Formação do processo

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas13-26

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A doutrina, desde muito tempo, apegou-se ao vocábulo pressupostos para designar os elementos indispensáveis à formação e ao desenvolvimento regulares da relação jurídica processual. Todavia, se bem refletirmos, concluiremos que esse vocábulo é inadequado para essa finalidade, por indicar aquilo que vem antes de alguma coisa (pre + suposto). Ora, a verificação da existência desses "pressupostos" não é realizada antes da instauração do processo, senão que no próprio processo. Se imaginarmos, porém, que a doutrina vem fazendo uso desse substantivo para expressar as matérias que devam ser examinadas antes do mérito, até poderemos concordar com essa atitude, embora estejamos convencidos de que o vocábulo requisitos seja muito mais apropriado para expressar os elementos necessários à formação e ao desenvolvimento regulares da relação processual.

Pondo de lado esse rigor terminológico, vejamos, a seguir, quais são os pressupostos legais necessários à formação da relação jurídica processual.

Pressupostos de formação
1.1. Pressupostos subjetivos

1.1.1. Partes. São "os sujeitos do contraditório instituído perante o juiz", nas palavras de Liebman ("Manualle di Diritto Processuale Civile", Milano: Giuffrè, 1973,1, n. 41, pág. 75). A qualidade de parte deriva da titularidade das situações jurídicas, ativas e passivas, que compõem a relação processual: "ser parte significa, então, ser titular dessa situação global perante o juiz, o qual, sendo a encarnação do Estado no processo, também é titular de poderes e deveres, além da autoridade que ali exerce e que tem como correspectivo a já referida sujeição das partes (Cândido Rangel Dinamarco, "Litisconsórcio", S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1984, pág. 7).

O indivíduo e as coletividades adquirem o status de parte no momento em que passam a deter a titularidade das situações jurídicas mencionadas, mesmo que não tenham exercido nenhum dos poderes ou faculdades que a norma legal lhes atribui. De modo geral, por quatro formas se adquire a qualidade de parte:

  1. pela demanda, pois quem toma a iniciativa de requerer a entrega da prestação jurisdicional assume a posição de demandante;

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  2. pela citação, porquanto a pessoa diante da qual o autor formula pretensões se converte em réu, vale dizer, em parte legítima para responder a essas pretensões, às quais poderá resistir juridicamente, ou submeter-se;

  3. pela intervenção, voluntária ou compulsória, em processo alheio (intervenção de terceiro);

  4. pela sucessão, espontânea ou coacta, da parte originária.

    Embora, no geral, a parte seja titular do direito material alegado em juízo, há casos, legalmente previstos, em que, por exceção, se atribui legitimidade para alguém postular, em nome próprio, direito alheio: cuida-se, neste caso, do fenómeno jurídico da substituição processual - que não passa, na verdade, em nosso meio, de um mandato legal para a lide (ad litem). Aqui, não há coincidência entre a titularidade do direito material e a titularidade da ação.

    Dentre os diversos princípios referentes às partes, três merecem atenção especial, a saber:

  5. da dualidade, que pressupõe a existência de, quando menos, duas partes (autor e réu) ou de dois grupos de interesses contrapostos, como preferir-se. No-te-se,que não estamos cogitando da presença das partes em juízo, como suposta exigência para a validade da relação processual; se assim fizéssemos, estaríamos a fazer censurável concessão a superadas concepções romanistas do passado remoto. A dualidade nada mais expressa do que a exigência de que a relação processual seja integrada por, no mínimo, duas partes; havendo apenas uma pessoa, seguramente, não estaremos diante de uma parte nem de um processo, mas de um interessado e de um procedimento;

  6. da igualdade, segundo o qual o juiz deve subministrar um tratamento rigorosamente equânime, igualitário, aos litigantes, cuja imposição legal (CPC, art. 139, I), emana do seu ontológico dever de neutralidade, como órgão incumbido de solucionar, de maneira heterônoma, os conflitos de interesses submetidos à sua apreciação (cognição). Esse princípio - convém destacar - se encontra inscrito no art. 5º , caput, da Constituição Federal, e representa, sem dúvida, uma das pilastras de sustentação de nosso Estado Democrático de Direito (Const. Federal, art. 1º, caput);

  7. do contraditório, pelo qual se assegura ao réu o direito de defender-se e, de modo geral, às partes, de serem comunicadas dos atos praticados no processo. Este princípio também possui sede constitucional (art. 5º , LV).

    1.1.2. Juiz. Processo sem a participação de juiz é o não-processo, é um simulacro, é processo inexistente. A contar do momento, de extraordinária importância para o direito dos povos, em que a jurisdição foi convertida em atividade estatal monopólica, a presença do juiz no processo se tornou indispensável. Recordemos que o processo constitui método estatal de solução de conflitos de interesses; logo, sendo o juiz o próprio

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    Estado a distribuir justiça, seria inadmissível imaginar-se um processo sem o Estado-Juiz. Demais, o processo moderno não é propriedade das partes, pois não se situa nos domínios de seus interesses privados. Enfim, já não há lugar, nos tempos atuais, para as lides privadas (autotutela), tão frequentes num período longínquo e obscuro de nossa História.

    Quando aludimos à presença do juiz, como um dos pressupostos de formação da relação processual, estamos a cogitar, à evidência, de juiz regularmente investido no cargo e no pleno exercício de suas funções. Desta maneira, se o juiz foi nomeado para o cargo, mas não recebeu a necessária investidura formal, é evidente que se encontra desprovido de poder jurisdicional. O mesmo podemos dizer do magistrado que, a despeito de estar investido no cargo, foi afastado do exercício das funções em decorrência de punição disciplinar ou de qualquer outro ato, legalmente previsto. Em tais situações, os atos por ele praticados serão inexistentes, do ponto de vista jurídico.

    De outro lado, para que a relação processual se constitua de modo regular, é imprescindível a presença de juiz natural (que preferimos denominar de juiz preexistente, expressão mais didática), ou seja, que não tenha sido instituído para julgar determinada causa ou pessoa. O que se exige, pois, é que o órgão jurisdicional preexista ao fato a ser julgado, e não que seja constituído após o fato (post factum). A Constituição Federal em vigor, mantendo uma salutar tradição inaugurada pela de 1946, proíbe a criação de tribunais ou de juízos de exceção (art. 5º , XXXII).

    Ao mencionarmos, portanto, o juiz como um dos requisitos (ou "pressupostos") para a formação regular da relação processual estamos a dizer que se trata de juiz:

  8. nomeado para o cargo e nele investido;

  9. no pleno exercício de suas funções; c) natural (ou preexistente); d) imparcial. Do quanto expusemos até esta altura, podemos fazer o seguinte resumo:

  10. o ingresso do autor em juízo faz com que se estabeleça uma relação processual entre ele e o magistrado (relação linear e ativa);

  11. citado o réu, forma-se uma outra relação processual, que o vincula ao juiz (angulariza-se a relação, que é passiva)

  12. uma terceira relação se constitui, de maneira automática, atando as partes (autor e réu) e dando à relação processual seus contornos finais.

    Falamos em contornos finais, porque, efetuada a citação, deverão ser mantidas as mesmas partes, salvo as substituições previstas em lei (CPC, art. 108).

    Eis o princípio da estabilização subjetiva do processo ou da lide.

    A citação também impede que haja modificação objetiva do processo, ou seja, que ocorra alteração quanto à causa de pedir ou ao pedido (CPC, art. 329).

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    Mais: a propositura da ação define a perpetuatio iurisdictionis, ou melhor, determina a competência do órgão, sendo, em face disso, irrelevantes as posteriores modificações do estado de fato ou de direito, exceto quanto suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta (CPC, art. 43).

1.2. Pressuposto objetivo

Ação (ou demanda). Como asseveramos há pouco, a jurisdição se mantém em um estado de inércia, a significar, com isso, que o juiz não a pode exercer por sua iniciativa, mas, apenas, mediante provocação da parte interessada (CPC, art. 2º ). Assim o é, porque seria, evidentemente, perturbadora das relações sociais a possibilidade de o juiz sair por aí a fomentar lides, além de esse gesto torná-lo parcial aos olhos do réu.

A ação consiste, pois, no direito público subjetivo (e, em nosso meio, de natureza constitucional: Const. Federal. art. 5º , XXXV) de invocar a prestação da tutela jurisdicional. A pretensão, por seu turno, espelha a exigência feita pelo autor de que o seu interesse prevaleça sobre o do réu; que este, enfim, se submeta à pretensão. Vê-se, pois, que a ação está diretamente jungida à pretensão: aquela, sem esta, é nada. A causa, por outro lado, corresponde à projeção da lide no processo. Ao exercer a ação, para formular uma pretensão, o autor está, com isso, projetando a lide (conflito de interesses) nos autos, que, a partir desse momento, passa a ser a causa que deseja ver apreciada pelo juiz. Dispõe, a propósito, o art. 291, do CPC, que a toda causa será atribuído um valor, ainda que não possua conteúdo económico imediatamente aferível. O vocábulo demanda, que também aparece várias vezes no texto do atual CPC, não é sinónimo de ação, traduzindo, isto sim, o ato de provocar o exercício da atividade jurisdicional. Dessarte, enquanto a ação consiste em um poder, em um direito subjetivo, a demanda nada mais é do que o ato pelo qual se postula um provimento da jurisdição.

O instrumento pelo qual a parte ativa a jurisdição, invocando a tutela do Estado-Juiz, é a petição inicial....

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