A formacao de ordens normativas: Sobre a ideia de um programa de pesquisa interdisciplinar.

AutorForst, Rainer
CargoResena de libro

A ideia central

Um programa de pesquisa em ciencias humanas e sociais que defenda a tese de que nos vivemos em uma epoca de profundas transformacoes sociais nao adentra qualquer territorio desconhecido. Em comparacao, um foco tematico centrado na questao da formacao de ordens normativas relacionadas a seus respectivos deslocamentos, rupturas e conflitos, em sociedades distintas e em nivel transnacional, traz a luz algo novo e importante. Pelo menos essa e nossa conviccao.

Diferentemente das tentativas de explicacao funcionalistas que se referem a fatores externos a norma, para as pesquisadoras e pesquisadores do cluster (2) de Frankfurt, sao as perspectivas, disputas, processos e procedimentos internos na formacao das ordens do agir e do pensar e que estao em jogo. Especial atencao e dada as valoracoes que estao na base de ordens institucionais. "Ordens normativas" repousam sobre justificacoes basilares e servem, respectivamente, a justificacao de regras, normas e de instituicoes sociais; elas fundamentam demandas por poder e uma distribuicao determinada de bens e de chances de sobrevivencia. Nesse ponto, uma ordem normativa e vista como ordem de justificacao: ela pressupoe e, ao mesmo tempo, gera justificacoes, em um processo complexo e nunca concluido.

Ordens desse tipo estao assentadas em narrativas de justificacao, formadas em constelacoes historicas singulares e transmitidas, modificadas e institucionalizadas durante longos periodos de tempo. No entanto, cada narrativa de justificacao transmitida, cada legitimacao sedimentada, sempre aponta simultaneamente para a facticidade de uma ordem existente e, assim, oferece pontos de partida para a critica, para recusa ou para resistencia. E essa tensao performativa entre demandas por justificacao e ordens em constante disputa (3) que torna compreensivel a conflituosa dinamica de formacao e de transformacao de ordens normativas. Nesse sentido, os meta-principios, as instituicoes e os processos reflexivos sao de grande importancia, uma vez que inauguram pela primeira vez um espaco social onde pretensoes de justificacao podem ser exigidas, contestadas e defendidas; inauguram, portanto, um espaco discursivo, em que os participantes podem resolver suas lutas por ordens normativas como uma disputa por razoes justificadoras.

Ainda que os pesquisadores e pesquisadoras do cluster de excelencia reivindiquem para si uma pluralidade de perspectivas e de metodos cientificos, que nao se deixam fixar em apenas um paradigma, de areas tao diferentes como Filosofia, Historia, Ciencias Politicas, Direito, como tambem Etnologia, Economia, Teologia e Sociologia, eles encontram seu fundamento comum na enfase dada ao ponto de vista normativo interno. A partir dessa base, eles pesquisam sobre a formacao de ordens normativas com seus proprios meios. Dessa forma, a genese de normas em constelacoes historicas faz parte da pesquisa tanto quanto a mudanca das ordens normativas na area da biotecnologia ou no ambito da politica de seguranca internacional. Assim, o cluster segue a tradicao frankfurtiana de pesquisa em ciencias humanas e sociais de maneira inovadora, a fim de se colocar frente aos desafios cientificos do presente e do futuro. (4)

Perspectiva interna e externa

Da perspectiva do participante, os processos de formacao de ordens normativas aparecem, em regra, como conflituosos. Pode-se apenas avaliar se uma norma sera realmente efetiva em acoes praticas quando for possivel desviar dela e criticar esse desvio enquanto tal--nao se trata, portanto, da observacao de um comportamento correspondente a norma, mas somente de maneira performativa, no modo da justificacao e da critica. Essa obstinacao da normatividade fica fechada a uma perspectiva objetivadora do observador. O recurso a perspectiva do participante nao significa, contudo, que os conflitos atuais por uma ordem mundial justa--ou tambem conflitos anteriores em torno de ordens normativas--sejam considerados apenas como uma disputa (Streit) por razoes de justificacao. Alem disso, ninguem ira contestar que a possibilidade e a efetividade das razoes de justificacao dependem de condicoes externas, sem as quais elas nao poderiam ter sido criadas. Contudo, na nossa opiniao, a dinamica desses conflitos e subestimada quando e explicada primariamente por fatores como a economia, o grau de diferenciacao sistemica da sociedade ou as constelacoes dominantes de poder, sem que tambem seja entendida, em sentido especifico, como disputa por justificacao, assim como por meios e por procedimentos de justificacao.

Apesar de a dinamica de justificacao determinar diretamente os acontecimentos conflituosos atuais, ela e rapidamente reduzida a outros fatores na construcao teorica academica. Por meio dessa reducao, as justificacoes aparecem apenas como disfarce ideologico consciente ou inconsciente de interesses ocultos ou como forcas que atuam pelas costas dos participantes. Mas mesmo um observador distanciado dos conflitos atuais nao poderia deixar de notar que as pessoas articulam diretamente suas experiencias de injustica--com todas as ambivalencias inerentes a esse tipo de protesto, principalmente quando ele e difundido rapida e globalmente nos meios de comunicacao de massa, de maneira ate entao desconhecida. As pessoas indignam-se tanto com atentados terroristas e com sequestros de refens quanto com a tortura de presumiveis terroristas; elas nao querem se tornar vitimas de uma limpeza etnica, mas tambem nao querem perder suas vidas como danos colaterais de uma intervencao humanitaria. Elas nao querem se conformar com as legalidades de uma economia globalizada e pagar, com a perda de sua saude e de suas perspectivas de vida, pelo acaso de nascer em um pais marginalizado do mercado mundial ou explorado por um regime ditatorial corrupto--antes arriscam suas vidas na tentativa de ultrapassar fronteiras territoriais e de atravessar desertos e mares com ajudantes obscuros para chegar as partes mais ricas do mundo. As pessoas se recusam a pagar por medicamentos vitais que atingem altos precos na competicao global--como, por exemplo, os que atenuam os efeitos de uma infeccao por HIV--, ou boicotam, na condicao de consumidoras, conglomerados multinacionais que exploram o trabalho infantil. Atualmente podemos apenas suspeitar quais serao os intensos conflitos em torno de ordens normativas justas produzidos frente ao recente prognostico de alteracoes climaticas globais.

Experiencias individuais e coletivas de injustica, desrespeito e humilhacao intensificam-se, convertendo-se em pretensoes normativas com razoes diferentes, direcionadas a destinatarios diferentes. Elas se articulam em torno das varias atividades de ONGs ou de outros atores transnacionais em defesa da observancia e da implementacao dos direitos humanos, como tambem se articulam nos protestos ao redor do mundo contra uma concepcao especifica, parcial e hegemonica de direitos humanos e de democracia, cuja implementacao desconsidera a igualdade dos destinatarios. Reunem-se, ainda, em protesto contra a mistura de direitos humanos com interesses economicos. Mas elas tambem se articulam, dentro de seus proprios paises, sob a forma de fanatismos e fundamentalismos religiosos, de neonacionalismos populistas, em grupos xenofobos ou de mentalidade contraria as migracoes. Hoje pode-se observar empiricamente que pretensoes normativas heterogeneas e em parte antagonicas sao reivindicadas, sempre com referencia reiterada a experiencias negativas de injustica, de negacao de reconhecimento e de tratamento desigual arbitrario, sem com isso refletir diferenciacoes funcionais de sistemas sociais globais ou diferencas semanticas e institucionais entre direito, moral e religiao.

Alem disso, falta cada vez mais o destinatario convencional, a quem essas reivindicacoes poderiam ser dirigidas: o Estado nacional e uma esfera publica determinada, principalmente relacionada ao Estado nacional e as fronteiras linguisticas nacionais. E certo que as pessoas que assim se articulam e que agem de forma correspondente, fazem-no tambem como pontos anonimos de cruzamento (anonyme Kreuzungspunkte) entre sistemas de comunicacao social e sistemas simbolicos inconscientes, como enderecos artificiais personalizados de uma semantica cultural, como meras fichas de um jogo estrategico por mercados de consumo ou de commodities, como portavozes de grupos particulares de interesse, instrumentalizados pela midia de massa. Nao se trata de novamente trazer as ciencias humanas e sociais para uma "modorra antropologica" (5) e orienta-las de acordo com uma imagem humana que negue a determinacao de seu contexto--isso apenas provocaria, inevitavelmente, novos pronunciamentos sobre o "fim do humano". Tambem nao se trata de retornar a uma historiografia da perspectiva dos agentes e de seus destinos ou de, em sentido hermeneutico, de um regresso a interpretacao do sentido das intencoes subjetivas. No entanto, as indignacoes efetivamente relacionadas a injusticas--por mais legitimas, parciais, seletivas e distorcidas que elas possam ser nos casos concretos--nos pareceram evidencia suficiente para questionar como uma teoria da formacao de ordens normativas e possivel hoje, para alem da dicotomia entre teorias da acao e teorias da estrutura. Enquanto opcoes embasadas na teoria da acao tendem a um alarmismo frente aos desafios atuais, postura que se esgota rapidamente na mera articulacao de reivindicacoes por justica mais ou menos abstratas, as teorias da estrutura e dos sistemas antes decaem em um quietismo, na medida em que entregam a superacao desses desafios aos sistemas parciais diferenciados, sem reconhecer o risco de que talvez um limiar ja tenha sido ultrapassado, que poderia levar a dramaticos processos de desdiferenciacao. A diferenciacao entre religiao e politica, que tambem se encontra sob pressao no mundo ocidental, e apenas um exemplo para essa suposicao. Por isso optamos pela orientacao para o ponto de vista interno ou a...

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