nas margens urbanas, tendo como ponto de partida um caso empírico específico: os
projetos2 conduzidos por policiais militares cedidos pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da
Cidade de Deus, os quais acompanhei em pesquisa etnográfica. Seguindo a rotina desses policiais-
professores3 no Prédio do Centro de Referência da Juventude (CRJ) da Cidade de Deus - ao longo de
4 meses em 2014, quando residi nessa favela, e em incursões de campo ao longo do ano de 2016 -,
pude acompanhar suas atividades, os problemas que enfrentavam, os dilemas que viviam, as reflexões
que construíam acerca dos problemas das favelas e sua suposta relação com a violência urbana e de
como poderiam incidir sobre isso.
O valor heurístico do caso dos policiais-professores da Cidade de Deus para refletir sobre
os esforços estatais de contenção do conflito urbano no Brasil está relacionado a três dimensões
principais: i) o fato de esses projetos terem sido conduzidos no contexto de implementação de uma
nova política de segurança pública, as Unidades de Polícia Pacificadora, que se apresentava como
alternativa inovadora para conter a violência que emanaria das favelas; ii) o fato de a questão da
contenção, combate e prevenção à violência ser o foco principal e último das práticas desses policiais-
professores, que afirmavam combinar segurança e social para lidar com o problema da violência de
modo mais efetivo; iii) o fato de olharmos para a ponta, para os modos como a política é implementada
e recebida pelo público-alvo, ou seja, por podemos ver o Estado se fazendo em ato.
O interesse pelos esforços estatais de gestão do conflito urbano está, portanto, no nível
das práticas ordinárias, rotineiras e cotidianas de agentes que implementam políticas, que estão na
ponta; aqueles que Lipsky (1980) chamou de burocratas de nível de rua. Ou seja, parto de uma
perspectiva que entende o Estado não com uma espécie de dado histórico-natural (FOUCAULT, 2000;
2008), mas, ao contrário, busco entendê-lo e estudá-lo na imanência: práticas, relações, documentos,
normativas, funcionamentos, pessoas, espaços concretos etc., sem procurar algo transcendente

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