Como se fosse da família: interconexão entre trabalho infantil doméstico, racismo e gênero

AutorRosaly Stange Azevedo e Cristina Grobério Pazó
Páginas159-167

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1. Introdução

O objetivo geral do presente artigo é demonstrar que a maior incidência de crianças e adolescentes do sexo feminino, negras, em situação de trabalho doméstico, evidencia a interação entre racismo, gênero e classe, em uma evidente discriminação ocupacional, pela qual a avaliação de atributos não produtivos, como a cor e o sexo, resulta na exclusão ou no acesso limitado a posições valorizadas no mercado de trabalho.

A importância da compreensão da ideologia subjacente ao trabalho doméstico, sua interconexão com a aceitação social do trabalho infantil e seus desdobramentos na vida dos pequenos trabalhadores excede ao caráter meramente teórico.

Assim, para desenvolver este estudo, utilizamos como marco teórico, a proposição de Ricardo Antunes (1999), demonstrando, na primeira parte do artigo, a existência de exploração do trabalho doméstico pelo capital, uma vez que é com a contratação de uma pessoa para lavar, passar, cozinhar e cuidar dos filhos que são criadas as condições indispensáveis para a reprodução da força de trabalho.

Contratar um trabalhador doméstico possibilita, aos seus contratantes, seus patrões, a ampliação do tempo fora do trabalho, permitindo-os participar, assim, do sistema de metabolismo social, convertendo tempo livre em tempo útil ao capital, seja em tempo para consumo, seja para o alcance da mídia da indústria do consumismo.

Na segunda parte, este trabalho realiza a interconexão entre trabalho infantil doméstico e gênero, revelando, assim, que no universo do mundo produtivo e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, em que meninos e meninas são, desde a mais tenra idade, pela família e pela escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho.

A terceira parte desse artigo analisa mecanismos e práticas individuais informais de intimidação, como humilhações e agressões verbais e não verbais, decorrentes de uma cultura que naturaliza a hierarquia racial.

Por fim, a conclusão aponta que a formulação das políticas públicas voltadas à criança e ao adolescente deve ocorrer mediante a descentralização político-administrativa e com a participação popular, por ação articulada em rede, com o reconhecimento da infância de todas as crianças, de todas as classes sociais, gêneros e raças, com a clara noção de responsabilidade comum, para que elas possam atingir seu pleno desenvolvimento e viver em ambiente adequado, marcado pelo respeito e pela dignidade, onde seus direitos fundamentais são observados.

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O fio condutor metodológico proposto concebe os direitos humanos, dentre os quais encontram-se os direitos da criança e do adolescente a uma infância protegida, em uma perspectiva crítica, cujo pressuposto básico é o comprometimento com a mudança social, compreendida como o aumento do acesso aos diversos bens que tornem a existência digna (KROHLING, 2014, p. 91).

Assim, o método utilizado neste trabalho é o múltiplo-dialético, metodologia mais apropriada à fundamentação dos direitos humanos como processos culturais de emancipação do “direito a ter direitos” (KROHLING, 2014, p. 91). Os direitos humanos, ou fundamentais, segundo Krohling (2014), estão inseridos em mutabilidades históricas que negam a estabilidade, a estática e a rigidez dos objetos.

Realizou-se uma pesquisa bibliográfica e em sites referenciados, por meio do qual foram analisadas obras de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, em uma postura pluridisciplinar envolvendo o direito, a psicologia, a sociologia, a história e a geografia. Em se tratando do tema “trabalho infantil doméstico”, é necessário compreender as mais ínfimas e negligenciadas manifestações sociais, buscando destruir as pré-noções e o senso comum.

2. Trabalho infantil doméstico

No Brasil, o trabalho infantil doméstico é proibido em razão da inclusão da modalidade na lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Decreto n. 6.481,
12.06.2008). Essa lista, a lista TIP, como é chamada, é uma forma de classificação proposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Convenção n. 182, adotada por diversos países, que define as piores formas de trabalho infantil.

As principais razões para o trabalho infantil doméstico constar nessa relação são a exposição da criança a riscos relacionados a acidentes de trabalho e por causar prejuízos físicos, morais e psicossociais às crianças e adolescentes a ele submetidos. O trabalho tem consequências perversas para o desenvolvimento físico, psicológico e intelectual do indivíduo que começa a trabalhar antes do momento apropriado. A criança perde, precocemente, o convívio familiar e os momentos de brincar, atividade essencial para o desenvolvimento infantil.

2.1. Gênese do trabalho precoce no Brasil

Não apenas os indígenas adultos tiveram sua força de trabalho explorada pelos colonizadores portugueses do século XVI, na extração do pau-brasil, mas também as crianças. Inicialmente, enquanto vigorava o regime de trocas de coisas sem valor expressivo para os homens brancos (como espelhos e tecidos) pela madeira, preciosa apenas aos europeus, não havia motivo para recusa por parte dos índios, pois o trabalho era livre, assim como o ato de troca era voluntário (FERREIRA, 2001, p. 60).

Contudo, a partir do momento em que os índios perceberam a desproporção entre os pequenos presentes recebidos e o tempo e esforço que eram necessários para a realização da troca, começaram a retornar para suas aldeias. Em resposta, os portugueses iniciaram os mecanismos de aprisionamento dos indígenas para trabalhos forçados, tanto em serviços domésticos quanto em lavouras e plantações. Isso com o auxílio de padres católicos, sob a justificativa de conversão e de catequização dos índios. Esse mesmo processo ocorreu em civilizações antigas de diversas regiões do mundo, agressivamente espoliadas por invasores estranhos e em detrimento de sua cultura, tradição e costumes. (FERREIRA, 2001, p. 61-71).

Embora as crianças indígenas já tivessem responsabilidades na divisão das tarefas em suas famílias e tribos, auxiliando e acompanhando os adultos, com a colonização, uma diferença substancial foi introduzida: o trabalho das crianças deixou de significar o momento no qual a comunidade indígena ensinava os aspectos da vida, tanto práticos como simbólicos, aos novos membros da tribo, num processo de inclusão da criança no mundo produtivo e simbólico dos adultos, na caça, pesca, no preparo para os rituais, como parte da construção de sua identidade cultural (FERREIRA, 2001, p. 61-71).

A saga das crianças africanas escravizadas foi ainda mais cruel. O tráfico privilegiava adultos do sexo masculino, motivo pelo qual o percentual de africanos que possuíam menos de dez anos de idade, desembarcados naquela época, era de cerca de 4%. Da mesma forma que poucos adultos chegavam aos cinquenta anos de idade, poucas crianças chegavam a idade adulta. Antes de completarem cinco anos, metade parecia ser completamente órfã; aos 11 anos, oito a cada dez. A criança escravizada aprendia um ofício a partir dos quatro anos: “O pequeno Gastão, por exemplo, aos quatro anos já desempenhava tarefas domésticas leves na fazenda de José de Araújo Rangel. Gastão nem bem se pusera de pé e já tinha um senhor” (GOÉS; FLORENTINO, 2013,
p. 184). Por volta dos sete anos, um africano escravizado chegava a valer até 60% mais que aos quatro anos, aos 11 anos, até duas vezes mais e, aos 14 anos, já trabalhava e valia como um adulto. Aos 12 anos, meninos e meninas traziam a profissão como sobrenome: Chico Roça, João Pastor e Ana Mucama.

O valor de um escravo, como são comumente chamados aqueles que foram escravizados, dependia de gênero, idade e de condições gerais de saúde. Mas a miscigenação também influenciava na hierarquia dos

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cativos. O preço de um escravo crioulo era superior ao do escravo africano. Os senhores achavam que os crioulos eram mais inteligentes, já que eram mais “adestrados” (GOÉS; FLORENTINO, 2013, p. 184-185).

Era possível observar-se duas categorias de crianças trabalhadoras: o crioulo e o africano, ambos crias da escravidão. A inserção das crianças no trabalho dava-se mediante punições e castigos. Apesar de as punições públicas serem reservadas aos pais, os pequenos cativos sofriam suplícios na forma de humilhações diárias como, por exemplo, serem obrigadas a ficarem de quatro, fazendo-se de cavalos: “Lá está ela, montada a receber lanhadas do dono. Se Gilberto Freyre tiver razão uma outra vez […] era muito difícil a vida das crianças escravas mais próximas da família do senhor” (GÓES; FLORENTINO, 2013, p. 186).

Com a abolição da escravatura, iniciou-se o debate acerca do “problema do menor abandonado ou delinquente”. Antes, cada proprietário de escravos deveria cuidar para que seus escravos não fugissem e representassem uma ameaça aos “cidadãos de bem”. A visão de crianças soltas pelas ruas, sujas, subnutridas, era um incômodo para o homem das pequenas cidades. O trabalho seria, então, a melhor forma de “ocupar” essas crianças. Já era de conhecimento de todos, pela experiência da escravidão, que a criança trabalhadora dava menos trabalho, pois não se envolvia em questões políticas e adaptava-se facilmente às diversas atividades. Da mesma forma que dava menos trabalho, também dava mais lucro, já que os salários a ela pagos eram menores. (GOÉS; FLORENTINO, 2013, p. 186).

Com o advento da República, surgiu a necessidade de preparar a população para impulsionar a economia nacional, com a formação e a disciplinarização dos trabalhadores da indústria e da agricultura. Asilos de caridade passaram a ser institutos e escolas profissionais. Esses patronatos recebiam os garotos que...

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